O dirigente, a criança e o futuro
Publicado em: 11 de dezembro de 2020Todo regime político se cerca de registros oficiais na busca de perpetuar a sua memória. Todo regime político utiliza tradições e convenções iconográficas capazes de produzir efeitos instantâneos, porque pautados em associações visuais bastante imediatas. Um céu aberto denota esperança; um soberano com a mão apoiada num pergaminho é logo relacionado àquele que governa tomando a lei como prumo e guia; o olhar que fita o horizonte é marca do governante que planeja seu futuro; um livro nas mãos sugere erudição etc. Desse modo, uma imagem do poder jamais será apenas uma imagem, pois evoca uma condução moral elevada, um exemplo a ser seguido.
Esses são hábitos de visão, como afirma T. J. Clark, regimes de conhecimento, formas de percepção cognitiva que acabam por criar verdadeiros dicionários de símbolos visuais, feitos de padrões, referências, inferências e analogias. Estamos tratando, pois, de construções sociais da visão, ou mesmo de construções da visão social.
Nesses casos, as imagens não se comportam apenas como decorrência de algo, funcionando muitas vezes como sua causa. Segundo a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, a cultura, “aquela rede invisível na qual estamos suspensos”, carrega consigo essa capacidade reflexiva. Cultura é o que ela própria faz. Por isso, a cultura não se apresenta tão somente como produto ou como mero reflexo de seu momento; ela produz realidades e compreensões poderosas acerca da época que a viu nascer ou de um contexto que pretende iluminar.
A cultura visual age, portanto, como metalinguagem reflexiva, pois é contaminada mas também contamina seu contexto. Mais do que ilustrações que acompanham textos, a iconografia de Estado e a iconografia de encomenda, ou qualquer iconografia, evocam convenções assentadas, atravessando concepções políticas, históricas, sociológicas, semióticas e estéticas. E é nesse sentido que as imagens permitem abordar questões referentes à ética, ao conhecimento e ao poder.
Toda imagem carrega um problema. Como bem mostra o historiador da arte Michael Baxandall, a boa ou má resolução de uma obra depende tanto de técnica como, igualmente, da maneira como o artista resolve a questão que se colocou quando estava diante da tela branca, uma massa sem forma, ou por trás de uma lente, que se abre e fecha buscando captar um momento, ou agradar a um comitente. Esses são, nos termos de Baxandall, “padrões de intenção” que aproximam a pintura à fotografia de Estado. Se é certo afirmar que uma tela carrega sempre o projeto prévio de seu autor, não se pode dizer que a fotografia introduza sempre o acaso (supostamente inexistente na pintura). Imagens instantâneas frequentemente operam à revelia do governante. Mas, às vezes, “fotos do poder”, são feitas de maneira compassada com os regimes que representam, escondendo seus jogos de cena. Como diz o professor Eduardo Cadava, toda obra, seja ela qual for, carrega seu segredo. No caso das fotos de pessoas do povo, muitas vezes é o anonimato que mantém o segredo. Já nas fotografias oficiais, tudo funciona ao revés: se existe inesperado e segredo na situação previamente planejada, existe também censura, quando o resultado não atinge o que se esperava.
Menos do que discutir teoria da imagem, contudo, a intenção deste artigo é dar imagem à teoria, no sentido de mostrar quando e como a imagem se comporta como uma instância privilegiada e formadora de representações. Afinal, as imagens implicam um processo abrangente de significação, em que estão incluídos sistemas de intercâmbio imagéticos, culturas políticas, bem como a transferência de valores, imaginários utópicos e realidades pragmáticas.
As “imagens do poder” incluem, com frequência, crianças, como se lá estivessem por obra do acaso. Referência constante nas imagens de Estado, as crianças foram constantemente evocadas pela litografia, pela litogravura e pela fotografia. Meninas e meninos, bebês e jovens representam a inocência, a ética e o futuro.
Lendo imagens: o futuro tem jeito de criança
Não há governo que deixe de projetar o seu porvir a partir do uso da imagem de uma ou várias crianças. Foi assim no início da República brasileira, em 1890, quando o novo regime tornou-se a imagem e projeção de uma criança nos braços do Estado.
Os caricaturistas da imprensa da época se comportaram como difusores de imagens e representações da República, inspirados, principalmente, pela riqueza de símbolos ligados à tradição francesa e opostos à monarquia. A apropriação dessa tradição se mostrou não apenas criativa como inesgotável. Na imagem acima, dá-se a celebração do primeiro ano da proclamação: nos braços de Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil, a jovem República brasileira é apresentada ao povo. Nessa imagem híbrida, fotografia e desenho se aglutinam em um único documento. Deodoro e os políticos que o circundam têm as faces retiradas de outras fotografias oficiais. Já a “menina República” é fruto do desenho de imaginação, embora o artifício fique oculto pela montagem. Mas essa não é uma criança qualquer. Se suas roupas parecem as de um bebê de um ano, o rosto revela uma idade mais avançada. E a criança traz na cabeça o barrete frígio, numa alegoria que representa respectivamente a república (mulher) e a liberdade. O barrete frígio, ou barrete da liberdade, era uma espécie de touca ou carapuça, originariamente utilizada pelos moradores da Frígia (antiga região da Ásia Menor, hoje na Turquia). O adereço vermelho foi adotado pelos revolucionários franceses que lutaram em 1789 pela tomada da Bastilha – prisão e símbolo maior da repressão monárquica –, ato que culminou com a instalação da República Francesa, em 1792, que passou a ditar a moda em relação à proliferação de símbolos republicanos, e sem dúvida inspirou a imagem brasileira.
Deodoro, todo paramentado, mais parece uma estátua, tal a rigidez de seu corpo. As mãos não aparentam segurar o peso da criança. Agostini, fiel ao estilo da sua Revista Illustrada, há de ter incorporado uma foto oficial de Deodoro, com sua espessa barba branca, símbolo da maturidade de seu governo. Os outros políticos, que aparecem com traços mais esmaecidos, também devem ter tido suas fotografias apropriadas de um álbum de retratos. Todos sérios, não deixam transparecer sequer um pequeno laivo de sorriso. Seriedade que a profissão e a ocasião lhes demandam.
A única que esboça um sorriso é a menina, a República, que tem uma de suas mãos apontada para o futuro, numa clara associação entre o título – “Um ano” – e a projeção que a garota representa: um novo começo, uma inauguração, um porvir em liberdade. Interessante notar a “festa” de celebração de aniversário, evocada pelas bandeirolas, os lustres de papel, em primeiro plano, e as guirlandas de flores, que aparecem de forma sutil no pano de fundo da imagem.
O laço na cintura da garota faz um paralelo com a cintura e a farda do general, cujo bordado no punho lembra uma decoração floral. A despeito do olhar sisudo dos políticos, o ambiente é de comemoração e promessa, confirmada pela bebê menina, que ocupa o centro, com os cabelos escapando do artificioso barrete frígio em sua cabeça.
O uso da iconografia da infância não foi uma ideia inovadora da República brasileira. Fazia parte da convenção visual retratística associar a criança – em geral uma menina – como a representação do futuro.
Nessa tela de 1826, uma menina anônima oferece flores a Leopoldina, enquanto um garoto beija a mão direita da futura imperatriz do Brasil. Eles aparecem como se fossem detalhes. Mas são detalhes muito significativos, segundo o historiador italiano Carlo Ginzburg, que analisa a imagem a partir deles, mais que do casal imperial – que tem os traços mais uma vez retirados de desenhos e litografias oficiais, apenas colados acima de seus membros. Por sinal, marido e mulher olham para lados opostos. Já as crianças, ajoelhadas e apartadas da cena central, remetem à fertilidade do casal e representam a continuidade da monarquia no Brasil, bem como a lealdade, evidente no gesto corporal de submissão. Tomados em posição pretensamente secundária, as crianças guardam um lugar simbólico garantido para a projeção do Império.
Também na tela criada pelo artista François-René Moreaux, crianças que mais parecem europeias saúdam Pedro I na celebração da independência do país. Mais uma vez, a face do dirigente é cópia artificiosa de outros retratos oficiais, enquanto os garotos ganham muito mais liberdade no quadro. Diferente do que a memória popular guardou, a pintura não foi realizada no calor da hora nem resultou de qualquer observação direta. Foi pintada em 1844, 22 anos depois da data da independência.
O pintor chegara ao Brasil em 1838, ano de fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no contexto final da revolta da Sabinada, na Bahia. Debelar manifestações dissidentes e cuidar da memória e da história pareciam tarefas prementes para o Império, que procurava cuidar de suas raízes e garantir certa unidade. Moreaux se estabeleceu primeiro na província de Pernambuco; depois, instalou-se na Bahia e, em 1841, chegou finalmente ao Rio de Janeiro, paradeiro de boa parte dos artistas estrangeiros que aportavam no país. Era na Corte que eles teriam mais chance de se capitalizar, e até de se transformarem em pintores da casa Imperial.
Nesse mesmo ano, o artista teve a oportunidade de assistir ao ritual de sagração e coroação de d. Pedro II, cerimônia que ficou célebre por sua pompa e ostentação. De 1841 a 1844, período de realização da tela, o artista pôde verificar o enraizamento do Segundo Reinado por meio de contratos de casamento – verdadeiras estratégias de Estado no que se refere aos arranjos políticos da realeza. Em 1842, foi assinado em Nápoles o casamento do imperador com Teresa Cristina de Nápoles; em 1843, se deu o matrimônio no Rio de Janeiro de d. Francisca, irmã de d. Pedro, com o príncipe de Joinville François d’Orleans; e a chegada da imperatriz Teresa Cristina ocorreria em setembro do mesmo ano. Em 1844, d. Januária passou a assinar como esposa do conde D’Aquila: um Bourbon das Duas Sicílias e irmão de Teresa Cristina. A monarquia brasileira tornava, assim, mais sólidos os vínculos com as demais realezas europeias e se tingia de ocidental, a despeito de reinar num país de mestiços. É um pouco esse ambiente híbrido, politicamente carregado, que a pintura de Moreaux retrata, a despeito da pretensa documentação “fidedigna” do evento da emancipação.
A tela representa o exato momento em que o príncipe d. Pedro I proclama a Independência do Brasil. Tal qual uma estátua equestre, imóvel no gesto que procura dar imortalidade ao acontecimento datado, o futuro imperador, com a mão direita erguida, segura e agita o seu chapéu bicorne. O artista joga luz em d. Pedro e em seu cavalo e, seguindo um esquema acadêmico, eleva ligeiramente a real figura, com o objetivo de lhe conferir não só centralidade como altura destacada dos demais; mas não apaga o protagonismo das crianças, no primeiro plano da obra.
É certo que as pinturas acadêmicas não guardavam grande compromisso com o verismo. Na verdade, pretendiam inspirar moralmente, mais que retratar de maneira etnográfica. Mas, nesse caso, o apuro idealizador é quase constrangedor. O ambiente pouco lembra o Brasil, não fossem algumas poucas palmeiras, devidamente sombreadas ao fundo da tela. O céu tem também sua luminosidade bastante rebaixada, a exemplo da obra de outros pintores franceses de extração acadêmica, que manifestavam igual dificuldade em retratar o azul luminoso dos trópicos. Não fosse o suficiente, bastaria notar a população que rodeia d. Pedro. Se todos os elementos do exército mais se parecem estatuárias, o povo movimenta-se muito: os figurantes congratulam-se, acenam, trocam abraços, correm, saldando o ato que se evidencia no gesto memorável de d Pedro.
Se o leitor afiar os olhos, verá que não há negros e, muito menos, indígenas na representação. No máximo, ao fundo, uma alusão a um bandeirante paulista, que acena com o chapéu. No mais, mulheres com véus negros cobrindo os ombros, homens com bombachas e meninas com saias abauladas. Tudo, pretensamente, às margens do Ipiranga. Numa época em que a exaltação da população rural – em especial dos camponeses, sempre retratados como trabalhadores e puros em seus hábitos – – estava em voga na Europa, Moreaux trouxe para sua tela os mesmos personagens, porém “traduzidos e aclimatizados” de modo a apagar a escravidão, dominante nas ruas de todas as capitais pelas quais passou e na capital do Império. A presença do menino que corre ao centro da cena é muito forte. Há também outras crianças, todas brancas e com vestes europeias, que, em seu conjunto, corroboram com a representação de um país branco, europeu e até italiano, à semelhança dos casamentos reais que se realizavam naquela época.
A figura da criança seria explorada no próprio (futuro) imperador Pedro II, quando menino. São várias as pinturas e litografias que o retratam isolado em seu palácio, como se estivesse apenas aguardando o momento em que assumiria seu papel, como herdeiro dos anseios da nação. Por vezes, aparece flutuando por sobre nuvens, ou como um pequeno adulto, paramentado para o lugar que estava destinado a ocupar.
Em uma tela de Pallière – artista acadêmico, pintor experiente em Paris e que chegou ao Rio em 1817, no mesmo navio que trouxe Maria Leopoldina –, d. Pedro aparece como uma criança de 5 anos, até então apartado do cotidiano dos cariocas, mas não de suas futuras funções. Ao lado de um imenso tambor, o monarca menino, muito branco e claro, ricamente vestido, aguarda o futuro, com seu olhar plácido. Para além do objeto de infância – sua baqueta, disposta deliberadamente à frente do garoto –, destaca-se uma figura apenas insinuada, mas que ocupa boa parte do canto superior da tela: o imenso trono que o aguardava. Composta e finalizada antes do início do Segundo Reinado, a obra parece colaborar para o ambiente de esperança que se procurava construir no Brasil. Estava nas mãos desse menino inocente, branco num país de mestiços, o futuro da nação, a essa altura muito dividida. Um Estado nas mãos de uma criança que nascera no país, “ingênua e pura”, era utopia forte no contexto das regências, quando todo tipo de movimentação eclodira em diferentes partes do país.
A estratégia de introduzir crianças em pinturas que retratam momentos fundamentais da política brasileira também aparecerá em outras obras conhecidas da iconografia histórica nacional, como na tela Abolição da escravatura, de Victor Meirelles. Um dos protegidos do imperador, Meirelles, que contava com o mecenato imperial para sobreviver, era muito vinculado às lides palacianas e a uma espécie de história oficial do poder. Na tela, bem próximos a Isabel, figuram três crianças brancas (seriam seus filhos?) num ambiente empolado e marcado por muitos senhores, igualmente brancos, especialmente vestidos para a ocasião, e apenas duas mulheres.
O formato horizontal dilui hierarquias e mantém os personagens num mesmo nível, sem degraus a separá-los, apesar do centro ser ocupado por Isabel, que concentra os olhares e é saudada por figurantes mais ao fundo. A proximidade da princesa regente com as crianças a associa à noção de liberdade, de um novo tempo. Isabel ficaria conhecida como a mãe da abolição.
Imagem ainda mais impactante é a Redenção de Cam. Como o próprio título indica, a obra faz referência direta à passagem bíblica de Cam, filho de Noé, castigado por ter zombado do pai nu e bêbado. Na verdade, o castigo divino é aplicado a Canaã, amaldiçoado como “servo dos servos”. Além do mais, o fato de Cam ser apontado na Bíblia como ascendente das raças africanas fez com que tal passagem fosse usada pelos defensores da escravidão negra, que justificavam o sistema com o argumento de que ele seria afeito aos desígnios de Deus.
Seu autor, Modesto Brocos, de origem espanhola, fazia parte da Academia Imperial de Belas Artes, e apresentou a obra no Salão Nacional de 1895. O assunto central da pintura demonstra como o artista procurava se inserir no ambiente nacional a partir de temas clássicos, devidamente traduzidos para os tempos e as pessoas do Brasil. É evidente a força do registro bíblico, que se encontra invertido: na mistura de raças, estaria a redenção, com um país mais branco, como o menino que figura no centro da imagem. A ideia, mais uma vez, não era tratar da maldição, mas sim de uma redenção, um novo início para a Primeira República brasileira.
A obra, que quase parece uma fotografia, dada a perfeição dos retratos nela presentes, apresenta com grande técnica e riqueza de detalhes uma cena familiar expressa em três gerações distintas. Do lado esquerdo, uma mulher negra com a pele muito escura, mais velha, descalça e pisando um chão de terra. Seu corpo está todo coberto, inclusive os cabelos, e ela leva as mãos erguidas para o céu, como uma forma de prece ou agradecimento. Todo o lado direito da pintura (que é dividida em duas partes quase idênticas, apenas separadas por uma linha vertical central formada pelo batente de madeira) é ocupado por um homem branco – quem sabe um português –, que observa orgulhoso um garoto, provavelmente seu filho. A brancura de sua tez é muito reforçada pela luz que o artista joga nele. O pai se encontra em frente a um vão de porta, traz nos seus pés um chinelo gasto e pisa num calçamento de pedras que, mesmo precário, denota a progressão social que ele experimenta em relação à mulher mais velha. No centro, destaca-se a figura de uma mulher negra mais jovem, com os traços depurados, o cabelo domado e aparente, que levanta sua mão direita e aponta com o dedo indicador para o futuro. A jovem mãe está localizada na divisa entre o chão de terra (onde figura a avó) e o solo pavimentado (onde se destaca a imagem do marido e pai). Mas chama ainda mais atenção a imagem do bebê que a jovem mãe negra traz sobre os joelhos: ele é branco e tem cabelos lisos. Nas mãos, o menino traz uma laranja, símbolo da alegria, da luz do sol e dos trópicos. O garoto, por sua vez, parece olhar com interesse para a avó – sua origem. Uma palmeira marca que estamos definitivamente num ambiente tropical. Também a casa de pau a pique, com sua parede amarelada, confere um tom exótico e pobre à habitação da família, que combina com os tons de marrom dominantes na tela, – conhecida especialidade de Brocos.
Em 1911, a obra ganha uma segunda vida ao ser usada pelo médico João Baptista de Lacerda, enviado do Brasil ao Congresso Universal das Raças, sediado em Londres. Segundo a tese do diretor do Museu Nacional exposta num texto chamado “Sur les mètis”, o país se tornaria branco em três gerações, por conta da lei da seleção natural dos mais fortes e da imigração europeia. O “branqueamento” se daria por meio da mestiçagem.
Mas voltemos ao menino do centro da tela. Muito mais branco que sua mãe e sua avó, ele encarna o futuro que sua progenitora indica com o dedo. Há também uma associação evidente com o nascimento de Cristo, sendo a casa simples uma espécie de manjedoura tropical. A salvação para o jovem país vinha do branqueamento expresso no corpo do menino.
A exploração por parte do Estado da imagem de crianças é, portanto, prática sedimentada por meio da pintura e da fotografia. Com os avanços técnicos da fotografia e sua maior capacidade de reprodução e manipulação, esse tipo de cena será ainda mais comum, embora agora vinculando o Estado à figura paterna, mais que à da mãe.
Crianças sempre representaram noções de pureza, futuro e esperança, muito utilizadas por governantes em momentos de crise para construir uma imagem mais humana de si, associando o governante ao chefe da família.
Pedro II se gabava de ser o primeiro imperador fotógrafo. Também se orgulhava de incluir a fotografia entre os gastos fixos da família Imperial brasileira. Por fim, sempre que pôde, explorou as potencialidades da técnica para disseminar seu retrato pelo vasto império brasileiro. Se ele não podia estar em todos os lugares, sua imagem fotográfica podia.
Na foto acima, d. Pedro aparece logo no início da Guerra do Paraguai, quando ainda apostava que o embate militar seria breve. Não foi, se arrastou por cinco longos anos que consumiram os cofres nacionais e a popularidade do soberano. No entanto, nessa albumina de 1865, Luiz Terragno, um dos fotógrafos da Casa Imperial, retrata o imperador ladeado por crianças – todas brancas. A situação na região sul do Brasil era tensa, e o monarca, vestido como militar, anuncia aos brasileiros que o país estava em guerra. Semblante sério, vestes militares, olhar compungido. Já a associação com as crianças é cristalina: aquele era um soberano que não abandonava seu país, tampouco os jovens, esperança de um futuro sem o “déspota do Paraguai” – expressão pela qual Solano López era definido por seus inimigos da tríplice aliança (Brasil, Uruguai e Argentina).
Diferente da pintura, controlada pelo artista, na fotografia – mesmo oficial – tudo pode acontecer. A princesa Isabel usou e abusou de sua representação como mãe da pátria, mãe virtuosa que, mesmo diante das atribuições do Estado, não descuida de seus filhos. Em uma foto de 1882, ela esconde seu rosto para deixar em maior evidência o de seu filho, em primeiro plano. Ou, quem sabe, foi a criança que se moveu, rasurando o resultado. Não há como ter certeza. O que se sabe é que o fotógrafo aproveitou a emenda para corrigir uma lordose nas costas da modelo, evidente no original. Com o tempo, porém, o artificialismo da correção ficou escancarado, e o documento revela os truques de edição. O momento era oportuno: a princesa preparava-se para ser a futura imperatriz do Brasil, anunciando um Terceiro Reinado. No entanto, a imagem não deve ter agradado, pois ficou vários anos guardada. Recursos e escorregos das fotografias do poder.
Um presidente brasileiro que instrumentalizou a fotografia com o objetivo de fabricar e divulgar seu populismo de Estado foi Getúlio Vargas. E mostrar simpatia e proximidade com o povo implicava interagir com crianças, o que nem sempre dava certo. A foto parece composta e arrumada, com os homens, em sua maioria negros, com roupas de trabalhadores, circundando o presidente de chapéu Panamá, charuto comprido e terno imaculadamente branco. Mas o resultado deixou a desejar: todos os adultos – incluindo o presidente – sorriem, mas a criança se encolhe, vira o rosto e parece resistir ao contato com o presidente. GV era “pai do povo” e “pai dos pobres”, mas, nessa imagem, não tanto das crianças.
Quem também não teve vida fácil com as crianças foi o general Figueiredo. Nos idos de 1979, em plena ditadura militar, João Baptista Figueiredo ensaia um aceno de mão em direção à menina Rachel Clemens Coelho, que prontamente se recusa a cumprimentá-lo. Se essas são situações oficiais em que os adultos – no caso, apenas homens – estão acostumados a representar, sobretudo diante de uma câmera, as crianças muitas vezes abrem mão do jogo de cena e revelam com espontaneidade os limites da fotografia encenada.
Não se pode dizer que o general não tenha insistido. Em tempos de abertura, e com um presidente famoso por ter dito que preferia o cheiro dos animais ao contato humano, tal tarefa seria custosa. Se a primeira foto ficou devidamente guardada nos arquivos da ditadura militar, a seguinte parece ter chegado ao resultado pretendido. De terno ou à paisana, ele já não era o general linha dura, mas uma espécie de paizão da pátria e da abertura política. Novamente chama atenção como Figueiredo contracena sempre com crianças brancas, assim como é circundado por adultos igualmente brancos.
Outro líder que se dedicou ao “esporte” de levantar crianças, e igualmente malsucedido, foi o presidente norte-americano Donald Trump. Seus discursos muito viris e incisivos, o rosto zangado, a liturgia de estadista que jamais abre mão de um holofote não parecem combinar com a imagem de um chefe do lar ou de um pai (e avô). O resultado dessa encenação é uma operação fadada ao fracasso: crianças recusam o contato físico, choram, querem fugir.
Mas tudo o que faz (ou fazia) Trump – seus gestos públicos e estratégias para manter a atenção nele – é logo imitado por uma série de líderes mundiais: todos populistas, homens, tecnocratas e retrógrados. E Jair Bolsonaro à frente.
Por isso, o presidente brasileiro também não perde a oportunidade de levantar uma criança para tirar proveito político da imagem de pessoa espontânea, alegre e, portanto, acima de qualquer crise ou problema. A cada oportunidade em que ele cria uma pequena multidão – sempre sem máscara –, usa da circunstância para se fazer fotografar com uma criança no colo.
Sorriso largo, jeito de malandro, o presidente brasileiro sabe como jogar para a plateia e explodir com sua imagem nas redes. Nelas, ele é brincalhão, amigo das crianças, que, não raro, imitam seus gestos, como o que simula uma arma de fogo.
Tomando o conjunto da cena, chama atenção como Bolsonaro prefere erguer meninas. Talvez a escolha tenha a ver com a caracterização que faz do que considera, em sua concepção misógina de mundo, o “sexo frágil”. Talvez ele não queira, nos seus termos, “levar marmanjo às costas”. Não é “maricas”, como disse no início de novembro de 2020, insultando o povo brasileiro.
O certo é que, vez por outra, ele se engana, como ocorreu em Sergipe, em 19 de agosto de 2020. Na ânsia de levantar alguém, o presidente pegou por descuido uma pessoa de baixa estatura, a quem tratou de “anão”. Nenhuma das partes parece ter gostado do deslize, que passou ligeiro, ao menos nas redes controladas pela família. O fato é que os dirigentes sempre buscam se associar à imagem de uma criança. São em geral homens, brancos, entre a meia-idade e a terceira, que relacionam sua virilidade e a formação de proles (nesse caso os futuros cidadãos do país); sua posição de “pais” da nação e a reprodução direta da infância; o presente e o futuro. Sempre com gestos e atitudes triunfais, encenando alegria e espontaneidade, suas performances por vezes são contrariadas por crianças, com quem é sempre difícil fechar o roteiro e combinar previamente o jogo de cena.
Com um sorriso nos lábios, o líder masculino mostra sua virilidade na associação da criança à fertilidade e à força do presidente que a carrega, quase sem notar seu peso. Imagens do poder se comportam como “convenções visuais”, sempre reiteradas – na pintura, na escultura ou na fotografia – para consolidar determinados imaginários em torno do estadista perante sua população. Comportam-se, quando nada atrapalha sua eficácia, como verdadeiras pinacotecas de Estado e de sua posteridade.
Imagens não se deixam ver, simplesmente. Elas camuflam “padrões de intenção”, como explica Baxandall; rasuram a origem das encomendas, como mostra Carlo Ginzburg; disfarçam convenções artísticas, ou mesmo o cotidiano de sua produção, conforme analisa Clark.
Por isso mesmo, imagens são documentos de imensa potência, circulação e reflexibilidade; tanto que, por vezes, pensamos conhecer um evento a partir da iconografia que o cercou e nos foi legada. Pensamos por imagens e com imagens. No entanto, faz tempo que as imagens se associaram ao poder, de maneira a apenas elevá-lo.
Obras pictóricas guardam, porém, regimes de visibilidade e de extrema invisibilidade. Toda imagem guarda consigo um segredo, isto é, pode ser lida a partir da relação que estabelece com seu próprio segredo – o das histórias que não revela, especialmente quando aspectos fundamentais da iconografia permanecem invisíveis. Sabemos muito pouco sobre as pessoas presentes em várias dessas imagens do passado, ignoramos as condições reais de sua feitura, seu contexto de produção e, por vezes, até mesmo sua autoria. No limite, essas imagens representam uma espécie de encontro com o silêncio. Não por acaso, a busca para reconstruir segmentos dessa ausência faz parte da metodologia que o poeta e ensaísta Paul Celan denominou “o segredo do encontro”.
Invertendo-se os termos do sociólogo Émile Durkheim, essa iconografia talvez esteja menos vinculada à “eficácia política do poder simbólico” e mais próxima à “eficácia simbólica do poder político”, convertido em imagens do poder e numa espécie de cartilha da visualidade oficial a serviço da história.
Encerramos com Incômodo, de Sidney Amaral. A obra foi originalmente comissionada para fazer parte da exposição Histórias mestiças (2014) no Instituto Tomie Ohtake. O artista faz uma leitura a contrapelo da história da abolição da escravidão, recriando com tinta fotografias do século 19. Nesse caso, heróis negros reconhecidos – Luiz Gama, José do Patrocínio, o Almirante Negro (João Cândido Felisberto), Chico da Matilde (Francisco José do Nascimento) –, dos quais existem registros de época, convivem com figuras mais anônimas. O tríptico oferece uma visão da abolição em que os protagonistas são todos negros, diferente da história oficial.
Se quase todas as figuras representadas fazem parte do mundo adulto, destaca-se, bem no centro do conjunto, abaixo da mulher negra que badala o sino da liberdade, uma menina – a filha do pintor. A criança aqui não tem função oficial – ao contrário, mistura o universo de referências públicas com o privado, da vida do autor. Nesse sentido, a menina, como toda a pintura, não carrega qualquer sentido celebratório do Estado. A obra narra uma outra história da abolição, menos colonial, europeia, branca e masculina. A menina, nesse caso, não se encontra no colo de ninguém e, de certa maneira, conta a sua própria história, colocando seus sapatos – esses sim um símbolo fundamental da liberdade no Brasil, uma vez que era item proibido às pessoas escravizadas.
Essa não é, definitivamente, uma imagem do poder. Ao contrário, procura ler a história brasileira, tão europeia e branca, por outro prisma, a partir da ação e proeminência de negros e negras no Brasil. Já a figura da garota é a única que mistura afeto íntimo com uma simbologia que marcou toda a escravidão.
Mostrar e esconder fazem parte de um mesmo processo visual, realizado ao arrepio da história. Por isso, muitas vezes, é possível ler essa iconografia pátria a contrapelo, evadindo-se do que o artista pretendia destacar originalmente e buscando detalhes não esperados na representação. Nesse caso, vale a pena inquirir pequenos sinais, “sintomas” dos usos dessas linguagens do poder: a hierarquia, a performance da liderança, as expressões de contrariedade.
A criança ganha, nesse sentido, um lugar especial nas narrativas visuais do poder: projeção de futuro, infância da nação, novo começo. ///
Lilia Moritz Schwarcz é historiadora, doutora em antropologia social e professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na USP. É autora de As barbas do imperador (Companhia das Letras, 1998), vencedor do Prêmio Jabuti em 1999, entre outros. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
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