Diário de viagem #2: poeira, barulho e tédio em Apartadó, Colômbia
Publicado em: 22 de fevereiro de 2016O coletivo Trëma esteve na Colômbia com o intuito de registrar lembranças de um recém-imigrado para o Brasil. O trabalho faz parte do projeto Memento, vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS de 2015, e foi realizado em várias cidades do estado de Antioquia, no noroeste do país. O texto abaixo é de Tomás Chiaverini, colaborador do Trëma neste projeto.
Apartadó é uma cidade quente, barulhenta e desordenada da Colômbia. Um aglomerado de construções de cimento que raramente ultrapassam os dois andares. Prédios simples e desprovidos de charme, erguidos no meio do enorme bananal que se estende pelo noroeste do país, numa região conhecida como Urabá. A maior parte de suas ruas é de cascalho esburacado e o tráfego intenso de motocicletas, microônibus e caminhões revolve um pó fino que está em toda parte. Por ali, as leis de trânsito não dizem muito. Pré-adolescentes sem capacete pilotam motocicletas de escapamento aberto, caminhonetes estacionam sobre a calçada, charretes trafegam na pista da esquerda, pedestres atravessam sem olhar. Buzinas são usadas como um instrumento básico de comunicação.
Apartadó é uma cidade inóspita. Dentre seus moradores, são raros os que não cultivam a esperança de viver em outro lugar do planeta. E, dos que não nasceram ali, a maioria se assentou por falta de opção.
Parte deles é formada por camponeses fugindo dos violentos embates nos quais, ao longo de seis décadas, vêm se engalfinhando Farc, Exército, paramilitares e vários outros grupos guerrilheiros como ELN e ELP. Outra porção é formada por trabalhadores que no início dos anos 1990 tiveram de abandonar suas casas nas fincas, depois de a União Europeia tornar mais rígidos os pré-requisitos para seus fornecedores de banana. Entre as novas exigências estava a proibição de lançar agrotóxico sobre os lares dos trabalhadores, o que até então ocorria sistematicamente nas fumigações aéreas.
Um número considerável desses refugiados internos chegou a Apartadó sem nada e ergueu suas casas onde foi possível. O maior bairro da cidade, El Obrero, começou assim, como uma ocupação. No início da década de 1990 era tida como a maior da América Latina, com mais de 20 mil pessoas.
A violência não deixou de perseguir os fugitivos na terra recém-conquistada. Em 1994, uma festa de arrecadação de fundos para compra de materiais escolares foi invadida por guerrilheiros das Farc, armados com fuzis M-16. Ao que tudo indica, eles buscavam exterminar membros do Exército Popular da Libertação (EPL). O grupo guerrilheiro havia se desmobilizado para atuar legalmente na política, o que o colocava no alvo dos que defendiam a força bruta.
“Não matem as mulheres” foi a principal instrução dada pelos comandantes da ação, segundo contou uma testemunha a um jornal local. Trinta e cinco pessoas foram assassinadas naquela noite. Incluindo mulheres.
Esse está longe de ser um episódio de violência isolado na história de Apartadó. Não são poucos os prédios da cidade que ainda exibem marcas dos tiroteios que duravam horas e horas. Enquanto a guerra explodia ao redor, os moradores – jogados no chão, escondidos atrás de barricadas, metidos embaixo das camas – frequentemente sequer sabiam quem estava lutando, ou qual era o motivo específico da balacera da vez.
Agora, com as negociações de paz entre o overno e as Farc em processo avançado, a violência arrefeceu na região de Urabá. Mas segue presente, numa lembrança coletiva que parece alertar o tempo inteiro para o fato de que cessar-fogo não é paz. E, vez ou outra, dá as caras em episódios de matança esporádica. Há algumas semanas correu um boato de que cinco supostos bandidos haviam sido mortos em Turbo, um município vizinho. Os algozes teriam sido paramilitares e o método escolhido, golpes de machete.
Apesar disso, nos dias de hoje, essa tensão parece oculta em meio à poeira, às buzinas e à música em volume ensurdecedor que ecoa a cada esquina. Uma algazarra permanente que se intensifica nos finais de semana, quando a cidade inteira parece se devotar à embriaguez. Nesses dias, a impressão que se tem é de uma tentativa conjunta e desesperada de fugir do tédio. Ou de tentar afogar em aguardiente as mágoas acumuladas durante as jornadas de doze horas diárias que dominam a semana dos operários bananeiros.///
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