Cinema em Cabul
Publicado em: 26 de agosto de 2021
Em 2011, o artista belga Francis Alys fez um filme em Cabul, capital do Afeganistão, chamado Enrolar-Desenrolar. Ao longo de pouco menos de vinte minutos, a câmera segue dois meninos afegãos que brincam com duas bobinas de filme pelas ruas poeirentas, acidentadas e pobres da cidade. Um deles empurra continuamente uma das bobinas com a mão como se fosse uma roda velha, desenrolando o rolo de película sobre caminhos ásperos, quase sempre feitos de pedra ou areia. O outro menino, por sua vez, empurra sem parar a outra bobina para enrolar a mesma película, estendida nas ruas pelo primeiro. Assim interligados por duas bobinas e um único filme, passam por partes vazias e movimentadas da cidade, cruzando com gentes diversas e sugerindo narrativas breves que não são desenvolvidas. Simulam, em espécie de coreografia que improvisam com seus corpos curvados sobre as bobinas que transformam em brinquedo, o movimento mecânico necessário à projeção de um filme: o desenrolar da película armazenada em uma bobina para que possa passar pela frente da luz do projetor, sendo em seguida enrolada em outra bobina que a guarda e preserva. Nesta delicada metáfora da exibição de um filme, a luz clara de Cabul se torna a luz de um projetor. Trata-se, portanto, de um filme sobre cinema, em que a história contada é a da sua própria feitura, que tem as crianças como seus protagonistas e a cidade como seu cenário.
Quase ao término do filme, informa-se, em legenda escrita, que o trabalho faz referência a um evento ocorrido em 5 de setembro de 2001, quando integrantes do movimento fundamentalista Talibã, comandando o país desde 1995, confiscaram e queimaram milhares de rolos de filmes do Arquivo de Cinema Afegão. O que os incendiários de imagens não sabiam, diz o texto, é que as películas queimadas eram cópias dos negativos, não seus originais, razão pela qual a maior parte deles foi salva à época. Em outubro daquele ano, o Talibã seria expulso de Cabul e de quase todo Afeganistão pelo exército dos Estados Unidos, em operação de represália aos ataques de 11 de setembro de 2001, perpetrados menos de uma semana depois daquela destruição de filmes. Resposta violenta amparada em indícios fortes de o Talibã ter sido corresponsável por aqueles atentados, tendo supostamente dado guarita ao grupo terrorista Al-Qaeda. Se é certo que outros filmes foram desde então produzidos no Afeganistão e eventualmente adicionados ao acervo daquele arquivo ameaçado, o recente retorno do Talibã ao poder no país põe uma vez mais as películas enroladas e desenroladas nessas e em outras bobinas em grave risco de desaparição. De serem suprimidas, apagando imagens como se nunca tivessem sido inventadas um dia. E coloca muita coisa mais em perigo, é evidente.
A história que envolve Afeganistão, Talibã e Estados Unidos abarca, contudo, ainda outros processos de supressão de imagens. Uma delas narrada em trabalho do artista chileno Alfredo Jaar produzido poucos meses depois daqueles eventos no Afeganistão. Intitulado Lamento das Imagens, o trabalho é estruturado em dois ambientes, ambos escurecidos. Ao entrar-se no primeiro deles, o olhar é atraído por três blocos de textos brancos, iluminados desde dentro da parede. Iluminação interna que permite a leitura do que está ali escrito ao mesmo tempo em que ofusca quem se dedica a lê-los. São textos que narram três episódios distintos, embora articulados por uma questão comum. O primeiro refere-se aos danos causados na visão de Nelson Mandela durante os muitos anos em que esteve preso pelo regime do apartheid, na África do Sul. Redução da capacidade de ver provocada pela claridade intensa do sol refletida na mina de extração de calcário em que foi obrigado a trabalhar por longo tempo sem proteção alguma para os olhos. O segundo texto iluminado, por sua vez, faz referência a uma outra mina de calcário, situada na Pensilvânia, Estados Unidos. Mina que, há muito desativada, foi depois transformada em depósito subterrâneo onde uma empresa de propriedade de Bill Gates guarda milhões de imagens cujos direitos de exibição (ou de ocultação) foram comprados por ele. Imagens, inclusive, de Nelson Mandela na prisão.
Mas é o terceiro e último texto que mais interessa aqui. Nele, faz-se referência à estratégia adotada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos em relação ao que poderia ser publicamente visto dos ataques aéreos desferidos sobre Cabul em outubro de 2001. Ataques que seriam, no dizer do então presidente George W. Bush, “cuidadosamente” direcionados a alvos bélicos para evitar mortes de civis. Para garantir o controle sobre a narrativa dos fatos, o governo estadunidense comprou os direitos exclusivos sobre todas as imagens de satélite do Afeganistão e de países vizinhos naquele período, incluindo as geradas por empresas privadas. Aquisição que, a rigor, seria desnecessária, posto que os satélites espiões dos Estados Unidos eram mais potentes que os controlados por fornecedores locais. O resultado desse monopólio de imagens foi a emergência de dúvidas sobre o que se passou de fato em Cabul durante o bombardeio, sendo impossível verificar a veracidade dos fatos comunicados pelo país agressor. À imprensa, restou exibir imagens de arquivo para comentar os ataques ao Afeganistão.
Ao entrar-se no segundo ambiente deste trabalho, uma luminosidade ofuscante obriga os olhos a se retraírem, somente pouco a pouco se acostumando com a luz forte e branca que vem da tela que cobre a parede ao fundo da sala escura. Como todo processo de afetação de corpos, o efeito que essa iluminação intensa causa é, em um primeiro momento, assignificante. A luz impacta os olhos sem gerar conhecimento novo imediato – não há significados precisos prontamente associados à sensação de desconforto ou estranhamento causada pelo aparato expositivo criado. Somente após alguns instantes a experiência física ali passada é relacionada à leitura dos textos expostos no primeiro ambiente, podendo, então, ser traduzida em linguagem. Na articulação feita entre o que se leu sobre imagens subtraídas e o que se sente diante de uma claridade que cega, emergem os sentidos possíveis do trabalho. Processo de entendimento que também implica o espectador como sujeito submetido aos poderes que controlam a feitura e a circulação de imagens. Seus olhos, afinal, terminam por se acostumar à tela iluminada e vazia, onde convencionalmente deveriam estar projetadas cenas diversas de um filme. Luz clara que serve de inesperada metáfora da ocultação de imagens de gentes e fatos. Ou mesmo da impossibilidade de elas serem criadas. Luz branca e forte como metáfora de uma política visual violenta.
O Talibã volta ao poder no Afeganistão quase exatos vinte anos depois daqueles acontecimentos. Justo após os Estados Unidos deixarem o país e implicitamente reconhecerem seu fracasso como garantidores de um processo de emancipação política do povo afegão. Nesse contexto, algumas imagens começam, quase de imediato, a sumir novamente em Cabul. Não por ato daqueles que expulsaram o Talibã dali no passado, embora seja impossível saber que imagens desse retorno ao extremismo os Estados Unidos possam ainda ser capazes de manter longe da vista de todos. Imagens sumidas, desta vez, por uma política de invisibilidade seletiva que é própria do fundamentalismo religioso, a qual distribui desigualmente, entre homens e mulheres, o direito a ter-se rosto simultaneamente privado e público.
Kabul. pic.twitter.com/RyZcA7pktj
— Lotfullah Najafizada (@LNajafizada) August 15, 2021
Para além das imagens de filmes destruídas duas décadas atrás – emblemática ação de apagamento da história que pode eventualmente voltar a ocorrer –, o que já acontece no Afeganistão de maneira inequívoca agora é o apagamento, em espaços de sociabilidade de Cabul, de representações de rostos e de corpos de mulheres. Imediatamente após a retomada do poder local pelo Talibã, agências internacionais de notícias e redes sociais publicaram fotografia que flagrava um homem cobrindo, com tinta, imagens de mulheres estampadas em peças publicitárias nos muros ou fachadas de lojas da cidade. Apagamento que simbolicamente anuncia o vedamento à presença das mulheres no espaço onde a vida pública do país se desenrola: escolas, universidades, política, trabalhos fora do ambiente cerrado da casa. Supressão que anuncia a subalternização de corpos à força e encena a farsa de uma superioridade masculina que violenta e mata mulheres que ousem desafiá-la com sua mera presença na rua.
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O apagamento dessas e de outras imagens – que perversamente aproximam, em método, Talibã e Estados Unidos – foi acompanhado pela emergência, também em vários meios, de outras delas. Imagens de pessoas que, sentindo-se abandonadas e em risco, tentaram desesperadamente fugir do Afeganistão para qualquer outro lugar. Que tentaram se afastar do perigo a que se sentiram expostas, mesmo que o custo de tal tentativa fosse, ao final, a supressão das próprias vidas. Pessoas que se agarraram a rodas de aviões – lotados ou inacessíveis a elas – que decolavam de Cabul e que mergulharam para a morte logo que as aeronaves ganhavam alguma altura. Imagens que, ao se imporem assim diante dos olhos de todos, evocam a violência associada a processos de destruição de outras tantas.
É nesse campo de disputa em que imagens são apagadas e outras se tornam inevitavelmente públicas que se tece uma política do olhar que implica, para muitos, a possibilidade de permanecer ou não vivo. Ver, afinal, não é somente ato de captura daquilo que é visto; é também abertura para a dúvida, para o que existe de interpelação das convicções do outro em cada imagem. Ver é perder certezas, é fraturar consensos estabelecidos sobre a vida que existe à volta. Nesse espaço de embate, será preciso construir ou refazer as imagens que já faltam em Cabul. Imagens que afirmem existências autônomas que não admitem ser tuteladas em seu direito de aparição pública. Em seu direito de terem rosto, mesmo quando decidam, por conta própria – sem, portanto, a imposição de outros –, cobri-los em todo ou em parte com véus. Há já imagens novas sendo criadas no lugar das que foram e certamente serão suprimidas. Para além das inevitáveis imagens de sofrimento, imagens de resistência do povo afegão tanto à tutela dos Estados Unidos quanto à coação violenta do Talibã. Imagens que afirmem outras possibilidades futuras. Como a de dois meninos que um dia fizeram, das ruas luminosas de Cabul, uma imensa sala de cinema. ///
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Lamento das Imagens, exposição individual de Alfredo Jaar com curadoria de Moacir dos Anjos, está em cartaz no Sesc Pompeia – SP até o dia 5 de dezembro.
Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010), Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.
Tags: Arte e ativismo, Cabul, Talibã