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No princípio, era a imagem: a origem e os deslocamentos da humanidade segundo duas mulheres

Ronaldo Entler Publicado em: 18 de setembro de 2025


Zé Barretta, Fe₂O₃ – Uma arqueologia da Imagem, 2017


Pinturas rupestres são a demonstração de capacidades técnicas e cognitivas que singularizam nossa espécie: há dezenas de milhares de anos, certo animal só pôde produzir imagens porque, em algum momento, havia se tornado humano.

A filósofa franco-argelina Marie José-Mondzain (1942) inverte essa equação: para ela, o surgimento das primeiras imagens não é resultado de uma capacidade humana já plenamente realizada, ela representa o momento preciso em que um traço de subjetividade é constituído (Homo Spectator. Voir, faire voir, 2007). Ela supõe uma cena originária: um ser entra numa caverna escura, carimba sua mão na parede e se afasta para contemplar essa “imagem de si fora de si”, situando-se nessa “intermitência própria de espectador e criador de signos”. Ao deixar sua marca no mundo, ele se reconhece como um ser separado do mundo, dotado de contornos próprios. Essa imagem equivaleria então ao gesto inaugural de nossa subjetividade; como se o sujeito e as imagens tivessem se inventado reciprocamente.

Vistas daqui, desde o nosso tempo, essas inscrições caracterizam o início de uma existência privilegiada, de um domínio sobre a natureza. Mas vagar por um mundo ainda incompreensível carregando o peso dessa subjetividade recém-adquirida tem algo de aterrorizante. Como diz Mondzain: “esse corpo conquistado aos antropoides não será apenas o mais hábil, o mais astucioso e inventivo na manipulação das coisas, mas também o mais frágil e o menos integrado ao seu meio natural”. Mondzain conhece muito de perto o sentimento de não-pertencimento. Ela nasceu na Argélia e ali cresceu durante as guerras anticoloniais. Veio de uma família judia, tornou-se especialista em iconografia cristã e, mais recentemente, militou pelos direitos culturais de imigrantes muçulmanos na Europa. E suas últimas obras estão dedicadas ao valor das práticas da “hospitalidade” e do “acolhimento”. De muitos modos, sua trajetória nos lembra que o processo civilizatório pelo qual os humanos irão domesticar as forças hostis da natureza produzirá outras tantas ameaças a sua própria existência.

Mondzain constrói suas fabulações a partir das pinturas da caverna de Chauvet, que foi descoberta na França, em 1994. Produzidas entre trinta e quarenta mil anos atrás, essas eram até então as imagens mais antigas conhecidas pelos arqueólogos. Mas datas são sempre um território em disputa. Em poucas décadas, foram encontradas em diversos continentes inscrições realizadas milênios antes. Uma delas, uma inscrição com formas geométricas encontrada na caverna de Blombos, na África do Sul, foi datada de setenta mil anos.

Em sua luta pela sobrevivência, comunidades humanas se deslocaram pelo mundo e, em lugares diversos, reinventaram sua capacidade de produzir imagens. Em todos os continentes são conhecidos sítios arqueológicos repletos de inscrições que apontam para uma sistematização desse gesto, algo que denota – ou, em certa medida, instaura – uma organização cultural de certa complexidade. No Brasil, elas podem ser vistas em diversas regiões. Mas os sítios arqueológicos hoje agregados pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, trazem imagens bastante singulares, além de evidências que reconfiguram as hipóteses sobre as eras e os caminhos que trouxeram grupos humanos para o continente americano.


Zé Barretta, Fe₂O₃ – Uma arqueologia da Imagem, 2017

Uma arqueologia da imagem

As pinturas rupestres são o primeiro capítulo de muitos livros de história da arte que conhecemos, mas ainda com forte privilégio dos sítios europeus: Altamira (Espanha), Lascaux, Pech-Merle e, mais recentemente, Chauvet (França). Eu sabia da existência das inscrições da Serra da Capivara, mas nunca havia olhado verdadeiramente para elas. Até cruzar, numa leitura de portfólio, com o ensaio Fe₂O₃ – Uma arqueologia da Imagem (2017), do fotógrafo paulistano Zé Barretta (Fe₂O₃ é a fórmula química do óxido de ferro III, que aparece na composição dos pigmentos daquelas imagens). Quando nos pegam no momento certo, ainda investimos a fotografia desse poder de presentificar acontecimentos distantes. Esse vínculo da imagem com a realidade é da ordem da crença, resquício de seus usos mágicos ancestrais, justamente como aqueles das pinturas rupestres. É um tipo de fetichismo que soa hoje primitivo e ingênuo. Mas é justamente uma capacidade imaginativa que, um dia, nos tornou humanos e que talvez, a duras penas, nos mantenha humanos. Mais ou menos como aquilo que Roland Barthes enxergou quando, diante de uma foto do irmão de Napoleão, disse: “vejo os olhos que viram o imperador” (Câmara Clara, 1984). Desde então, troquei Chauvet pela Serra da Capivara em minhas aulas de história da arte.

Para o azar do fotógrafo, eu tive naquela ocasião dificuldades de enxergar seu trabalho, via apenas o testemunho das inscrições que testemunham o começo de tudo. Injustiça, porque só pude me deter sobre aquelas pinturas ancestrais graças àquela narrativa, que me conduziu por uma paisagem exuberante, aparentemente intocada, até revelar as marcas dessas presenças ancestrais, discretas e distantes em princípio, mas que vão se tornando abundantes, detalhadas e imponentes.

A ideia de “uma arqueologia da imagem”, como aparece no título do trabalho, também nos coloca questões importantes sobre um duplo lugar que essas representações ocupam, ora como objeto de estudo, ora como ferramenta de pesquisa. E ainda podemos projetar um terceiro sentido, insinuado pelas derivações da raiz arkhé que, em grego, significa “origem” ou “princípio fundador”. Seguindo os passos de Mondzain, podemos supor a imagem como experiência originária de um logos, isto é, um conhecimento operado pela linguagem. Assim como podemos entender essas paredes repletas de inscrições como arquivo, no sentido proposto por Jacques Derrida (filósofo e franco-argelino como Mondzain), como lugar de guarda de uma memória e também como lugar de onde emana a autoridade de um guardião, o arconte (Mal de Arquivo, 2001).

As pinturas rupestres encontradas no Parque Nacional da Serra da Capivara são significativamente diferentes daquelas que estão na Europa, que se concentram em representações de animais selvagens e estão associadas a práticas mágicas ligadas à caça e outros tipos de negociação com as forças misteriosas da natureza. Em Chauvet, por exemplo, não há indícios de que a caverna tenha sido algum dia habitada, o que leva a supor que o lugar era exclusivamente reservado a essas práticas rituais. Na Serra da Capivara, as inscrições não estão em cavernas, mas em paredes em locais que são abertos, mas bem protegidos das intempéries. Além de plantas e animais, às vezes antropomorfizados, elas mostram figuras humanas em abundância, realizando ações muito variadas: caçando, dançando, brincando, copulando, parindo, realizando cerimônias. Não é simples interpretar os movimentos e gestos ali representados, que podem estar também associados a práticas rituais. E há especulações muito diversas sobre práticas sexuais e papéis associados aos gêneros masculino e feminino, em corpos que trazem a representação de órgãos genitais. De todo modo, sua recorrência, sua localização e seu caráter narrativo sugerem uma intenção de registro e comunicação daquelas ações, e uma relação mais cotidiana dessas comunidades com as imagens que produziram.

Niède Guidon, 1980 (Arquivo Fumdham)

Territórios e datações em disputa

Foi Zé Barretta que me chamou a atenção para essas pinturas. Mas, muito antes dele, há uma figura crucial que colocou o Brasil no mapa da arqueologia internacional: a cientista brasileira Niède Guidon (1933-2025), cuja vida foi dedicada à preservação e ao entendimento dos vestígios mais antigos da presença humana encontrados no Brasil, cuja morte recente deu novo sentido de urgência a suas lutas.

Nascida no interior de São Paulo, formada em História Natural pela USP, Niède trabalhava no Museu Paulista quando, em 1963, escutou do prefeito da cidade de Petrolina (PE) algo sobre “desenhos de índios” encontrados na fronteira com o Piauí. Naquele mesmo ano, ela partiu em um Fusca rumo a São Raimundo Nonato (PI), mas não conseguiu chegar ao local por conta das chuvas. Foi só em 1970, após uma temporada de estudos em arqueologia na França, que ela conseguiu voltar para ver as pinturas rupestres que se espalhavam por muitas paredes da região.

Após algumas negociações com a Sorbonne, ela estabeleceu ali a pesquisa de campo de seu doutorado. Em 1973, quando já havia mapeado uma quantidade surpreendente de sítios arqueológicos, o projeto ganhou novo fôlego e orçamento, com a formalização de um convênio de cooperação entre Brasil e França, que enviou ao local missões internacionais de pesquisa.

As pinturas da Serra da Capivara não podem ser datadas diretamente pelos métodos do carbono 14, por não serem feitas com pigmentos orgânicos. Por analogia com pesquisas feitas em regiões próximas, aceita-se que tenham cerca de 10 mil anos. Mas testes realizados em restos de materiais orgânicos carbonizados encontrados no entorno, e que indicam a presença sistemática de fogueiras, elevam essa contagem para trinta, cinquenta mil anos ou mais. Essa datação se tornou para Niède um fardo, sendo motivo de desavenças acirradas entre seus pares.

Ela, que soube ouvir essas vozes vindas de um passado remoto, também ofereceu escuta às vozes silenciadas do presente. Enquanto realizava suas pesquisas, ela interveio em disputas de terra e violências domésticas, valorizou os saberes tradicionais sobre o território que estudava e contratou mulheres para funções que a comunidade local entendia ser trabalho de homem. Colocou o dedo na cara de posseiros, fazendeiros, garimpeiros e políticos locais. Após uma década de militância conseguiu que o governo federal demarcasse o território do Parque Nacional da Serra da Capivara, que abrange mais de mil sítios arqueológicos, boa parte deles com a presença de inscrições rupestres. Para que as ações de preservação do parque saíssem do papel, ela criou, em 1986, a Fumdham – Fundação Museu do Homem Americano, cuja sede serviu também de base de apoio para os estudos ali realizados.

Com o reconhecimento de suas pesquisas, o embate se deslocou para o âmbito acadêmico, onde encontrou resistências expressas em palavras elegantes e eruditas, mas não menos violentas. O meio acadêmico pode ser tão hostil e glacial quanto o planeta em que aqueles Sapiens tentavam sobreviver.

No campo da ciência, a discórdia não era apenas a datação dos indícios que Niède encontrou, mas uma espécie de disputa territorial mais ampla. Os cientistas concordam que a vida humana surgiu no continente africano e que, a partir dali, comunidades migraram para os demais continentes. Teorias consolidadas afirmam que os primeiros humanos vieram da Ásia para a América do Norte, cerca de 10 mil anos atrás. Algumas revisões relativamente aceitas, elevam essa data para 15 mil anos. Esses grupos humanos teriam cruzado a pé o mar retraído e congelado do Estreito de Bering (que liga a Sibéria ao Alasca, que estão relativamente próximos apesar de aparecerem em lados opostos dos mapas planificados). A partir dali, teriam atravessado e povoado toda a América.

Era mais ou menos consensual que os indícios mais antigos dessa presença estavam nos Estados Unidos, numa região no Novo México conhecida como Clovis. Essa teoria ficou conhecida como Clovis First. Nome estranho para uma teoria científica, porque além de sugerir a antiguidade dos indícios ali encontrados, parece também reivindicar que as pesquisas feitas em Clovis tenham prioridade sobre as demais (mais ou menos como a política do America First, revitalizada por Donald Trump).

Niède Guidon furou essa hierarquia. Se ela conseguiu ou não provar suas teorias, isso é algo que depende de certas premissas científicas, de engajamentos metodológicos e, antes disso, depende de haver ou não escuta às hipóteses “daquela mulher” e “daquele pessoal do Brasil”.


Rotas do imaginário na ciência

Ela também imaginou outra rota possível: grupos humanos poderiam ter vindo diretamente da África para a América do Sul, navegando em pequenos trajetos, entre porções de mar congelado e ilhas submersas que o recuo do oceano teria feito emergir. Essas teorias são demonstradas por um imbricado cruzamento de mapas do planeta em eras geológicas remotas, leituras antropológicas de indícios de gestos culturais, datações feitas por teste de carbono e mapeamentos genéticos das populações humanas que espalharam pelo planeta.

Algumas divergências decorrem do privilégio que uma pesquisa pode dar a um ou outro desses métodos. Por exemplo, ninguém duvida da datação de seixos lapidados e resíduos de fogueiras colhidos pela equipe de Niède. Mas muitos pesquisadores suspeitam que esses materiais sejam resultado não de ações humanas, mas de acidentes naturais. Em contrapartida, materiais semelhantes encontrados na África são bem aceitos como evidências de uma ação humana planejada, porque não contradizem nenhuma teoria consolidada a respeito da região. 

Para responder às desconfianças, Niède cruza dados sobre a recorrência, a proximidade e a organização sistemática desses indícios, que apontam para ocorrências culturais, e sobre o quanto a topografia e o clima da região desfavorecem os acidentes naturais que poderiam produzir resultados semelhantes. E, para expor seus argumentos, ela foi tão acolhedora quanto aguerrida. Manteve o parque e seus dados abertos a seus oponentes e assim conseguiu o respeito de antigos inimigos declarados, como o bioantropólogo Walter Neves (principal estudioso de Luzia, o célebre esqueleto de uma mulher encontrado em Lagoa Santa, MG). Ela também escreveu muitos artigos em réplica às críticas, elevou o tom de voz em eventos acadêmicos e, numa situação limite, processou por difamação outro pesquisador brasileiro, Guilherme de La Penha, chefe do setor de arqueologia do IPHAN no Piauí.

Pesquisadores como eu, afeitos às teorias mais poéticas do campo das humanidades, têm pouquíssima chance de entender desse debate, a não ser a partir de identificações afetivas. Por exemplo, é bonito ver uma teoria que nos liga diretamente à África, quase como um desdobramento remoto da Pangea, quando, há 300 milhões de anos, o planeta era formado por um único e gigantesco continente, com um encaixe entre África e América do sul que ainda pode ser reconhecido no desenho desses continentes. E é tocante pensar essa migração como prenúncio da diáspora que, milênios depois, traria milhões de africanos para nosso continente, movidos não pelas violências naturais, mas pelas dos próprios humanos. Essas são fantasias minhas. Mas tenho alguma convicção de que os arqueólogos precisam mobilizar alguma dose de imaginação para que os vestígios humanos sejam lidos como gestos culturais, e não apenas matéria transformada por uma mão dotada de polegar opositor, a ser datada pelos laboratórios de química.

Não é difícil reconhecer o modo como as ciências mais sérias e mais exatas sempre estiveram contaminas por ideologias e submissas às estruturas de poder, a começar pelas teorias biológicas que projetaram sobre a humanidade a noção de raça e que patologizaram muitos comportamentos. Se é inevitável que a ciência se deixe contagiar pela força dos imaginários, pelo menos, que sejamos capazes de mobilizar os nossos para fazer frente àqueles que sempre foram hegemônicos.

Fabulações à parte, as lutas de Niède eram prioritariamente científicas, eram inevitavelmente políticas e eram ideológicas na mesma medida de qualquer outro pensamento que precisa encontrar bases de sustentação coletiva em uma tradição metodológica e em instituições acadêmicas. Fazer ciência no Brasil é sempre uma militância, pela escassez crônica de recursos e pelo terraplanismo que, de tempos em tempos, alcança o status de política pública, às vezes elegendo a universidade como inimiga. Mas é importante reconhecer que as teses de Niède só puderam mobilizar o campo da arqueologia porque, entre sentimentos de entusiasmo e repúdio, seus argumentos foram consistentes o bastante para convocar de seus pares uma tomada de posição.

Niède Guidon, que já estava afastada do trabalho de campo, morreu em junho deste ano. Deixou uma rede de pesquisas e de afetos que reverbera seu pensamento e sua personalidade, e que já revelou outros tantos talentos. Com verbas escassas, a Fundação Museu do Homem Americano – que tem hoje mulheres em todos os cargos de direção – segue tocando a missão científica e política que deu origem à instituição. A ausência de Niède é relativa, porque sua imagem está tão cravada naquele território quanto os indícios que ela encontrou. E todas as pessoas ali conhecem bem o poder de sobrevivência e de presentificação que as imagens têm. ///


Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.

Zé Barretta (1973) é fotógrafo independente, desenvolve projetos pessoais e se interessa por temas ligados à imagem, ao fluxo do tempo e questões contemporâneas sociais, urbanas e ambientais. É formado em Geografia pela Universidade de São Paulo. Nasceu e vive em São Paulo.



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