As novas cores do Império Russo
Publicado em: 18 de junho de 2013Livro reúne pela primeira vez a grandiosa obra do pioneiro Sergei Prokudin-Gorskii. Ele registrou em cores a Rússia do czar Nicolau II, 30 anos antes de o primeiro filme colorido ter sido lançado no mundo
Raras vezes o título de um livro foi tão feliz. Nostalgia, o volume de 320 páginas com imagens laboriosamente captadas pelo fotógrafo russo Sergei Prokudin-Gorskii no início do século 20, é uma experiência quase sensorial. Ele faz renascer um regime moribundo – no caso, o vasto império do czar Nicolau II – em todo seu esplendor e dimensão.
Lançado em Berlim na última edição do Mês Europeu da Fotografia, Nostalgia (editora Gestalten) veio preencher a última lacuna – uma versão em livro da monumental obra do pioneiro da cor. Tornou-se assim possível apreciar também em papel impresso imagens que até então só podiam ser admiradas online ou precisavam ter os negativos de lâminas de vidro projetados em alguma superfície.
Em se tratando de Prokudin-Gorskii, nem poderia ser diferente. Tudo na trajetória deste cientista-inventor da era pré-revolução bolchevique é incomum, empolgante e sobretudo lento. A começar pela milagrosa ressurreição digital de sua obra pela Biblioteca do Congresso americano, que levou mais de meio século para ser realizada.
Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii pertenceu a uma das antigas famílias da nobreza russa cujos ancestrais serviram o país por cinco séculos. Só no 19 haviam participado da derrota para Napoleão em Austerlitz, da desforra na Guerra Patriótica de 1812 e da Guerra da Crimeia. Os interesses do jovem Sergei, porém, passavam longe de qualquer farda. Embora tivesse estudado física, matemática e química, além de ter cursado a academia imperial de medicina, sua curiosidade maior era pela fotografia, então ainda uma arte e ciência em construção.
Sergei tinha apenas dois anos em 1861 quando o físico inglês James Clerk Maxwell realizou seu histórico experimento de três filtros com o qual obteve a primeira imagem fotográfica colorida. Era precária, porém revolucionária. Ao longo das quatro décadas seguintes os melhores profissionais europeus, inclusive Prokudin-Gorskii, que já se tornara fotógrafo com estúdio próprio, se desdobraram em experimentos para obter uma gama de cores mais naturais, com nuances intermediárias.
Prokudin-Gorskii foi o mais arrojado dentre eles. Graças aos conhecimentos de química, produziu uma emulsão ultrassensível para a fixação de cores em lâminas de vidro e encomendou a fabricantes alemães uma câmera específica que atendesse a suas necessidades.
Tinha em mente um projeto quixotesco: documentar toda a diversidade natural, arquitetônica e etnográfica do Império Russo. Queria viver da venda de cartões postais coloridos que retratassem a imensidão do país.
Faltava-lhe apenas o essencial: dinheiro para a empreitada.
Foi salvo por Liev Tolstói. Na primavera de 1908, por ocasião dos 80 anos do então já mundialmente cultuado autor de Guerra e Paz e Anna Kariênina, Prokudin-Gorskii obteve permissão para fotografá-lo em sua propriedade de Yasnaya Polyana, perto de Tula.
Levou exatos seis segundos para fazer o único retrato em cores existente do escritor, que morreu dois anos mais tarde. Nele, Tolstói mais se assemelha a um patriarca do Velho Testamento do que ao homem que Nicolau II no final da vida chamou de “gênio do mal”. Reproduzido milhares de vezes desde então – em forma de cartão postal, pôster, páginas de revista ou jornal -, o instantâneo é o mais famoso retrato de um personagem da história da Rússia.
Maksim Górki, compatriota e admirador de Tolstói, assim descreveu a foto ao vê-la pela primeira vez: “Lá está ele, como um deus. Não um deus do Olimpo, mas o tipo de deus russo que se senta num banco de carvalho sob um limoeiro dourado. Não muito majestoso, porém mais astuto do que todos os demais deuses”.
O retrato de Tolstói e algumas fotografias que Prokudin-Gorskii captou em curtas viagens ao Mar Negro, Crimeia e Turquestão abriram-lhe as portas das cortes europeias e dos salões dos Romanov em Copenhague. Aproveitando-se de uma audiência com o Imperador e Autocrata de Todas as Rússias, o fotógrafo decidiu expor ao monarca seu arrojado projeto: percorreria os domínios czaristas ao longo de dez anos, numa expedição que o levaria do Ártico à fronteira com a China. Ao final, a nação estaria documentada em dez mil fotos.
Nicolau II, ele próprio um fotógrafo amador, foi fisgado pela proposta. Além de atender a sua vaidade pessoal, ela teria um propósito educacional – em cada escola elementar seria instalado um projetor e os alunos teriam a oportunidade de conhecer a riqueza e as belezas nacionais em toda a sua vastidão e diversidade.
Antes de partir em campanha, o intrépido explorador obteve autorização para circular por áreas de acesso restrito a civis. O czar também lhe cedeu um vagão transformado em câmara escura e laboratório que foi sendo acoplado aos trens utilizados para cruzar o vasto território russo.
Durante os dois primeiros anos mapeou a região industrial dos Urais, percorreu toda a extensão do rio Volga, enfronhou-se pela região da histórica Batalha de Borodino e fez duas expedições pela província Transcaspiana. Nos anos seguintes, outros rumos, novos mapas, mais fronteiras reveladas.
As imagens coletadas iam de castelos a catedrais, trabalhadores do campo a senhores feudais, barqueiros a emires, famílias judaicas a clãs de cossacos. Como seus conterrâneos, Prokudin-Gorskii não tinha a mais vaga ideia de como eram os seus compatriotas das regiões mais distantes da Rússia – como viviam, que feições tinham, que dialeto falavam, quais crenças os moviam. Daí o valor histórico e insuperável de sua obra. As imagens, originalmente reunidas sob o título “Fotografias para o Czar” e destinadas a documentar os vastos domínios do imperador, acabaram desempenhando um papel inesperado: conseguiram criar um embrião de identidade comum a uma população formada por povos que nada tinham em comum, exceto a geografia política.
A técnica da fotografia colorida da época, da qual Prokudin-Gorskii foi o grande inovador, consistia em fazer três fotos monocromáticas em rápida sucessão, cada uma através de um filtro de cor diferente (azul, verde e vermelho). Para visualizar a imagem fazia-se projeções em tela (ainda não era possível fazer cópias em papel – o primeiro filme colorido Kodak só chegou ao mercado mundial trinta anos mais tarde). Os negativos de lâmina de vidro eram colocados num projetor oblongo de lente tripla, também fabricado sob encomenda para o fotógrafo, e a reproduziam como sendo uma só, de cores vibrantes e saturadas.
Passados seis anos de expedições exaustivas e custosas, nem mesmo Prokudin-Gorskii aguentou o tranco. Como os cofres do czar custeavam apenas o transporte, o resto da empreitada ficara por sua conta e risco. E com a a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, ficara obrigado a desviar a função do vagão-laboratório para trabalhos militares.
Depois da Revolução Bolchevique de 1917, sua sobrevida como membro do Comitê de Organização do Instituto de Fotografia e Fototécnica seria tênue. Por isso, precavido, decidiu fazer de uma missão à Noruega uma viagem sem volta a sua terra natal. Levou consigo todos os negativos que conseguiu socar nas malas e terminou a vida como tantos russos anônimos que emigraram para a Europa Ocidental. Morreu na Maison Russe nas cercanias de Paris, em 1944, pouco depois da libertação da cidade pelas tropas aliadas. Está enterrado no cemitério russo de Sainte Geneviève-des-Bois.
Foi então que começou a tortuosa trajetória póstuma de sua obra.
Durante todo o período de ocupação de Paris pelos nazistas, a coleção de Prokudin-Gorskii permaneceu escondida em porões úmidos da capital francesa. Foi em 1948, no miserê europeu do pós-guerra, que os herdeiros do fotógrafo foram contatados por emissários da Fundação Rockefeller. Estavam interessados na aquisição do lote completo, que seria doado para a Biblioteca do Congresso americano. Fecharam negócio: por 4 mil dólares, 12 volumes de folhas de contato indexadas pelo autor e 1.902 negativos de lâminas de vidro trocaram de dono e atravessaram o Atlântico. Permaneceram guardados em Washington, intocados, durante mais de cinco décadas.
Foi somente em 2001, portanto quase um século depois de Prokudin-Gorskii ter superado as primeiras dificuldades técnicas da cor na fotografia, que a ciência encontrou na tecnologia digital a chave para finalmente poder mostrar ao mundo a obra do mestre russo. Através de uma técnica chamada digicromatografia, a Biblioteca do Congresso restaurou todos os negativos de lâmina de vidro e colocou esse tesouro online gratuitamente, em alta resolução, com a riqueza de informações e dados típica das grandes instituições culturais.
Desde então, uma exposição itinerante com uma seleta das 58 melhores imagens de Prokudin-Gorskii percorre o mundo.
Faltava apenas uma versão da obra em livro, para quem não gosta de degustar fotos de arte em computador ou tablet. Nostalgia, com suas 283 imagens de página inteira (US$ 73,22 pela Amazon), preenche a lacuna.
Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii retratou um império que não sabia estar às vésperas de sua maior revolução. Nada mais apropriado, portanto, que também ele, autor de obra tão arrojada, tenha sido o precursor de uma revolução – na fotografia e no seu foco.
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Todas as imagens são da coleção Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii, da Biblioteca do Congresso, com exceção do retrato de Tolstói, que está disponível na Wikimedia Commons.
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Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.