Homens além do muro: sexo, verdades e apps
Publicado em: 16 de março de 2018Os homens atrás do muro (The Men Behind The Wall, em inglês) da diretora israelense Inés Moldavsky (1990), foi o curta-metragem ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2018. Documentário transmídia, cruza entrevistas feitas com homens de várias idades na Cisjordânia e conversas com rapazes de Gaza via internet. Todos os envolvidos no filme, exceto Inés, são palestinos. Todos foram contatados por aplicativos de relacionamento, como o Tinder e o OkCupid, com propostas de encontros sexuais casuais.
Outros filmes já utilizaram a internet na sua composição e transitaram em várias interfaces para compor uma narrativa. Basta lembrar, por exemplo, do filme 33 (2002), de Kiko Goifman, que combinava um diário on-line com um filme de detetive. Aliás, Goifman, junto com Claudia Priscilla, ganhou também neste ano um Leão de Ouro em Berlim, por Bixa Travesty. Mas o que particulariza o caso de Os homens atrás do muro é que aqui a internet é praticamente um dos participantes do filme. Opera como uma brecha de escape ao megabloqueio entre Israel e os territórios palestinos, o muro da Cisjordânia, que começou a ser construído há exatamente 15 anos.
É a internet o ponto de partida de Inés para a Cisjordânia e de visitas realizadas, pela primeira vez, às cidades de Ramala, Nablus e Belém. Inés tem 30 anos. Nasceu na Argentina e usou seu segundo passaporte para fazer essas viagens. Aos israelenses é proibido entrar na Zona A (área sob controle da Autoridade Palestina), muito embora o exército de Israel não respeite essa regra. Em cada viagem, viveu diferentes situações, em conformidade com os acordos que fazia previamente (de sexo violento a simples encontros). Teve medo das forças de segurança palestinas todas as vezes em que entrou na Cisjordânia. E, quando voltou, das de Israel. Afirma que nunca se sentiu ameaçada ou discriminada pelos homens com que se relacionou. Todos os parceiros sabiam que ela era israelense. Ao todo foram sete. Desses, três concordaram em ser filmados por ela.
Não há cenas de sexo no filme. Sequencias de imagens urbanas e de telas de aplicativos são atravessadas por chamadas de voz com os homens com que esteve ou apenas conversou. São comentários lascivos, diálogos melancólicos, falas corriqueiras que legendam travellings, captados de dentro do carro, de fortificações, torres de controle e um arsenal variadíssimo de arames farpados. O desencaixe entre o som e a imagem cria uma situação recorrente de atrito. A paisagem sonora confere nitidez à comunicação. E isso, a capacidade de ouvir e falar, evidencia seu descompasso com a arquitetura hostil que se impõe ao seu redor.
Resultado do mestrado de Inés na Academia Bezalel (Jerusalém), Os homens atrás do muro começou a ser gestado a partir de suas experiências cotidianas. Inés estava em seu apartamento procurando pessoas para relacionamento nas suas redondezas por meio de aplicativos de namoro. Apareceram várias sugestões de rapazes que atendiam ao perfil que ela especificara, no entanto, “atrás do muro”, na Cisjordânia. Pensou: por que não?
De baixo custo, o filme foi feito quase inteiramente por ela. Não se destaca pela qualidade da fotografia ou do enquadramento, mas pela edição e enfoque. Destoa das paisagens de escombros e das representações militarizadas que nos acostumamos a ver, mas sem mascará-las. Esses elementos são totalmente presentes, mas aparecem sem a intermediação do olhar fotojornalístico e o acabamento dos filmes de guerra. As imagens retratam a vida cotidiana, destacam os interiores, misturam-se às sequencias em que ela conversa com seus parceiros, em um café, caminhando nas ruas com algum deles, pelas janelas das casas em que esteve.
Inés é mais que diretora do filme. É um de seus principais objetos. Entra e sai do quadro algumas vezes para corrigir a câmera, sua voz está em tudo. Aparece em duas situações urbanas, com um mesmo vestido de alcinhas vermelho, em Ramala. No meio do trânsito, captando som, e na frente do muro. Ali foi agredida. Sua vestimenta foi considerada ofensiva para os padrões locais. Em Israel, especialmente em Jerusalém, em lugares predominantemente religiosos, aconteceria o mesmo. São duas sociedades muito conservadoras e masculinizadas, lembra Inés.
Sua inserção, seja no campo visível, seja pela presença que se anuncia nos bastidores, vai marcando um roteiro de busca, que questiona as ambivalências das relações de gênero, mas localizado no meio do conflito Israel/Palestina. Um dos parceiros, Ahmad-nail, pergunta “Por que eu deveria estar com medo de você?” Ela responde: “Por que sou mulher”. O diálogo segue: “Você é uma mulher e eu sou um homem. Você é que deveria ter medo. Eu poderia te machucar. Poderia ter medo se você fosse uma espiã. Mas sei que não é. Confio em você. Você tem medo de mim?”. Ela diz que não, de forma alguma, que ele é carinhoso, mas que ela, além de mulher, é israelense. “E daí?”, ele pergunta. “Não entendo seu ponto de vista, mas acho que você está equivocada”. Inés parece concordar.
Os planos fechados dominam. E como seria de outra forma? Esse é um filme sobre limites. Limites entre gêneros, entre fronteiras, entre linguagens. Entre gêneros porque aborda diferenças entre homens e mulheres, não a partir de um ponto de vista sexista, mas erótico, social e político. Entre fronteiras porque são elas que, nesse caso, dão os contornos sociais e políticos às relações de gênero, reenquadrando as assimetrias de poder Israel/ Palestina nas de Homem/ Mulher. Entre linguagens porque o filme nos coloca o tempo todo entre territórios ocupados e territórios imaginados.
Rompem-se aí alguns paradigmas caros à compreensão da condição da imagem na contemporaneidade, explicitados em filmes como Sexo, mentiras & videotape (1989), de Steven Soderbergh. Nesse filme a ação se concentra nas personagens que falam para a câmera e relatam intimidades. O vídeo, nova mídia toda poderosa de então, opera como modo de acesso ao outro. Ganhador da Palma de Ouro e do Sundance Festival, Sexo, mentira… foi o marco de um momento em que a explosão das imagens indicava que conformaria uma outra sexualidade. Essa sexualidade seria diluída na palavra e se consumaria transitando entre monitores. Algo que de fato quase se realizou na era das salas de bate-papo on-line.
Mas, 30 anos depois do lançamento do filme de Soderbergh, com os novos formatos de comunicação móvel e em rede, a condição da imagem mediada parece apontar para outras direções. Uma é a das novas tecnologias de vigilância, sobre as quais falaremos em outro momento. Outra é a que está em pauta aqui, tensionando os campos de segregação e os desejos de naturalização das diferenças. A imagem que não se esgota no monitor e que reside entre telas, constituindo espaços de escuta e lugares de relacionamento.///
Giselle Beiguelman é artista e professora da FAUUSP. Assina a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).
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