Apropriações: excesso de imagens, excedentes de sentido
Publicado em: 4 de setembro de 2019Em meados do século 20, quando a pintura abstrata parecia ter libertado a arte de seu compromisso com as aparências do mundo, a realidade – aquilo que segue existindo fora da superfície da tela – começa a habitar novamente as inquietações dos artistas. As iniciativas mais consagradas nessa direção surgem na Pop Art, que se mostra amplamente interessada não apenas nos temas da cultura de massa, mas em seu modo de produção. O crítico Hal Foster entende que Andy Warhol expõe o vazio do capitalismo como uma realidade traumática, do único modo como o trauma pode se mostrar: pela repetição de algo que é menos uma representação desse trauma, mas efetivamente sua produção (Retorno do real, 1996). Menos conhecidos, alguns artistas franceses manifestaram um interesse semelhante, reunindo-se em torno de um movimento denominado Novo Realismo. Aqui, esse reinvestimento no real aparece de forma mais racionalizada, graças a atuação do crítico Pierre Restany que, no caso, foi não apenas um comentarista, mas o idealizador do movimento.
O que significa ser realista de novo ou, mais precisamente, ser realista de uma nova forma? Não se trata mais de reproduzir as aparências das coisas, nem de explicá-las por meio de alegorias eloquentes. O que fazem esses novos realistas é referenciar o mundo demarcando, fixando ou coletando resíduos de seus acontecimentos. Por exemplo, Arman (Armand Fernandez) produziu uma série de retratos – seus portrait-robots – enclausurando numa pequena caixa objetos ligados à vida da pessoa retratada. No Portrait-Robot d’Yves Klein, Le Monochrome, seu colega dentro do movimento, ainda vemos sua fisionomia numa pequena foto inserida no canto superior da caixa. Mas aqueles que conhecem minimamente sua história poderão identificá-lo principalmente pela referência às artes marciais (a que Klein se dedicava sistematicamente), pelo livro muitas vezes citado e pela cor azul que constitui a marca de suas obras. Já Raymond Hains, outro artista do grupo, voltava-se para a paisagem urbana tomando formas pictóricas que a própria cidade se encarregava de produzir: o que fazia era deslocar para a tela restos de cartazes que se acumulavam e se sobrepunham continuamente pelas ruas.
Dessas experiências, duas lições interessam: primeiro, que investir numa relação entre arte e realidade não significa retornar a uma noção ingênua de realismo. Segundo que, em seus gestos de apropriação, esses artistas tomam as imagens não apenas como superfícies que mostram – de modo fiel ou infiel – a aparência do mundo, mas como acontecimentos que participam da realidade cotidiana. A imagem deixa de ser uma representação e passa a ser entendida como presença residual dessa realidade.
Imagem como ação
Nas teorias da fotografia, termos como “real” e “realismo” são particularmente problemáticos, porque são quase sempre empurrados para suas definições mais ortodoxas. Apesar disso, a fotografia é o exemplo claro de uma imagem que se embrenha em nossa vida social por meio da comunicação de massa e de rituais vernaculares. Mais do que uma arte, essas imagens instauram uma cultura visual ampla. E não é difícil perceber como as fotografias agenciam nossas relações sociais, a produção de memória, a construção das identidades. Mais do que ilustrar ou dar a ver a história, elas disputam entre si, em tempo real, o modo como as narrativas irão um dia dar conta do presente. Elas não apenas expressam afetos, mas são constituídas por eles. Não apenas mostram a violência, mas a produzem. Apropriar-se de uma imagem é, portanto, tomar uma pequena fração do mundo. Eventualmente, é intervir no modo como elas agenciam os acontecimentos.
Se a imagem tem a força de uma ação, a artista norte-americana Barbara Kruger reconhece na publicidade sua forma mais impositiva. Ela se apropria de imagens banais, aparentemente inócuas e um tanto familiares, fazendo intervir sobre elas frases que evidenciam o modo como participam de uma estrutura de poder. Esse texto atua como uma resposta dada em voz alta a uma proposição que, de tão corriqueira, já não se assume como normativa, mas que, ao ter sua mensagem escancarada, revela aquilo que comporta de violência. Ela enfrenta a publicidade não apenas em seu idioma mas, às vezes, em seu território: o espaço público. Militante em causas feministas, ela levou certa vez para uma rua de Ohio, a convite do Wexner Center, um trabalho que traz sobre o rosto em close de uma mulher a afirmação: seu corpo é um campo de batalha. Poucas horas depois, uma entidade ocupou o outdoor ao lado com a figura de um feto de oitos semanas, acompanhada de argumentos contra o aborto. Uma pichação sobre o trabalho de Kruger ainda modificou o texto original: sua cidade é o campo de batalha dela. Esse enfrentamento público apenas reafirma algo que a artista sabe muito bem: as imagens são, elas próprias, um campo de batalha.
Excesso de imagens
Se a imagem integra – e não apenas representa – a realidade, mais importante do que verificar seu grau de fidelidade é medir a qualidade e a extensão dos agenciamentos que produz. Daí outro tipo de aberração é notado: o que resta dessa grande inserção da fotografia na vida social é, quase sempre, um amontoado de matéria, não necessariamente um sentido. E aquilo que ela agencia talvez seja o gesto mecânico de sua própria produção e circulação, algo que, no entanto, ocupa um tempo e um espaço razoável de nossa existência. Daí que muitos artistas que se apropriam dessas imagens parecem não poder fazer muito mais do que demarcar esse vazio de sentido.
Em 1990, o artista alemão Joachim Schmid criou uma entidade denominada – numa tradução literal – Instituto para o reprocessamento de fotografias antigas, com a missão de recolher mundo afora acervos e álbuns de fotografias que tendiam a ser descartados de modo inapropriado. Seu discurso ecológico apontava para dois riscos simultâneos: de um lado, ele afirmava que “as substâncias químicas contidas em todas as fotografias representam enormes perigos para a nossa saúde”, de outro, constatava que “as fotografias em tais quantidades aumentam a poluição visual e minam nosso poder de raciocínio” (em texto divulgado pelo artista com a assinatura do Instituto). Sem uma existência jurídica efetiva, esse Instituto era parte de uma performance de longa duração que visava discutir o excesso que já era sentido desde os tempos da fotografia analógica. Ainda assim, a ação permitiu que o artista formasse um acervo de imagens que utilizou em diversas experiências. Em trabalhos mais recentes, Schmid manteve o interesse pelo caráter massificado da produção vernacular, agora potencializado pelos smartphones e pelas redes de compartilhamento. Em Other People’s Photographs (2008-11), ele organiza um universo gigantesco de imagens coletadas das redes em 96 livros, cada um deles dedicado a um tema banal e arbitrário: Comida de Avião, Pés, Portas de Geladeira, Mickey, Lego, Trópico de Capricórnio, Beijos para mim, Azul, Roxo, Vermelho, 05/11/2008 etc. É improvável que alguém seja capaz de encontrar alguma lógica na organização desses volumes e, principalmente, que consiga dar conta de conjuntos tão extensos e repetitivos de imagens. Mas o fracasso de sua coletânea é, sem dúvida, uma alegoria bem-humorada da presença inócua dessas imagens no mundo. Schmid não está sozinho. A mesma perplexidade diante do excesso aparece em outros artistas, a exemplo dos pores do sol de Penelope Umbrico (Sunset Portraits, 2010-2016) e das montanhas de imagens que Erik Kessels constrói com imagens postadas num único dia no Flickr (24 Hrs in Photos, 2012-2014).
Excedente de sentido
O excesso de imagens é uma evidência. Mas, se não é possível deter o fluxo de sua produção, a alternativa está em deter o olhar sobre o excedente de sentido que resta em algumas delas. Excesso e excedente são termos correlatos, mas distintos. Para entender a diferença, vale fazer uma pequena incursão por um raciocínio econômico: enquanto que o excesso é um desequilíbrio entre oferta e demanda, o excedente é um valor que, ao final de uma operação mercantil, ainda resta disponível para investimento, seja por parte de quem vende ou de quem compra um produto. Uma forma de compensar o excesso é antecipar a obsolescência do produto e, com isso, acelerar o ciclo do consumo. Em contrapartida, uma forma de resistir a esse artifício tem sido aquilo que chamamos de reciclagem: buscar o excedente – isto é, um valor restante – não na negociação do novo produto, mas no reaproveitamento daquilo que o ciclo de consumo convidou a descartar. Podemos então transpor esse raciocínio para o nosso campo: a produção indiscriminada de imagens resulta num desequilíbrio entre sua produção e a disponibilidade dos olhares que poderiam fruí-las. Para compensar tal excesso, acelera-se a circulação e exige-se o esquecimento precoce dessas imagens. Em contrapartida, o excedente que aqui interessa, e que se configura também como um gesto de resistência, tem a ver com a possibilidade de buscar em algumas dessas imagens descartadas sentidos ainda disponíveis ou renováveis.
Uma reflexão sobre a obsolescência da tecnologia – e também da memória produzida pelas imagens – está na base da pesquisa Algum pequeno oásis de fatalidade perdido num deserto de erros (2017), desenvolvida pelo artista Leo Caobelli. Ele recupera imagens de HDs adquiridos a quilo em depósitos de sucata eletrônica e, com elas, realiza uma série de experimentos colaborativos.
O excedente de sentido que pode ser buscado não se refere apenas ao senso comum de que todas imagens permite múltiplas interpretações. Um pouco mais forte que isso, é possível buscar nelas pensamentos recalcados, que não se deixavam apreender num dado momento, mas que seguem depositando tensões sobre aquilo que mostra. Olhando com certa distância é possível também identificar as imagens com narrativas de que, em princípio, não participavam diretamente. Ou, ainda, buscar sentidos produzidos por um destino, um uso que foi dado a elas pelo embate com outras imagens, pelo modo como foi arquivada ou esquecida, pelo descaminho que teve que cumprir até que encontrasse um olhar disponível.
Não se trata de devolver à imagem “a sua história”, mas de dar a ela “alguma história”. Mesmo que esse esforço exija alguma dose de invenção, a narrativa produzirá sentido se o olhar que interroga a imagem investir nela alguma dose de empatia. Em Uma história para os Modlins (2012), o cineasta Sergio Oksman parte de um acervo de fotos e outros documentos encontrados numa rua de Madri. O filme se esforça para remontar a história de uma família de imigrantes que havia morado naquela mesma rua: o pai, um ator fracassado que chegou a fazer uma pequena figuração em O Bebê de Rosemary, um clássico do terror dirigido por Roman Polansky; a mãe, uma pintora que pinta compulsivamente alegorias religiosas, sobretudo com temas apocalípticos; o filho, um adolescente que não suporta viver entre a frustração do pai e a obsessão da mãe. Na breve aparição que o pai tem no filme de Polansky, um rosto perdido entre um pequeno grupo de adoradores do demônio, Oksman encontra uma chave de interpretação que tem o peso de uma profecia e que irá orientar a narrativa que tenta dar conta do destino trágico dessa família. Dispondo sobre uma mesa, uma sobre a outra, as fotografias que encontra, Oksman costura não “a história” dos Modlins mas, como diz o título, “uma história para” eles.
É preciso não confundir verdade e verossimilhança: uma narrativa inventada é perfeitamente verossímil quando responde com coerência às necessidades que ela mesma instaura. Por vezes, a imagem captada de forma mais direta permanece repleta de contradições e tensões mal resolvidas. Será pela ficção que a narrativa poderá se ajustar a certas demandas contidas na imagem. É o que faz Fernanda Grigolin em Sou aquela mulher no canto esquerdo da foto (2016-18), experimento que desenvolve a partir da apropriação de um registro em filme do cortejo fúnebre do comendador Jafet, um importante industrial de São Paulo do início do século 20. Na narrativa que Grigolin acrescenta a fragmentos desse filme, ela dá voz a uma personagem que aparece de relance, como o título sugere, no canto esquerdo do quadro. Essa fala, que a artista leva ao público na forma de publicações, instalações e leituras abertas, expõe ao menos dois recalques. Primeiro, as tensões de classe que se ocultam nessas ruas ocupadas por trabalhadores, liberados do trabalho não por uma motivação própria – como na Greve Geral que ocorreu alguns anos antes e que resultou no assassinato de um trabalhador – mas para dar volume às homenagens prestadas ao patrão falecido:
Sim, sou eu. Lembro o ano, era 1923. Coloquei meu principal vestido e fui acompanhar o cortejo fúnebre em frente à fábrica. Todos estavam com suas melhores roupas, as crianças corriam por todos os lados. O Chefe da Fiação estava lado a lado do Feitor. Todos perto de mim pareciam em festa, pouco choro. Pra gente, era muito mais um dia de feriado que de dor. Nami Jafet tinha morrido, final de ano. Não me lembro muito bem do que ele morreu. (…) O enterro do Jafet foi muito diferente do Martínez, seis anos antes. Você nunca ouviu falar do Martínez!?
Segundo, reivindica para a mulher um espaço que lhe foi negado, mesmo dentro de sua classe social, como sujeito dotado de vontade política e como narradora de sua própria história.
Antes de trabalhar no Jafet eu passei por outras Fiações. Crespi foi uma delas. O lugar era inóspito, tínhamos medo da forma de agir dos Mestres, mas isso não impediu a greve. As trabalhadoras eram muito ativas. Eu as admirava. Como podiam, tão pequenas e mirradas, enfrentar assim a todos!
Um desdobramento dessa história aparece no livro A mulher é uma degenerada, de Maria Lacerda de Moura, intelectual de orientação anarquista atuante naquele mesmo período, cujo pensamento foi resgatado pelas pesquisas de Fernanda Grigolin. Na reedição empreendida pela artista, ela adiciona – também como intervenção ficcional – uma carta destinada à Maria Lacerda e assinada por “aquela mulher do canto esquerdo do quadro”. Ela assina também a tradução de um poema publicado em outro livro editado por Grigolin, Fascismo: definição e história (2019), da anarquista ítalo-uruguaia Luce Fabbri. Além do esforço de devolver – ou construir – uma voz para essas mulheres, ela convoca com esse diálogo um potencial de militância coletiva que a história não permitiu aflorar.
A apropriação perturba a autoria – essa autoridade de um sujeito sobre uma obra – não tanto porque acrescenta uma assinatura à produção de um outro. Mas, principalmente, porque demonstra que a razão que move a feitura da imagem não esgota os sentidos que ela pode acolher. Portanto, o autor nunca é plenamente dono daquilo que sua obra é capaz de produzir. Isso significa que ele pode ser surpreendido por suas imagens ou, algo ainda mais desconcertante, que pode ser lido por elas. A série Marcados, de Claudia Andujar, é um caso de “auto-apropriação” motivado por uma ampliação sintomática do sentido previsto originalmente por um trabalho documental. Andujar já tinha uma longa trajetória de documentação da cultura Yanomami e de militância pela demarcação de suas terras, quando, no início dos anos 1990, colaborou com um projeto de vacinação dessa comunidade. Como esses índios não possuíam nomes que pudessem ser registrados pela equipe médica, para identificar aqueles que já haviam sido vacinados Andujar fotografou cada um deles com placas numeradas e penduradas em seus pescoços.
Ela, que perdeu familiares em campos de concentração e que tem uma memória viva dos judeus identificados dentro dos guetos com a Estrela de Davi, viu essa memória dolorosa ser acolhida pelas imagens que produziu. É justamente essa ampliação de sentido que justifica deslocar esse trabalho de seu contexto técnico para partilhá-lo com um público mais amplo. Reconhecemos nessas imagens a boa intenção do projeto e, mais do que isso, a militância de Claudia Andujar em favor dos Yanomami. Mas elas permitem também enxergar consequências danosas desencadeadas por gestos análogos: os traumas produzidos em outros tantos corpos que foram marcados, os danos causados ao índio pelo contato com os brancos (afinal, é para compensar os efeitos desse contato que os Yanomami precisavam ter suas terras demarcadas e seus corpos vacinados), a atuação invasiva da ciência sobre sujeitos que não compreendem seus métodos e, por fim, o poder que toda catalogação implica sobre aquilo – ou aquele – que é catalogado.
Trabalhos que envolvem apropriação ou reutilização de fotografias possuem sempre um caráter performativo, porque convida não apenas a ver o que está em sua superfície, mas também a imaginar a trajetória que cumpriu, seus agenciamentos, sua transformação, suas dores e culpas que acumulou e, por fim, o reencontro com o gesto de um artista e com os olhares do público. Tornam eloquentes, inclusive, seus momentos de silêncio: seu descarte, seus recalques, suas censuras, seu esquecimento. Essa performance, mesmo que envolva a ação de um artista, é conduzida sobretudo pelo corpo da imagem, que oferece não apenas uma representação, mas sua presença, seu testemunho e os resíduos de uma história que nela se inscrevem como cicatrizes.///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.
Tags: Aprociações, Excesso de Imagens, fotografia contemporânea