Coisas entre o céu e a terra
Publicado em: 19 de dezembro de 2019Imagens produzidas por telescópicos e satélites já não causam surpresa, fazem parte de uma ciência rotineira. Mas, em 2019, algumas delas atravessaram os noticiários: a imagem de um buraco negro, registros de desmatamento na Amazônia e tentativas de mapear a origem do óleo derramado na costa brasileira. A importância dessas imagens não está apenas naquilo que elas enquadraram, mas em certos efeitos colaterais que sua circulação coloca em questão.
Dar a ver o invisível é uma vocação das imagens. Quando sua perspectiva não coincide com a do olho, abre-se entre uma e outra um vazio que pode ser deslumbrante ou aterrador, objeto de curiosidade ou rejeição, um espaço que pode ser preenchido com toda ordem de fantasias. Como não se acomodam aos hábitos corriqueiros do olhar, essas imagens feitas à distância ficam sujeitas aos discursos que as explicam. Tanto o lugar físico a partir de onde são produzidas quanto o lugar simbólico a partir de onde são interpretadas precisam ser conquistados e legitimados. Com frequência, a ocupação desses lugares se converte em um exercício de poder.
O século 19
Quando a fotografia surgiu, o mundo científico já conhecia uma diversidade de dispositivos óticos que ampliavam o alcance da visão. Daí que, muito precocemente, essa nova técnica se aliou ao desejo de ver de longe, ver de outro ângulo, ver em outra escala.
Menos celebrado que Nièpce, Daguerre ou Talbot, John Herschel foi um astrônomo inglês que, na primeira metade do século 19, esteve entre os primeiros a experimentar a sensibilidade dos sais de prata à luz. Não obteve resultados empolgantes, mas deixou contribuições significativas: desenvolveu a técnica do cianótipo, publicou artigos sobre o emulsionamento de placas de vidro e descobriu como fixar a imagem com o tiossulfato de sódio. Apesar de não ter sido o primeiro a utilizá-lo, é a partir de seus relatos que o termo fotografia se consolida.
Quando divulgou seus resultados com a fotografia, Herschel já havia contemplado em detalhes o espaço celeste, mapeado nebulosas e aglomerados de estrelas duplas, identificado e nomeado algumas das luas de Saturno e Urano. Acabava de retornar de um primeiro período de investigação no hemisfério Sul, na Cidade do Cabo, trazendo na bagagem resultados que lhe renderam notoriedade. Em princípio, essa aventura tinha motivação pessoal, mas se tornou para o império britânico um modelo de como a ciência pode ser um modo bem justificado de ocupar os territórios colonizados.
Conhecendo os princípios da fotografia e tendo acesso aos telescópios mais potentes de seu tempo, difícil imaginar que Herschel nunca tenha desejado registrar os fenômenos celestes que estudava. Uma de suas primeiras fotografias mostra, como uma espécie de monumento, a estrutura do telescópio de quarenta pés projetado por seu pai, o também célebre astrônomo William Herschel. Outra, mais conhecida, mostra em detalhes uma cratera da lua. Mas, ao contrário do que a legenda leva a supor, essa imagem foi feita a partir de uma maquete. A fotografia astronômica se desenvolveu muito rapidamente, foi discutida por Herschel em cartas trocadas com outros cientistas, mas não se conhece nenhum registro telescópico feito por ele.
Se Herschel nunca chegou a produzir essas fotografias, não deixou de alimentar um imaginário inusitado a respeito do que havia descoberto no céu. Em 1835, enquanto estava na Cidade do Cabo, o jornal nova-iorquino The Sun publicou uma série de seis reportagens descrevendo em detalhes a fauna e a flora que Herschel supostamente teria descoberto na superfície da lua. Foi uma peça muito inventiva de ficção que tomou emprestada a credibilidade de Herschel para impulsionar as vendas do tabloide. Paralelamente, o jornal ofereceu ao público litografias que materializavam o mundo fantástico descrito nas reportagens. Numa delas, vemos uma comunidade bastante organizada de seres denominados Vespertilio-Homo, formas humanas aladas, algo entre anjos e morcegos, que voam graciosamente numa paisagem compartilhada com outros animais fantásticos.
O século 19 também buscou a perspectiva contrária: a possibilidade de mostrar a terra a partir do céu. O desafio foi abraçado por Felix Nadar que, além de fotógrafo, era balonista amador. Ele tentou seus primeiros registros aéreos em 1858, sem chegar a resultados satisfatórios. Para conseguir mais altura e estabilidade, Nadar volta aos céus em 1863 com o Le Géant (O Gigante), maior balão já construído em sua época. Esse projeto, que consumiu quase toda sua fortuna e culminou num grave acidente, também não rendeu as imagens que buscava. Apenas em 1968, quando outras fotografias aéreas já haviam sido divulgadas, Nadar conseguiu produzir com êxito uma série de oito vistas de Paris, tomadas de dentro de um balão preso ao solo por um cabo.
Semelhante ao que aconteceu com Herschel, aquilo que Nadar tardou a mostrar foi rapidamente imaginado pela ficção. Numa caricatura feita em 1862 por Honoré Daumier, vemos Nadar com sua câmera, voando sobre uma Paris completamente tomada pelos estúdios fotográficos. A legenda dessa imagem traz outra provocação: “Nadar, elevando a fotografia à altura da arte”. Numa série de fotos feitas em 1863, encontramos Nadar voando em poses diversas dentro do cesto de um balão. Essas imagens foram produzidas dentro de seu estúdio, diante de um fundo pintado do céu. Apesar do fracasso do Géant, essa experiência inspirou Jules Verne em seu primeiro romance, Cinco semanas em um balão (1863). Poucos anos depois, o escritor levará sua imaginação ainda mais longe com o livro Da Terra à Lua (1865), que narra as aventuras de Michel Ardan – anagrama de Nadar – e lembra com ironia o artigo que atribui a John Herschel a descrição da fauna lunar.
Enxergar mais longe resulta sempre numa demonstração de poder. Napoleão III foi pessoalmente celebrar a estreia do Géant. Em retribuição, Nadar colaborou diretamente com um projeto de comunicação e observação por balões, que permitiu furar o cerco de Paris imposto pelas as tropas prussianas, durante a guerra de 1870. Por sua vez, Jules Verne mostrou que, muito antes da Guerra Fria, a Lua era o lugar ideal para canalizar um poder expansionista nos intervalos tediosos em que os canhões não podiam ser disparados. Em Da Terra à Lua a audaciosa viagem é assim defendida, como glorificação da ciência balística, pelo presidente de um clube militar: “há muito tempo que uma paz infecunda veio mergulhar os membros do Clube do Canhão numa lamentável inatividade. Após um período de alguns anos, tão cheio de incidentes, foi necessário abandonar os nossos trabalhos e deter-nos na senda do progresso. Não receio proclamar em voz alta que uma guerra que voltasse a colocar as armas nas nossas mãos seria bem-vinda. (…). Passar-se-ão muitos anos antes que os nossos canhões voltem a troar nos campos de batalha. Devemos, portanto, tomar uma decisão e procurar em outro campo de ação alimento para a atividade que nos devora!”
O ano de 2019
Já nos habituamos a ver o céu a partir da terra e a terra a partir do céu. Mas essa distância entre o que o olho enxerga e o que a imagem torna visível pode ser percorrida de muitas formas. Esse espaço pode ser explorado para revelar ou gerar outras invisibilidades. E pode ser percorrido pelo seu avesso: assim como é possível conhecer aquilo que não vemos, também é possível fazer duvidar daquilo que é evidente.
Dito de outro modo, ver o invisível se converte numa disputa entre mostrar e esconder, fazer crer e negar as evidências. Daí que essas imagens tomadas à distância adquirem de forma sintomática um interesse político. O ano de 2019 nos deixa alguns exemplos.
Sombras
Veio de um buraco negro uma das imagens mais empolgantes que a ciência produziu nas últimas décadas. Foram necessários dois anos de processamento de informações captadas por oito satélites espalhados pelo mundo, num esforço que reuniu cerca de 200 pesquisadores. Buracos negros são formações tão densas que nenhuma matéria ao seu redor escapa de sua gravidade, nem mesmo a luz. Daí um paradoxo: por definição, buracos negros não são visíveis e nem fotografáveis. O que vemos efetivamente é a matéria que está fora e que ainda não foi tragada por ele. E, no centro da imagem, vemos apenas a sombra que ele produz.
Usada muitas vezes para definir essa imagem, a palavra fotografia pode soar inapropriada, já que se trata de uma síntese produzida a partir de informações altamente processadas. Essa discussão não teria fim: de um lado, pensadores como Vilém Flusser diriam que toda fotografia, mesmo a analógica, é essencialmente processamento de informação; de outro, além de discutir se essa imagem ainda responde aos paradigmas originários da fotografia, poderíamos questionar se os aparelhos que fornecem essas informações ainda são construídos segundo os paradigmas originários do telescópio. Em todo caso, os cientistas reivindicam alguma diferença entre as ilustrações até então conhecidas de buracos negros e esta, que é a primeira imagem captada por dispositivos que, de algum modo, são sensíveis à manifestação desse fenômeno.
Há outras zonas escuras reveladas por essa imagem. Apesar do encanto gerado por sua plasticidade, a representação do buraco negro é pouco interpretável pelo espectador comum. Mas o grande público se envolveu rapidamente na discussão de uma postagem nas redes sociais feita por Katie Bouman, cientista de 29 anos responsável por um dos algoritmos que juntaram as informações vindas dos telescópios. À frente de uma tela de computador que já permite ver o buraco negro, ela aparece numa foto com um sorriso orgulhoso e incrédulo, e uma fisionomia muito distante do estereótipo dos gênios da ciência: ela não usa óculos grandes, não tem cabelos despenteados, não parece ser alguém que senta sozinha no refeitório ou que só consegue se interessar por cálculos indecifráveis. E, principalmente, não é homem. No post, ela diz apenas: “assistindo sem acreditar como a primeira imagem que fiz na vida de um buraco negro estava em processo de construção”. O atrito entre os que celebraram o sucesso de Katie e os que protestaram contra a personificação de uma pesquisa coletiva em um rosto feminino deixou evidente a ordem que essa imagem vinha a perturbar: em nosso imaginário científico, a figura da mulher é menos visível do que a matéria tragada pelo buraco negro. Nos descaminhos das redes sociais, um evento situado a 55 milhões de anos luz de distância se tornou capaz de revelar algumas sombras terrenas.
Queimas
Também neste ano, os noticiários se engajaram em um debate a respeito de imagens que mal chegaram a ser vistas: os registros da Amazônia operados pelo DETER (Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real do INPE), que indicaram um aumento atípico na destruição da cobertura florestal amazônica, sobretudo, pela intensificação de queimadas no primeiro semestre. O INPE foi claro quanto aos limites de sua metodologia: baseado em imagens de baixa resolução, a função desse sistema não é produzir dados consolidados sobre o desmatamento, mas orientar de maneira ágil a atuação dos órgãos responsáveis por fiscalizar as áreas de preservação. Apesar dos limites técnicos, conforme uma avaliação realizada em 2008, 94% dos alertas emitidos pelo DETER equivaliam a desmatamentos efetivos.
O constrangimento gerado pela divulgação desses dados levou o governo federal a demitir o então presidente do INPE, Ricardo Galvão. Antes mesmo que pudesse acionar a fiscalização das florestas, o DETER acabou por ativar o patrulhamento da ciência. Essas imagens estão enredadas numa série de opacidades: elas mostram um território de difícil acesso a partir de um ponto de vista que o olho não alcança. Como toda imagem de satélite, são geradas a partir de um sistema altamente codificado, são pensadas essencialmente como dados e se prestam pouco ao espetáculo. Ao olhar do público esse tipo de evidência se torna frágil, de modo que sempre se poderá dizer: “não, não é o que parece!”. As imagens continuam lá, só que agora um pouco mais opacas pela revogação da autoridade do cientista que assina sua interpretação.
Um parêntese: enquanto escrevo este texto, quatro brigadistas da ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, do Pará, foram presos, acusados de provocar os incêndios que deveriam combater. A denúncia situa a imagem em um outro nível de responsabilidade. Segundo a acusação, os incêndios teriam sido gerados criminosamente para render algumas boas fotografias que seriam compradas por outra ONG, a WWF. No entanto, a denúncia não precisou localizar nem o contrato, nem as imagens contratadas: suas existências foram intuídas de uma colagem muito criativa de fragmentos de conversas interceptadas pela polícia. O mesmo poder que nega por decreto aquilo que as imagens provam apoia-se em evidências que não precisam se tornar visíveis.
Máculas
No final de agosto, uma grande mancha de óleo foi detectada no oceano, espalhando-se rapidamente pela costa de 12 estados do nordeste e sudeste do Brasil. O episódio foi considerado um dos maiores desastres ambientais da história do país, com impacto ecológico e socioeconômico ainda não calculado. A Marinha e a Petrobrás foram imediatamente mobilizadas para encontrar a origem do problema. Em seguida, a Polícia Federal concentrou mais esforços em suas investigações por meio da Operação Mácula. Mas um plano de contingência para minimizar os impactos do vazamento só foi anunciado pelo Ministério do Meio-Ambiente 41 dias depois das primeiras manifestações do desastre.
A Hex Tecnologia Geoespaciais, uma empresa privada de monitoramento por satélite, se ofereceu para colaborar com as investigações. A partir de seus relatórios, foi possível supor o momento e o local da aparição do óleo e localizar as embarcações que passavam por ali. A partir disso, as autoridades apontaram um navio de bandeira grega, o Bouboulina, como principal suspeito de ser responsável pelo vazamento. Numa pesquisa paralela, Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas, localizou uma mancha de 85 km de extensão dois dias antes da passagem do navio grego. Após mapear os navios próximos à região, sua suspeita recaiu sobre o Voyager I, embarcação de bandeira das Ilhas Marshall. Mais recentemente, o INPE trouxe uma terceira hipótese: de que o óleo foi trazido por correntes desde o sul do mar da África.
Mesmo sem conduzir a respostas conclusivas, essas metodologias e hipóteses divergentes ajudam a dar fôlego às notícias. As imagens, mostradas diretamente ou traduzidas em infográficos, são frias demais para rivalizar com aquelas que mostravam os danos ecológicos que, a cada dia, eram vistos em novas praias. Mas toda a atenção dedicada à perseguição das causas do desastre ajudou a mascarar ausência de um plano de ação para minimizar seus efeitos.
O discurso científico sobre a causa foi aqui engolido por um discurso policial sobre a autoria do crime. Quanto a isso, não há diferença entre um desastre ambiental e as formas cotidianas de violência que vemos na TV: a responsabilidade do Estado se resume a perseguir o culpado para, então, aliviar pelo rigor da pena a dor das vítimas e a comoção da sociedade. Essa ótica simplista dispensa o investimento na prevenção e na redução de danos, dispensa também qualquer esforço de contextualização que exija considerar outras causas que não sejam as mais imediatas e mecânicas. Nessa perspectiva, os satélites acabam se alinhando aos radares e câmeras que se espalham pelas ruas, a serviço de uma política míope de vigilância que investe no gozo da punição exemplar.
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Com seu poder de olhar para longe, as imagens técnicas participam ativamente da construção de cosmologias. Ocorre que as “compreensões do universo” nunca estão dissociadas de “visões de mundo”, ou seja, as cosmologias são sempre permeáveis às ideologias. É por isso que, de tempos em tempos, os atritos entre a fé e a ciência são capazes de ressuscitar o debate sobre a geometria da Terra. É por isso também que, desde o tempo dos antigos sumérios, astrólogos são capazes de influenciar estadistas. E, com tudo isso, as evidências trazidas pelas imagens da ciência serão disputadas por narrativas muito diversas. ///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.
Tags: Acidente ambiental, amazônia, Desmatamento, Fotografia espacial, meio ambiente