Anitta e o pai de uma filha
Publicado em: 20 de abril de 2023Circulou recentemente pelas redes uma imagem da cantora Anitta, captada durante a gravação de um projeto audiovisual (possivelmente, um videoclipe), em que ela atuou junto a um modelo em uma cena de sexo oral, numa rua de uma comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro. A gravação gerou polêmica nas redes. Mesmo que o local tenha sido isolado, alguns moradores se incomodaram com o uso do espaço da comunidade para a gravação da cena. E, de modo mais amplo, muitas pessoas se incomodaram com o que foi encenado.
Numa mensagem privada, em meio a uma discussão sobre leis de incentivo, um familiar distante me enviou essa imagem. Primeiro, com a seguinte afirmação: “uma vagabunda sendo inspiração para adolescentes”. E, depois de um breve embate, uma pergunta: “você acharia normal sua filha se portando dessa forma inspiradora?”
A afirmação
Aquela foi uma mensagem privada. Mas a expressão “vagabunda” é tão conhecida que ela já traz consigo um imaginário público: enxergamos claramente o rosto daquele que julga e o corpo daquela que é julgada.
Cada um pode pensar o que quiser desta ou daquela prática sexual. E pode fazer o julgamento que quiser de obras que as mostram. Quantas vezes já vimos cenas como essa? Muitas, sem dúvida. Representações do sexo oral estão na literatura, no teatro, no cinema, na TV. Uma delas esteve num capítulo recente da novela Todas as Flores (Globoplay, 2022). Estão, obviamente, em todas as formas de pornografia.
Quantos homens que participaram dessas cenas foram chamados de vagabundos? O termo, aliás, seria inapropriado, porque nossa moralidade estabelece prioridades distintas para cada gênero: vagabundo é o homem que não responde à sua obrigação de produtividade; vagabunda é a mulher que não responde à sua obrigação de castidade.
No filme The brown bunny (2003), Vincent Gallo e Chloe Sevigny protagonizaram uma cena “real” de sexo oral. Nas entrevistas, Gallo, que também assina a direção do filme, foi convidado a comentar a decisão de mostrar uma cena tão explícita. Coube a Sevigny explicar porque aceitou um convite como esse, como foi fazer sexo oral de diante da câmera, que consequências isso teve para sua vida pessoal ou para sua carreira. O juízo dirigido a Gallo é estético, o juízo dirigido a Sevigny é moral. “Você se arrepende de ter feito?”, foi uma pergunta feita muitas vezes a ela.
Não foi com Anitta que vimos pela primeira vez uma representação de sexo oral. Mas, para muitos de nós, essa pode ter sido a primeira vez que vimos essa cena trazer tão explicitamente a assinatura autoral de uma mulher. Muda tudo.
A pergunta
Meu lugar de fala é o de um homem – branco, hétero, cis, de classe média, de meia idade – que tem muita dificuldade de entender o fenômeno Anitta. Tenho pouco a dizer sobre ela ou sobre seu trabalho. Ocupo também o lugar de “pai de uma criança” que, suponho, nunca viu ou ouviu Anitta. Mas eis que sou empurrado para uma derivação improvável desses lugares, que exige de mim um julgamento: a partir de agora, sou pai de uma filha que potencialmente grava uma cena de sexo.
Relembrando a pergunta: “você acharia normal sua filha se portando dessa forma inspiradora?” Filha, aqui, aponta para lugares muito sensíveis: 1. a pessoa que você mais ama; 2. a pessoa muito amada que, sendo criança, precisa ser protegida; 3. A criança muito amada a ser protegida que, sendo menina, precisa ter sua pureza defendida por um homem.
A pergunta recorre de forma nada sutil a uma estratégia bem conhecida da retórica aristotélica, o pathos, que convoca no ouvinte o sentimento de estar implicado naquilo que é debatido: “e se fosse você?” A imagem tem grande poder de produzir esse tipo de identificação. Só que, aqui, o pathos é convocado de uma forma mais apelativa. Quando um problema não nos sensibiliza o suficiente, uma pessoa de bem, assim como um criminoso, pode nos lembrar que pessoas que amamos podem estar também sob risco. “Imagine se fosse sua filha” é a versão moralizada do “eu sei onde sua filha estuda”. É igualmente uma ameaça.
“Se fosse minha filha (ou irmã, ou esposa…)” é também o único modo pelo qual muitos homens conseguem produzir alguma empatia diante de uma história de violência contra a mulher. A imagem abalada do pai, mais do que o corpo ferido da mulher, é o termômetro que mede a gravidade dessa violência.
A figura moral do pai também pode ser convocada para justificar que homens legislem sobre os espaços da mulher. Em seu discurso no Dia da Mulher, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), vestindo uma peruca loira, reivindicou “a liberdade de um pai recusar” que uma mulher trans utilize o mesmo banheiro que sua filha. Dentre as tantas violências produzidas por esse discurso, esta certamente não é a maior, mas é sintomático supor que a frequência de um banheiro feminino deva ser discutida a partir do que se considera as liberdades de um pai.
“Pai de uma filha” é um lugar enviesado, porque se constrói na tensão entre desejos que o homem projeta sobre a mulher e a obrigação que esse mesmo homem, agora pai, tem de proteger a mulher, agora filha, desse mesmo desejo masculino. Essa responsabilidade exige supor que a mulher nunca é sujeito, mas sim objeto do desejo de um outro: do desejo de um homem de possui-la, do desejo de um pai de protegê-la.
Proteja-me do que eu quero
Ao comentar a gravação de Anitta, imprensa e público se referiram ao que viram como “simulação”. O termo não é neutro, ele implica um desejo e um julgamento. Dificilmente diríamos que, na gravação de uma ficção – de um videoclipe, um filme ou uma propaganda – certo ator simulou uma luta ou um assalto. Ele encenou uma luta ou um assalto, ele atuou numa cena de luta ou de assalto. Esse é seu trabalho, esse é seu papel naquele momento.
A ideia de “simular” se coloca em algum lugar entre “encenar” e “realizar”. Simulação é, num sentido vulgar, uma representação que almeja se passar por realidade. De onde vem essa confusão entre encenação e vida real? Ninguém chegou a supor que Anitta tivesse sido flagrada fazendo sexo oral na rua. Se existiu, essa confusão se refere menos ao desejo de Anitta de mostrar a cena como se fosse verdadeira, do que ao desejo do público de encontrá-la como realidade. Esse desejo tem na imagem que carregamos de Anitta uma possibilidade de satisfação. Simular é também representar uma potência, uma capacidade do real. Pesa ali o prejulgamento de que, mesmo que não tenha feito, Anitta seria perfeitamente capaz de fazer aquilo que encenou.
Freud não deixou de considerar o olhar como via de expressão de pulsões sexuais (uma “pulsão escópica”), que pode ser satisfeita ou recalcada. A psique atua de forma conflitante em ambas as direções. A imagem, por sua vez, materializa esses dois desfechos: ela é o lugar de acolhimento do desejo e, simultaneamente, é também a representação do que não pode ser desejado. Daí o gozo de procurar e disseminar insistentemente imagens daquilo que se condena.
A história da arte está repleta de exemplos de representações da tentação e do pecado tão exuberantes que só podem ser produtos desse tipo de gozo. O pintor flamengo Hieronymus Bosch (século 15) é um exemplo. Os surrealistas tentaram fazer dele um homem com uma imaginação a frente de seu tempo, um surrealista avant la lettre, alguém que talvez tenha sido capaz de enfrentar seus sonhos e desejos mais obscuros. Mas a verdade é que Bosch foi um cristão fervoroso atormentado pelas tentações do corpo. Ele mobilizou toda sua imaginação para representar muitas configurações possíveis do pecado, assim como as respectivas punições que os pecadores encontrariam no inferno. O exemplo mais conhecido disso é o tríptico O Jardim das delícias, pintado por volta de 1500. O resultado é ainda hoje surpreendente. É muito provável que Bosch, ao imaginar esses pecados, sentisse um calor correndo em seu corpo, que talvez ele entendesse como uma presença do demônio a ser expurgada pela pintura. Essa missão nobre o convocava a seguir pintando obstinadamente essas cenas que produziam nele sensações tão inadmissíveis.
Outro exemplo: anos atrás, fiz uma pesquisa para uma exposição de imagens e obras do acervo do Museu da Imagem e do Som, de São Paulo. Ali me deparei com várias caixas de certificados de censura dos anos 1970 e 80, documentos pelos quais um representante da ditadura – o censor – autorizava ou não a exibição de um filme, definia o horário e faixa etária adequada à obra e, quando necessário, impunha cortes de algumas cenas. É curioso que, após anos de atividade, esses homens não tenham desenvolvido um método mais técnico para indicar tais cortes, o que os obrigava a reproduzir falas e descrever as cenas a serem retiradas. Só consigo imaginar uma repartição pública cheia de masturbadores zelando pela família brasileira.
“Proteja-me do que eu quero”, diz um luminoso instalado pela artista norte-americana Jenny Holzer, em 1985, numa rua de Nova York. Esse é o estranho mecanismo do desejo que faz com que homens de bem busquem e compartilhem imagens que exibem o corpo da mulher, seja para condená-las, seja para denunciar uma exposição que eles próprios alimentam.
Imagem e violência
A imagem é capaz de influenciar comportamentos? Sem dúvida. Não por um determinismo simplista, como se certa imagem, isoladamente, pudesse ser o gatilho de atitudes repentinas. É precipitado supor que adolescentes atirem em colegas de escola porque jogam certo game violento, ou que a sexualidade da criança se defina por duas ou três mensagens subliminares supostamente encontradas nos desenhos da Disney. Repetidas e escancaradas ao longo do tempo, às vezes, ao longo da história, certas imagens constroem visões de mundo, atribuem papéis, produzem parâmetros de beleza e felicidade, dão forma aos desejos.
Tradicionalmente, somos nós, homens, que produzimos e consumimos essas imagens. São os homens que precisam ver mulheres seminuas para escolher sua cerveja ou para visitar o stand de lançamento de um carro num evento da indústria automobilística. É importante debater o quanto a cultura reitera uma imagem erotizada da mulher. Mas uma das estratégias pelas quais as mulheres têm lutado contra a objetificação do corpo feminino é assumir o controle sobre a produção e circulação dessas imagens.
A pornografia é talvez o exemplo mais ousado disso. Ela é tradicionalmente produzida por homens e para homens. Ao ignorar o desejo, os limites e a diversidade do corpo da mulher, essas produções toleram, estimulam e produzem representações e ações de violência contra ela. Para fazer frente a isso, muitas iniciativas feministas investem contra o consumo desses conteúdos, como o grupo WAP (Woman Against Pornography), baseado em Nova York nos anos 1970 e 80, ou ainda, mais próximos de nós, o projeto Recuse a Clicar. Mas há também mulheres que, dentro de uma perspectiva denominada “feminismo sexo-positivo”, militam pela reinvenção do gênero e conquistam espaço como produtoras de filmes adultos, tendo como foco – ou, ao menos, não ignorando – o prazer da mulher. A cineasta sueca Erika Lust é, provavelmente, a mais conhecida dessas produtoras.
Se nos fixarmos na imagem de uma mulher dirigindo “nosso” pornô, esse será provavelmente o exato momento em que, repentinamente, nos ocorrerá pensar na imoralidade da pornografia. Porque será a hora de tomar consciência de que esses conteúdos também podem ser consumidos de forma fluida pelas mulheres que amamos, pelas quais deveríamos zelar.
O problema com a imagem de Anitta não é o que ela nos mostra: a representação de um corpo que, afinal, sempre estivemos dispostos a consumir. O problema é a “expropriação de meios de produção” que sempre foram nossos, para usar uma analogia com o marxismo que já foi proposta por diversas teorias feministas. Ao assumir o controle das representações de seu corpo, Anitta se emancipa. Agora, suas imagens respondem a seu próprio desejo, antes de se dirigir ao nosso. “Entenda! A bunda de Anitta é sujeito e não objeto”, disse a pesquisadora Ivana Bentes a respeito de um clipe produzido pela cantora há alguns anos.
Uma resposta
Um pai tem a obrigação de garantir a segurança de sua filha e tem o direito de falar por ela. Na prática, não é tão simples. Junto com as primeiras frases mais ou menos articuladas de uma menina, vêm perguntas que não conseguimos responder, algumas vezes por ignorância, outras, porque patinamos na escolha das palavras adequadas. Descobrimos também que nossos valores mais enraizados reproduzem violências que, se houver um pouco de espaço, a criança não deixará de apontar. Se não houver, essas violências só irão se agravar.
Em 2002, circularam por e-mails e sites fotos de jovens transando num quartinho, numa festa organizada pelo Diretório Acadêmico da FGV-SP. As cenas foram registradas por uma câmera escondida. Situações desse tipo, cada vez mais recorrentes, são mais um exemplo de imagens produzidas e disseminadas por homens. Naquela ocasião, todas as atenções e todo o trauma recaíram pontualmente sobre as mulheres que foram reconhecidas, e também sobre suas famílias. A despeito da violação daqueles corpos pelas imagens, essa é a típica hora em que ouvimos: imaginem o pai dessa menina! É possível que o terror que recai sobre as adolescentes que vivem uma situação como essa venha não apenas das fotos ou vídeos vazados: os corpos expostos nessas imagens se tornam obscenos diante de valores representados por essa figura moral do pai que deve zelar pela imagem de sua família. Trata-se de um confronto de imaginários.
É possível para um pai se despir desse papel? Não é óbvio. Mas, ainda naquele contexto, lembro de um pai que, abordado pela imprensa, disse algo mais ou menos assim: “minha filha tem uma vida sexual ativa, é feliz, e a única coisa condenável nesse episódio é o fato de que alguém gravou e publicou essas imagens sem consentimento”. Essa fala certamente não encerrou a questão, mas esvaziou o imaginário dos moralistas de plantão em torno do que é ter uma “filha vagabunda”. Não encontrei esse depoimento para reproduzi-lo com mais precisão, porque uma decisão judicial exigiu que publicações que traziam imagens e nomes das pessoas envolvidas fossem retiradas do ar. Ao menos, essa foi a fala que eu quis guardar na memória. Os acontecimentos em questão são muito diferentes. Mas parto dessa história para esboçar uma resposta à provocação que me foi feita por aquele familiar. Espero que minha filha seja feliz e que desenvolva sua sexualidade na direção e dentro dos limites do que ela considere prazeroso e saudável. E acrescentaria duas coisas, que repetirei para mim mesmo até o dia em que eu consiga dizer para ela com alguma segurança: espero que, muito antes de chegar à idade de Anitta, ela possa falar por si mesma e que não precise lembrar de mim quando sua conduta for questionada. E espero que, se alguém tiver que produzir imagens de sua intimidade, que seja ela própria. Até lá, em meio a tantas fraquezas que ela revela em mim, gostaria sim de poder protegê-la de pessoas que chamam mulheres de vagabundas e que fazem perguntas do tipo: e se fosse sua filha? ///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.