Colunistas

Da morte violenta e do bordar outro tempo

Moacir dos Anjos Publicado em: 12 de novembro de 2019

Fotografia da série Esta finca no será demolida [Esta propriedade não será demolida], 2009-2013, de Teresa Margolles.

Embora geralmente pensadas como coisas apartadas, arte e violência o tempo inteiro se esbarram e se entrelaçam. Mais ainda, partilham uma capacidade: a de afetar qualquer um através de mecanismos ou gatilhos cognitivos que vão além do que o discurso organizado oferta, lembrando que há questões para as quais, muitas vezes, a palavra falta. A arte e a violência afetam os corpos de maneira que nem sempre se sabe, de imediato, no que vai resultar. E os resultados dessas afetações são o que alguns filósofos chamam de afetos, os quais, em diferentes medidas, consolam, entristecem, enraivecem, desolam e, por vezes, fortalecem os corpos para lutas que têm que ser travadas.

Há certamente muitas maneiras de se tratar da relação entre arte e violência. Escolhe-se aqui apenas uma delas, tomando-se como guia o trabalho da artista Teresa Margolles – uma das participantes da 21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil, em exibição em São Paulo. Uma artista nascida no México e que ali desenvolveu seu trabalho maduro: em um país cuja história recente é, de várias maneiras, paradigmática da situação por que passaram ou passam vários outros países da América Latina a partir da década de 1990, incluindo o Brasil. Nesse período, o México logrou instalar uma economia integrada e funcional ao neoliberalismo mundialmente hegemônico, sem que conseguisse, com isso, soldar fraturas sociais abertas há tempos no país. Ao contrário, a transformação de sua estrutura econômica gerou resultados que, além de beneficiar poucos, reproduziu e acentuou estruturas de dominação há muito vigentes, tornando ainda mais frágil a já precária coesão entre desiguais que existia ali.

E em contexto tão instável e excludente, não surpreende que tenha aumentado a corrupção política e que tenha se aprofundado a sensação de desassistência da parcela mais destituída da população. A proliferação de ações criminosas que atam distintas camadas da sociedade mexicana é resultado quase esperado do desmanche de uma esfera de convivência e negociação de disputas que se possa chamar de pública, situação em que o narcotráfico assume inequívoco protagonismo. A brutal e crescente violência que resulta desse processo de desregulada disputa por poder e riqueza atinge, em primeiro lugar e com mais virulência, os já situados à margem da sociedade mexicana, incapazes de adotar estratégicas eficazes de proteção. E o que o trabalho de Teresa Margolles faz é propor meios para representar, no campo do sensível, as consequências últimas e mais drásticas do que tem se passado em seu país. É criar equivalências sensíveis (mesmo que limitadas e provisórias) do desmanche radical das formas consensuais de sociabilidade ali estabelecidas.

Entre meados da década de 1990 e início dos anos 2000, Teresa Margolles tomou como foco de sua produção artística aqueles sobre quem incide o ônus maior da situação de decaimento social do México: aqueles que, envolvidos ou não de modo direto nos conflitos que marcam a vida contemporânea no país, perderam suas vidas de modo violento. Usufruindo da condição de ser formada em medicina forense, a artista fez do necrotério o seu atelier. Dali recolhia a água que era usada para lavar as pessoas assassinadas antes da autópsia para produzir, com esse líquido que é índice de uma barbárie infinda, uma série de instalações e objetos nos quais devolvia, ao corpo social, a presença de quem foi dele drasticamente eliminado. Devolução que é ao mesmo tempo simbólica e material, causando incômodo imaginário e físico àqueles que inadvertidamente descobriam ter estado em contato próximo com essa água em lugares de exibição artística. Em vários trabalhos, essa devolução assumia a forma de vapor exalado em salas de exposição; em outros, de produto com o qual se molhavam os panos usados para limpar os pisos daqueles já assépticos recintos.

O que move esses trabalhos não é a mera vontade de causar um mal-estar no outro, mas o desejo de, por meio do oferecimento de algo que é próximo da matéria morta, aproximar e articular fatos, gentes e lugares que são arbitrariamente distanciados pelas narrativas oficiais da violência. Ou seja, construir narrativas distintas das oficiais, valendo-se para isso de uma gramática que é própria da arte. Talvez busque também sugerir que não há quem não esteja de algum modo implicado no estado de coisas que leva tanta gente à morte violenta no México (ou no Brasil). E que somente se tratado como assunto comum a todos, o assassinato sistemático de parte da população do país poderá vir a ser subjetivado como questão a ser de algum modo enfrentada, não devendo causar estranheza, portanto – sugere a artista –, encontrar essa violência representada, de diversas maneiras, em um museu ou galeria.

A expansão crescente da violência no México levou a artista, porém, a expandir ainda mais o ambiente onde buscava os vestígios materiais dessa realidade entrópica. Para além dos necrotérios, muitas cidades mexicanas passaram a trazer, de modo cada vez mais visível, as marcas de um brutal confronto em curso. Mudança de estratégia criativa que sugeria o quanto os limites entre necrotério e rua foram borrados, reduzindo as diferenças e as distâncias entre esses espaços. E poucos lugares ostentaram essa condição de modo tão evidente quanto Ciudad Juárez, município mexicano por muito tempo tido como o território mais violento do país. E quem é familiarizado com o livro 2666, do escritor chileno Roberto Bolaño, sabe que o que ocorreu naquela cidade serviu de fonte de informação, pelo impacto causado no escritor – então residindo no México –, para muitas das atrocidades narradas ali.

Há diversos trabalhos em que Teresa Margolles se valeu da apropriação ou criação de imagens, seguidas de sua catalogação, para articular seu discurso. Em um deles, chamado PM 2010 (2012), colecionou e fotografou todas as capas do jornal popular de mesmo nome (PM), editadas ao longo de um ano em Ciudad Juárez. Esse conjunto de imagens é comumente exibido como um extenso painel fotográfico ou como sucessão de capas projetadas uma após a outra. De maneira quase monótona, o jornal diariamente publicava, com destaque em sua primeira página, fotografias dos corpos de uma ou mais pessoas assassinadas no dia anterior na região. E no mesmo espaço privilegiado onde se mostravam os cadáveres, o jornal exibia, com a mesma regularidade, anúncios de prostituição ilustrados com fotografias de mulheres semidespidas, aproximando corpos radicalmente regulados pela morte e outros regidos pela satisfação prometida pelo sexo pago.

Fotografia da série Esta finca no será demolida [Esta propriedade não será demolida], 2009-2013, de Teresa Margolles.

Já no trabalho Esta finca no será demolida [Esta propriedade não será demolida] (2009-2013), os rastros da violência extrema de Ciudad Juárez são apresentados em uma série de fotografias que registram propriedades – algumas já arruinadas – que foram postas à venda ou simplesmente abandonadas em função da impossibilidade de se continuar vivendo ou fazendo negócios em ambiente tão inseguro. Por meio de estratégias simples, portanto, a artista sugere como a violência crônica afeta tanto o regime de consumo de imagens (no caso do jornal) quanto a ordenação cotidiana das vidas (no caso do abandono das casas). Estratégias artísticas que evocam e ampliam as práticas forenses de buscar, em detalhes dos corpos inertes nas mesas de autópsia, indícios que auxiliem a explicar o que se passou ali.

Frame da videoinstalação ¿Cómo salimos? [Como saímos?], 2010, de Teresa Margolles.

Se Ciudad Juárez foi tomada pela artista como exemplo de uma situação que atinge partes extensas de seu país, sua produção se debruça também sobre o que ocorre em mais lugares. Alguns próximos, como Anapra, outra cidade fronteiriça com os Estados Unidos onde centenas de mulheres foram assassinadas desde a década de 1990, fruto da violência que miséria, narcotráfico, machismo e abandono social produzem. Na videoinstalação ¿Cómo salimos? [Como saímos?], 2010, uma imagem da paisagem de desamparo e abandono da cidade é associada a outra imagem – feita a partir do interior de um carro fechado – de crianças que vivem em Anapra. Crianças que colam seus rostos na janela fechada do veículo e perguntam, para quem está lá dentro: “como sair dali?”. E essa é uma pergunta ambígua, já que pode se referir tanto à manifestação de um desejo de mudança (ou de fuga) das crianças que habitam aquela cidade quanto à repetição irônica de uma questão que tenha sido feita por aqueles que estão dentro do carro e que não sabem como se afastar de um lugar onde talvez tenham ido parar por engano. Pode ainda sugerir, se nesse contexto é possível esboçar algum otimismo, a convocação para a construção de uma saída conjunta, tanto para quem está aquém como para quem está além daquela divisória envidraçada, que é aqui também fronteira simbólica entre posições diferentes no mundo.

A obra de Teresa Margolles mais e mais alcança, contudo, lugares afastados de Ciudad Juárez e mesmo do México, embora partilhem, com seu país, a necessidade de tornar visível e de lidar com a violência que atinge, em particular, populações que não possuem sequer direitos mínimos já assegurados a tantas outras. Um dos melhores exemplos dessa expansão territorial de seus trabalhos é a série de “tecidos manchados” que desenvolve em diferentes países, com a colaboração de bordadeiras que vivem em comunidades marcadas pela insegurança. É um desdobramento dessa série que a artista produz e apresenta atualmente em São Paulo. Nas seis localidades anteriores que Teresa Margolles desenvolveu esse projeto (Ancón, no Panamá; Manágua, na Nicarágua; Ciudad Juarez, no México; Harlem, NYC, EUA; Cidade da Guatemala, Guatemala e Recife, Brasil), o que lhe interessou foi colocar um grupo de bordadeiras de cada uma dessas cidades a trabalhar sobre um lençol manchado pelo sangue de pessoas nelas assassinadas. Para a artista, o que importava era fazer com que as mulheres produzissem imagens bordadas ao mesmo tempo que, conversando ao redor dos tecidos, falassem sobre aspectos vários de suas vidas, incluindo a condição de insegurança que marca sua condição de mulheres pobres. Para tornar esse projeto possível, teve que mobilizar grupos de bordadeiras que concordassem em fazer um bordado coletivo sobre um tecido carregado, física e simbolicamente, da violência da cidade onde viviam. Além de conseguir, em cada um desses lugares, um tecido manchado de sangue de uma pessoa morta para servir de suporte dos trabalhos. Embora não seja possível obter tal material por vias oficiais, espanta a facilidade com que, clandestinamente, se possa conseguir, a qualquer dia, um lençol usado durante a autopsia do corpo de alguém assassinado, dada a quantidade de mortes que acontecem dessa maneira em quaisquer dessas cidades, mesmo se consideradas as diferenças de tipo e em grau de violência observadas em cada uma delas.

No Recife, em exposição feita em 2014 na Fundação Joaquim Nabuco, Teresa Margolles convidou um grupo de bordadeiras do Alto José do Pinho, bairro pobre com grande tradição de resistência cultural e política, para colaborar na realização do trabalho pertencente a essa série de tecidos bordados. Ao longo de vários dias, a artista acompanhou a feitura do bordado, conversando com as mulheres residentes naquele lugar e as estimulando a falar, para uma mulher estrangeira, sobre experiências de violência extrema e próximas a elas. Processo de partilha que é, para Margolles, talvez o mais importante dado desse projeto. No dia da abertura da exposição, as bordadeiras se instalaram em torno de uma mesa colocada na entrada da galeria, dando continuidade ao trabalho começado bem antes. Sobre o tecido manchado de sangue, várias imagens já haviam sido bordadas. E a despeito do fluido impregnado no pano que lembrava a morte de alguém, e das histórias de violência narradas entre as mulheres durante a realização daquele bordado, várias das formas feitas destacavam-se por sua delicada beleza, quase que obliterando as marcas da violência gravadas no lençol. Fenômeno que a artista associa ao que ocorre na vida comum de qualquer um, quando se agarrar ao que traz aconchego é estratégia para não sucumbir de vez à violência que cerca e ameaça. Para que não se recorde, a todo o tempo, o medo que a vida causa.

Ao final do horário de abertura da exposição, Teresa Margolles solicitou que todas as bordadeiras parassem o trabalho e o deixassem do modo como estava naquele momento, sem a preocupação de concluir as figuras ou cenas que estavam empenhadas em fazer. O tecido – testemunho e suporte da relação efêmera entre aquelas mulheres e a artista – foi então dobrado e recolhido. Manchado do sangue de uma pessoa assassinada e bordado por várias mulheres que enfrentam situações de violência, se tornou também, a partir daquele momento, vestígio de uma experiência de criação coletiva. Lençol que somente foi exibido como obra acabada quando foi juntado aos outros tecidos manchados e bordados em situações que seguiram método próximo ao adotado no Recife, embora sempre marcadas pelas diferenças que individualizam os lugares visitados pela artista.

Em São Paulo, como um desdobramento dessa série que pensava já concluída, Teresa Margolles tomou como suporte para o trabalho não um tecido que houvesse envolvido o corpo de alguém assassinado, mas um que, banhado em mistura de água e cola, foi arrastado pelo local (o Largo do Arouche, no centro da cidade) onde a travesti chamada Priscila foi morta em 2018, retendo nele vestígios materiais de um lugar que foi cena de um crime. Reunidos em torno desse tecido manchado que traz fisicamente impressa a lembrança de uma dor e de uma perda, mulheres e homens bordaram cenas diversas, muitas delas descrevendo, em meio a delicadas flores, as violências que tantos e tantas sofrem em função dos modos de existência social de seus corpos. Em volta dele, enquanto criavam imagens, pessoas de gêneros diversos puderam conversar sobre suas experiências e seus medos maiores. Mas tal como ocorreu no processo de feitura dos demais lençóis bordados, não foi somente da condição de insegurança extrema que se pode conversar ali ou que conversam quaisquer pessoas que de algum modo partilham suas impressões acerca do trabalho. Além de promover testemunhos de violências extremas sofridas ou sabidas de perto, o processo de bordar o tecido e de falar sobre ele permitiu e permite fazer projeções de um outro tempo que pode, talvez, ainda ser inventado. Um tempo esperado que difere do atual por não caberem mais nele as dores traduzidas, como cortantes equivalências sensíveis, na obra da artista. E criar condições para que se possa partilhar a imaginação de futuros – desejar juntos, portanto – é uma das coisas que a arte pode fazer face a uma situação de violência extrema. Se é muito ou pouco, não há como saber de antemão. ///

 

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010)Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.

 

 

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