A fotografia na 33a Bienal de São Paulo
Publicado em: 23 de novembro de 2018Logo que entramos no Pavilhão da Bienal, chama a atenção uma grande parede de cor laranja, aparentemente vazia. É preciso avançar um pouco para perceber nela, um tanto deslocada e desproporcional à sua extensão, uma pequena foto. Chegando mais perto, enxergamos o fragmento de um edifício, uma imagem simples, correta, apenas isso. Tanto a parede quanto a foto são obras da alemã Andrea Büttner (Fabric Wall – Orange e Karmel Regina Martyrum Berlin, 2018). Não há ali qualquer questão pontual dedicada à fotografia, mas essa quase desaparição da imagem é, sem dúvida, uma experiência proposta pela artista. Exercitamos ali algo que ajuda a pensar no que vem adiante.
Para identificar o lugar que a fotografia ocupa na 33a Bienal de São Paulo é preciso não querer encontrá-la rápido demais. É preciso fruir sua desaparição. Acima de tudo, é necessário libertar-se da ansiedade de vê-la celebrada como arte, sentimento pouco produtivo que herdamos de uma longa história de tensões entre fotógrafos e artistas. Encontraremos sim exemplares de uma grande fotografia, sejam eles medidos pela relevância da experiência que produzem ou pela exuberância da montagem. Mas não muitos. E passaremos umas tantas vezes por outras fotografias que nada se esforçam para exibir um gesto autoral singular. Esse não é um debate proposto pela curadoria. É apenas o reflexo da diluição que a fotografia experimenta, não propriamente na Bienal, mas na cultura contemporânea.
Breve recuo
O debate sobre o lugar da fotografia na Bienal de São Paulo estava carregado de urgência quando, em 1953, o Foto Cine Clube Bandeirante conquistou uma sala dedicada às fotografias de seus associados, na segunda edição do evento. A militância do fotoclube se fez ver ainda em mostras especiais ocorridas na 8ª (1965) e na 9ª Bienal (1967). Esse espaço perdeu seu sentido nas edições seguintes, quando o regulamento das bienais deixou de se pautar pela especificidade das linguagens artísticas. O fim das mostras de fotografia representa a oportunidade de sair de um lugar segregado para permear, de forma mais fluida e consequentemente menos destacada, a construção das curadorias. Nas últimas décadas, a discussão sobre o valor artístico de determinada linguagem se tornou irrelevante na mesma medida em que os artistas deixaram de se preocupar com a denominação dos procedimentos diversos que constituem seu fazer. O problema se resolve pelo esvaziamento da pergunta mais do que pela capacidade de impor uma resposta.
E como fica, afinal, a fotografia nas bienais? A questão ainda pode ser colocada, mas adquire um valor muito circunstancial. Como se, por um interesse muito particular, alguém perguntasse: e a litografia na Bienal? E a pesquisa cromática na Bienal? E a produção holandesa na Bienal? E essa atenção pontual pode ser criada não só por predileções, mas também por certas desconfianças. É o caso do protesto feito por Ferreira Gullar, na ocasião em que a 29a Bienal divulgou a lista de seus artistas convidados. Intuindo a presença destacada de uma imagem que lhe parecia muito direta, Gullar temia encontrar ali um “festival de cinema, fotos e vídeos para nos mostrar a realidade que já conhecemos” ( ver “A pouca realidade”, Folha de S.Paulo, 7/3/2010). Para aquela curadoria, tratava-se menos de valorizar essas linguagens, e mais de explorar a estratégia do documentário como forma de se posicionar politicamente diante de alguns temas emergentes (aliás, ao contrário do que incomodou Gullar, a ausência desse enfrentamento mais explícito de certas pautas é justamente o que levou alguns críticos a acusar a 33ª Bienal de permanecer alheia à realidade que a cerca).
Em seguida, a 30a Bienal trouxe uma variedade ainda maior de trabalhos em fotografia, dedicando a eles espaços privilegiados que, às vezes, ganhavam o peso de exposições individuais. Tivemos nessa edição nomes consagrados como August Sander, Hans Eijkelboom e Alair Gomes, e produções menos conhecidas, mas igualmente surpreendentes, como as de Mark Morrisroe, Horst Ademeit, Alfredo Cortina, Edi Hirose e do Studio 3Z. Para aqueles que buscam especificamente a fotografia, por gosto, pelo recorte de suas pesquisas ou por militância em favor de seu espaço, essa foi uma Bienal muito marcante.
De volta à 33a
Menos do que garantir a presença de destaques, o curador-geral Gabriel Pérez-Barreiro investiu numa estratégia que coloca em evidência a relação entre projetos e experiências. Na prática, isso foi feito pela descentralização da curadoria, responsabilidade que foi dividida com sete artistas. Cada um deles teve liberdade de conceber um núcleo expositivo independente com suas obras e também com a de outros artistas que convidaram, a partir do que foi denominado “afinidades afetivas”, o tema geral desta edição. Pérez-Barreiro não deixou de dedicar alguns espaços a projetos individuais. De todo modo, esses ambientes partilhados ajudam a dissolver o fetiche que muitas vezes recai sobre a obra de personagens célebres.
Geometria do desejo (2008), instalação fotográfica de Miguel Rio Branco, é uma micronarrativa que poderia facilmente ser protagonista de seu próprio território. Mas, dentro da seleção feita por Waltercio Caldas, tanto as linhas que vemos nas imagens quanto a topografia construída pela instalação de Rio Branco produzem forte analogia com formas que encontramos em todo esse espaço. É como se a geometria deixasse de ser a metáfora que fala de uma mecânica do desejo para se tornar o próprio objeto desejado. Mesmo que já tenhamos visto essa obra em outras montagens, ali, torna-se difícil imaginá-la fora do conjunto.
Sofia Borges é das artistas-curadoras convidadas por Pérez-Barreiro. Ela partiu de uma pesquisa sobre a tragédia para reunir artistas com trabalhos muito distintos, articulados por um espaço cenográfico e labiríntico que se impõe também como obra. São como pedaços de narrativas e acontecimentos coletados de culturas diversas e que, reunidos, compõem uma memória coletiva de uma vasta mitologia. Com seu próprio trabalho, Borges garante um lugar relativamente destacado para a fotografia. Ela mostra em montagens de grande formato detalhes de pinturas e composições com máscaras e esculturas. Como em séries anteriores, são imagens de imagens que fazem a linguagem patinar em sua promessa de dar conta da realidade.
A fotografia opera aqui menos como linguagem autônoma e mais como instrumento de apropriação. Mas sabemos o quanto esse gesto de deslocamento pode transfigurar um objeto. É também o que acontece, dentro desse mesmo núcleo, com os registros feitos em uma tribo da Patagônia pelo etnólogo austríaco Martin Gusinde, no início do século 20. Apesar de não haver intervenções evidentes, essas imagens adquirem um estatuto muito diverso daquele que, no passado, visava conformar a alteridade do índio ao domínio de um discurso científico. Deslocados desse contexto, essas imagens nos olham, atravessam nosso caminho e nos despem daquela autoridade.
Se Waltercio Caldas recusa o domínio da obra pelos discursos teóricos, Sofia Borges parece às vezes abusar deles, com textos e entrevistas que trazem muitas referências, mas que nos chegam quase sempre dispersas e incompletas. Felizmente, ambos ultrapassam aquilo que denegam ou afirmam: apesar de se propor conceitual, a exposição concebida por Borges tem força plástica suficiente para tornar proveitoso o silêncio desse momento em que as palavras falham. E, apesar de privilegiar a forma, as obras de Waltercio ganham ainda mais força quando acessamos e desdobramos algumas de suas referências.
Por exemplo: na entrada de seu núcleo, ele apresenta Marcador universal (2014), conjunto formado por uma pequena estrutura metálica apoiada num livro aberto que traz, à esquerda, Edgar Allan Poe (fotografado por Mathew Brady) e, à direita, Charles Baudelaire (fotografado por Étienne Carjat). Esses não são apenas escritores de idiomas distintos que se sucedem numa linha do tempo da história da literatura. Tanto mais interessante se soubermos que Baudelaire foi um leitor dedicado de Poe e que empreendeu um projeto de tradução de seus contos para o francês. Isso fertiliza a imaginação. Eu, por exemplo, penso em quanta coisa acontece entre esses olhares que se tocam quando o livro está fechado. E vejo no delicado marcador tridimensional que Waltercio apoia sobre seus corpos uma dimensão que o livro projeta para fora do plano da página, assim como para fora da linearidade da história. Mais ou menos como acontece com esses livros-origami infantis que fazem saltar suas paisagens e personagens.
Dentro do núcleo de Mamma Andersson, outra das artista-curadoras, encontramos mais um nome familiar ao público interessado na fotografia: Miroslav Tichý, artista tcheco falecido em 2011, conhecido como um outsider que, dentre tantas excentricidades, exercitava seu voyeurismo fotografando mulheres nas piscinas, nos parques e nas ruas com câmeras e lentes que ele mesmo construía com materiais improvisados. Conforme explica Andersson, seu núcleo é composto por figuras que sempre foram referências para ela e que compartilham entre si uma condição de vida solitária e marginal. Mas, ao contrário do que ocorreu com a maioria das mostras de Tichý, a pequena série trazida à Bienal não está apoiada em dados biográficos relacionados à sua personalidade antissocial, a seus surtos psicóticos ou à sua aparência indigente. Não há drama, apenas um clima melancólico para o qual Tichý contribui com um olhar que investe insistentemente num objeto de desejo que jamais parece alcançar.
Uma das experiências imersivas mais marcantes que encontraremos é produzida pela instalação Ex-sito (2018), concebida pelo argentino Sebastián Castagna para o núcleo sob curadoria de Claudia Fontes. Somos convidados a entrar em grupos pequenos numa sala muito escura, com passos inseguros, tendo como única referência alguns ruídos pouco definíveis que foram gravados dentro e no entorno do pavilhão da Bienal. Na medida em que o olho se acomoda ao ambiente, começamos a enxergar imagens tênues projetadas no chão e na parede. Percebemos que as imagens têm movimento e reconhecemos a paisagem e a arquitetura. Com dois orifícios em sua superfície, a sala funciona como uma câmara escura que capta imagens do parque e do pavilhão.
Além (ou aquém) da arte: a fotografia como cultura visual
Mesmo que possamos arrancar desse pequeno recorte um bom debate sobre a fotografia, seria exagero dizer que ela tem, dentro desta Bienal, um lugar de destaque. Mas a fotografia está lá também em manifestações menos imponentes, operada como anotação, como relato, como instrumento de pesquisa, como pequena memória, como forma de colecionar e catalogar o mundo.
Alguns trabalhos de Aníbal López, artista guatemalteco falecido em 2014, compõem uma das doze exposições de projetos individuais. Em sua sala, vemos um conjunto de performances realizadas entre 2000 e 2007, mostradas por pequenas séries de registros fotográficos e textos descritivos bastante sucintos. Nas últimas décadas, temos visto muitos exemplos de como as ações efêmeras realizadas por artistas retornam aos espaços expositivos por meio de seus resíduos e documentações. Assim, o diálogo entre performance e fotografia já constitui uma pequena tradição. Em alguns casos, a ação pode ser conduzida em função da presença da câmera, garantindo às imagens uma força plástica bem calculada. No caso de Aníbal López, os registros são certamente planejados. Mas seus painéis não possuem grandes apelos formais, funcionam simplesmente como uma espécie de relatório, apenas ajustado a uma escala expositiva.
O norte-americano Mark Dion, que integra a curadoria de Antonio Ballester, apresenta uma instalação que lembra um pequeno gabinete científico do século 18 (Estação de Campo: Parque do Ibirapuera, 2018). Ali, encontramos o resultado de um trabalho colaborativo realizado no contexto da Bienal, que envolveu outros artistas numa experiência de observação da fauna e da flora locais. Não faltam exemplos históricos de expedições científicas que reuniam artistas para dar conta das paisagens e comportamentos pitorescos que, em grande medida, motivavam as viagens (foi assim, por exemplo, que Hercules Florence chegou ao Brasil no século 19). Os desenhos convocados por Dion dialogam com essa tradição artístico-científica, mas assumem sua condição de pequeno relato, incluindo dejetos e objetos perdidos (um botão de roupa, uma caneta, uma embalagem de preservativo…) que, no entanto, também constituem a paisagem do parque. Uma outra parede dessa instalação é ocupada por fotografias de pássaros registrados por Dion nesse mesmo entorno. Apesar do espaço generoso dedicado a elas, essas imagens – impressas de forma caseira e coladas displicentemente na parede – compõem não exatamente uma obra fotográfica, mas um estudo para seu projeto.
O espaço sob a curadoria de Alejandro Cesarco é aquele que mais nos ensina sobre o modo como elementos de uma visualidade cotidiana e diversa conquistam seu lugar na arte contemporânea. Ainda do lado de fora da sala, o artista-curador traz duas obras pouco solenes: uma fotografia distorcida (como imagens que encontramos na internet publicadas fora de proporção), e um cartaz com o título e os nomes dos artistas convidados desse núcleo, mas situado num lugar tão deslocado, que aparenta ter sido colado clandestinamente. São imagens que parecem estranhas àquele contexto, mas que, ao mesmo tempo, são muito familiares ao olhar.
Dentro dessa mesma exposição, vemos outros tantos trabalhos que lidam com formas e estratégias residuais da cultura, e não apenas por meio da fotografia. Por exemplo, o índice onomástico de um livro inventado por Cesarco (O estilo necessário – excertos, 2014), ou um obstinado inventário de variações de luz que incidem sobre um mesmo copo, pintado por Peter Dreher (Dia a dia bom dia, 1975-2011) ou, ainda, uma espécie de biografia construída por Matt Mullican a partir de microacontecimentos, quase à maneira do que, mais tarde, viriam a ser nossos posts no Twitter (Sem título – Lista do nascimento até a morte, 1973). Com a mesma estratégia de diário, este último artista constrói vitrines em que organiza suas “cosmologias”: desenhos, experimentações cromáticas e registros com os quais parece querer catalogar de forma sintética todas as coisas do mundo. Uma das mesas, composta por séries muito variadas de fotografias, recebe o título sugestivo de Mundo sem moldura – Fotos do mundo real (1973).
Ainda nesse núcleo, dois trabalhos de Sara Cwynar compilam imagens extraídas de enciclopédias, buscando assuntos que, por sua banalidade e recorrência, poderíamos classificar como pop: numa delas, encontramos Brigitte Bardot, na outra, bananas (Grade de Enciclopédia – Bardot e Grade de Enciclopédia – Banana, 2014). Uma régua nos ajuda a perceber a escala das imagens, enquanto o dedo da artista invade a foto para segurar e apontar o objeto catalogado. A régua, o dedo e a fotografia operam como indicadores (índices, como dizem as teorias semióticas) que dispensam uma energia demasiada para atrair nossa atenção para coisas que já são suficientemente visíveis. Sem nenhuma exuberância, esses trabalhos produzem uma poderosa alegoria de como as imagens operam no mundo.
Por fim, o artista que mais conscientemente explora o alcance e a fluidez atual das imagens é Bruno Moreschi (Outra 33 Bienal, 2018). Em um dos projetos individuais trazidos por Pérez Barreiro, ele investiu na construção de uma base de dados sobre a própria exposição, formada por registros de seu processo de montagem, comentários de funcionários sobre as obras, vídeos captados por visitantes, e outras imagens e textos analisados por sistemas de inteligência artificial. Pode ser exaustivo localizar e percorrer o trabalho de Moreschi. Porque, assumindo essa fluidez, o projeto não está circunscrito ao espaço expositivo e à duração regular de uma visita. O trabalho está essencialmente fora, e não apenas porque os guarda-volumes nas entradas do Pavilhão foram os lugares escolhidos para exibição de alguns de seus fragmentos. Seu espaço é desterritorializado porque a experiência se realiza mais plenamente nas redes. E seu tempo é dilatado porque torna visível a etapa de preparação da Bienal e porque, em tese, pode ser alimentado continuamente. Não é simples orientar-se dentro desse volume de informações. Mas, se uma narrativa não se constitui facilmente, fica pelo menos o gesto político de deixar desta Bienal uma memória coletiva, mais crítica e menos institucionalizada.
Enquanto percorro as exposições da Bienal pensando neste texto, encontro visitantes fazendo selfies e compartilhando seus pequenos achados. Também professores registrando a visita de seus alunos, profissionais coletando cenas para reportagens ou relatórios, e uma quantidade razoável de estudantes e pesquisadores – eu entre eles – usando a fotografia como forma de anotação para um futuro trabalho. Pode soar irônico deslocar a atenção para esses acontecimentos vulgares em torno das obras. Mas não é. Porque é nessa mesma condição que encontraremos a fotografia sendo operada por muitos artistas que estão lá. Não que essa diluição da imagem em gestos banais seja um valor defendido pelos artistas. É apenas um sintoma da cultura que se manifesta em suas obras.
Se as fotografias da Bienal se confundem com aquelas que já vemos todos os dias, uma exposição de arte ainda representa uma oportunidade singular de desaceleração dos sentidos. A questão não é tanto a de saber quais obras se destacam ali dentro, mas o quanto essa experiência constrói uma sensibilidade que nos permite retornar ao mundo e, vez ou outra, destacar as imagens dos fluxos que as tornam invisíveis.///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica (www.iconica.com.br).
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