O que dizem as imagens do presidente
Publicado em: 31 de janeiro de 2019Feicebuqui, Feicebuqui, Whatizape, Whatizape!!! Com essa saudação inédita em qualquer posse presidencial, a imprensa foi recebida por manifestantes na Esplanada dos Ministérios, no dia 1° de janeiro de 2019, em Brasília. A saudação fazia jus ao estilo do novo titular da pasta, Jair Messias Bolsonaro. Nas suas redes sociais o presidente deixa claro que elas não foram apenas meios de acesso ao poder. Mais que veículos de comunicação pessoal, as redes são o seu principal canal institucional e o lugar de construção de sua imagem. Imagem essa que é a linguagem pela qual está sendo escrita a história oficial de seu governo.
Com cerca de 24 milhões de seguidores, distribuídos entre suas contas no Twitter, Facebook, Instagram e YouTube, o 38° presidente da República é o político com maior número de aliados digitais entre os latino-americanos. E isso é resultado de um trabalho milimétrico e militante, labutado entre teclados e câmeras que percorreram os mais diversos ambientes durante sua campanha presidencial. De gabinetes a salas de estar, passando pela cozinha, a churrasqueira de casa, o caixa automático, e até seu leito na UTI quando esteve hospitalizado.
Completam o quadro muitas lives, um recurso oferecido pelo Facebook para transmissão de vídeo em tempo real. Nessas falas ao vivo, ganha força um regime visual que fez toda a diferença nas regras do jogo político que o presidente Bolsonaro protagoniza. São imagens precárias, por vezes fora de foco, feitas com câmeras mal posicionadas, iluminação descuidada, ângulos distorcidos e que dominaram suas aparições.
Nesses vídeos, ao fundo, é comum aparecer de um lado uma menorá, o candelabro judaico que é também parte da liturgia evangélica, do outro, uma moringa de barro, símbolo tão singelo da cultura nacional. Sobre a mesa, objetos variados: papéis com anotações, notas fiscais, livros de e/ou sobre político britânico Winston Churchill, tratados anti-marxistas e celulares diversos. O que dá o tom a tudo é uma certa desarrumação geral, com cara de cenário improvisado, sempre constante nessas gravações.
Retoma-se aí a estética amadora consolidada pela apropriação da linguagem do vídeo caseiro que explodiu com o YouTube e que surge como estratégia de aproximação do “mundo real”. Discutida em profundidade por críticos como Ilana Feldman e Felipe Polydoro, essa estética pretende se contrapor ao imaginário tecnicamente perfeito do padrão hollywoodyano (ou da rede Globo) de qualidade, pela supressão de mediações. Como se a imagem produzida fosse um decalque do real, sem qualquer interferência dos meios que a produzem e de quem os instrumentaliza. É nessa idealizada contraposição que reside a eficácia da estética amadora.
Um dos vídeos mais acessados do seu movimentado canal no YouTube é aquele em que, via celular, Bolsonaro fala, às vésperas do primeiro turno, com a população na avenida Paulista. Nele, todas as afirmações feitas até aqui são levadas ao limite. Com sombra no rosto, contra a luz, oratória pra lá de mediana, em um vídeo gravado em pé no jardim, tentando ver as imagens que lhe mostravam, em outro celular, o então candidato levou seus eleitores ao delírio.
Diante das (próprias) câmeras, Bolsonaro ri, fica sério, desafia “a mídia”, prepara o pão com leite condensado do seu café da manhã, vai ao açougue e faz churrasco, aparece no barbeiro, posa com a filha, descansa no sofá, compartilha mimos recebidos de seguidores anônimos. De camiseta esportiva, shorts, e mesmo de terno e gravata, já no posto de presidente, ele não fala com seu eleitor, ele o exprime. E ao exprimi-lo, conforme escreveu Roland Barthes, comentando a fotogenia eleitoral em seu livro Mitologias, transforma-o em um herói, convidando o eleitor a eleger-se a si próprio.
Essa frequência vibratória não se desfez com a eleição. Pelo contrário. Da vitória no primeiro turno até os primeiros dias de governo ela só cresceu. Em um dos seus picos de audiência, quebrou todos os protocolos, postando a primeira foto oficial como presidente no seu perfil pessoal no Instagram. Seguiram a postagem mais de um milhão de likes. Não que isso seja um acontecimento incomum. As respostas às postagens de Bolsonaro são sempre acompanhadas de no mínimo algumas boas centenas de milhares de likes e aplausos aos feitos.
Trata-se de um verdadeiro ritual mobilizatório, uma estratégia de comunicação intensa que mais parece uma campanha eleitoral sem fim. Mesmo depois do dia 8 de janeiro, quando a administração das redes do presidente e de seus ministros passou a ser subordinada à Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social do Executivo Federal), deixando de veicular imagens da sua intimidade doméstica para incorporar o padrão da foto oficial, mas sem perder o elã motivacional.
As fotos mais recentes seguem o cânone da pose a três quartos, sorrindo ou seríssimo, de frente ou de perfil, com iluminação sempre artificial (o que talvez transmita para alguns um tom de sobrenatural). De perfil, mira o futuro e anuncia seus projetos. De frente, sugerem a imagem da gravidade e da franqueza do comandante que mira seus inimigos. A estética amadora sai de cena. Entra em campo a da imagem governamental. Com tudo aquilo que enuncia como regime simbólico de ordem, repetição e algumas doses de ficção.
O registro da viagem do Presidente e sua comitiva ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, por exemplo, é uma súmula de imagens e frases de efeito contemplando uma sequencia de sucessos. Dispensável dizer que a foto mais marcante dessa temporada, a da coletiva de imprensa a qual o presidente não compareceu, com as cadeiras vazias, não consta dessa história oficial narrada nas redes.
A força dessa imagem não está na contranarrativa que ela expõe sobre a participação brasileira em Davos, mas no que revela sobre a retórica visual do presidente. “Como uma prática”, escreveu Arthur C. Danto em A Transfiguração do lugar comum, “a retórica tem a função de induzir o público a tomar determinada atitude em relação ao assunto de um discurso, isto é, de fazer com que as pessoas vejam a matéria sob determinado ângulo.”
E esse ângulo, no caso do presidente, é estratégico. Sua retórica visual opera como um fator compensatório, que supre tudo aquilo que sua oratória não entrega. Mas isso só funciona se comandada a partir das suas próprias câmeras. Na impossibilidade de falar detrás das suas telas, a imagem do presidente some e, com ela, sua voz desaparece.
Às vésperas de uma delicada cirurgia, vestido com roupa hospitalar, Bolsonaro deu seu “Alô amigos”. Calmo e relaxado, em um vídeo gravado para as suas redes, resumiu a semana que teve passagens pela Suíça, a tragédia de Brumadinho e terminaria com a retirada da bolsa de colostomia. No mais, só lhe restaria agradecer as orações de todos e, sorrindo, lembrar que “O Brasil é nosso”.
E segue o jogo da nova história oficial do Brasil, atualizado nas retóricas visuais das disputas do imaginário on-line. ///
Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).
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