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Kyotographie e os olhares sobre a humanidade

Guilherme Tosetto Publicado em: 8 de maio de 2025

Da série As Crônicas de Quioto, de JR, Japão, 2024 © JR

A cidade de Quioto está superlotada de turistas na primavera, período em que acontece o Kyotographie, o festival de fotografia mais importante do Japão e de relevância internacional. O tema escolhido para a 12ª edição, Humanidade, é amplo o suficiente para abarcar trabalhos com diferentes perspectivas — desde questões de gênero e identidade até transformações sociais como o turismo em massa, fenômeno que tem preocupado o Japão nos últimos anos.

Na apresentação do tema, os codiretores Lucille Reyboz e Yusuke Nakanishi defendem um maior entendimento da humanidade e a busca por inspirações para mudanças em um mundo caótico, utilizando a fotografia como meio. Eles comentam que o tema do festival serve como um fio condutor para toda a edição e ajuda a orientar a seleção dos artistas participantes, “no entanto, o processo é bastante orgânico: às vezes, o trabalho de um artista ou um projeto específico pode influenciar e enriquecer a forma como o tema é abordado ou até mesmo alterar sua interpretação”. Essa abordagem se reflete tanto nos trabalhos selecionados quanto na forma como as imagens são apresentadas. Ao ocupar casas tradicionais e locais fora do circuito habitual, o evento convida o público a experimentar a fotografia com outro tempo e olhar: em vez de respostas fáceis, oferece imagens que tensionam as narrativas visuais dominantes – uma tentativa de reconexão com o essencial em um mundo saturado de imagens e urgências.

Enquanto nos pontos mais visitados da cidade turistas disputam espaço para fotos e selfies, o festival propõe um roteiro alternativo: as exposições estão distribuídas em pelo menos 17 endereços, muitas vezes fora do circuito turístico tradicional. Quase metade das mostras está em espaços não convencionais, geralmente fechados à visitação em outras épocas do ano, como as machiya — construções tradicionais de madeira japonesas que convidam o público a tirar os sapatos, entrar em espaços intimistas e caminhar lentamente entre salas e jardins, iluminados por luz natural. Para os diretores “há sempre uma ênfase significativa em estabelecer uma relação entre o espaço e a obra — seja por meio de ressonâncias históricas, características arquitetônicas ou pela atmosfera que o local pode proporcionar.” Afirmam ainda que o artista está profundamente envolvido nas discussões sobre o local das exposições, “trabalhamos em estreita colaboração para encontrar, ou às vezes adaptar, os espaços que melhor atendam à apresentação e ao impacto da obra”.


Ain Aouja, de Adam Rouhana, Jericó, 2022 © Adam Rouhana

É o caso do Hachiku-an, construído em 1926 como residência da família Kawasaki. O espaço abriga o centro principal de informações da mostra, onde é possível folhear publicações sentado sobre um tatame com vista para um tranquilo jardim. Lá também estão duas exposições introdutórias ao tema central do festival. The Logic of Truth (A lógica da verdade), do fotógrafo palestino-americano Adam Rouhana , apresenta uma série de imagens cotidianas do território palestino que contrapõem as narrativas midiáticas centradas na violência. Paisagens pouco conhecidas por estrangeiros, como um banho de rio em um local árido, e composições abstratas, como um campo de flores ou um salto no ar, são impressas e expostas nas paredes, portas e janelas de vidro, valendo-se da translucidez para transformar a leitura do conjunto – num jogo com a proposta do fotógrafo de um outro olhar sobre a Palestina.

No mesmo espaço, após cruzar um estreito corredor que leva a um antigo armazém, está a exposição Little Boy, com curadoria de Yusuke Nakanishi, um dos fundadores do festival. Logo na entrada, em um cômodo escuro repleto de ruídos de guerra, encontra-se uma reprodução fotográfica em preto e branco da explosão da bomba de Hiroshima (1954), feita pelo exército dos Estados Unidos. No segundo andar, acessado por uma escada estreita e escura, está uma imagem em grande escala de um vestido de uma vítima da bomba, fotografado por Hiromi Tsuchida para o Museu do Memorial da Paz de Hiroshima. Com poucos elementos, a exposição provoca forte impacto. Como destaca o texto curatorial, mesmo após 80 anos, a bomba atômica e suas consequências ainda fazem a humanidade temer e refletir sobre o futuro.


Perto dali, também em clima intimista e para visitar sem calçados, está a exposição Red Flower (Flor Vermelha), da fotógrafa japonesa Mao Ishikawa. As imagens escolhidas são parte do trabalho Red Flower, The Women of Okinawa (Flor vermelha, as mulheres de Okinawa – 2017), uma versão ampliada do primeiro livro publicado por Ishikawa em 1982 (Hot Days in Camp Hansen). A obra foi feita no início de sua carreira, na ilha de Okinawa, onde nasceu e começou a fotografar nos anos 1970, justamente quando o território ao sul do Japão foi devolvido pelos Estados Unidos ao país, depois de uma longa ocupação iniciada após a Segunda Guerra. As questões políticas e a mistura de identidades naquele período estão explícitas nas fotos produzidas por Mao Ishikawa enquanto trabalhava em bares frequentados por soldados negros norte-americanos. Entre seus autorretratos, estão momentos de intimidade, cenas de casais multirraciais, festas e diversão na praia, mostrando a coragem de uma geração interessada em viver sua liberdade em um contexto marcado pelo militarismo e pelo preconceito. No segundo espaço da exposição estão fotografias recentes, feitas entre 2021 e 2024: são retratos de habitantes e pequenas manifestações em algumas das ilhas ao sul do Japão ainda impactadas pela presença de bases e exercícios militares norte-americanos. As imagens funcionam como reforço sobre o tema que atravessa a carreira da fotógrafa.


Outra presença feminina importante no festival é da mexicana Graciela Iturbide, que realizasua primeira exposição retrospectiva no Japão. Na entrada da mostra uma frase já apresenta a principal característica de seu trabalho para os desavisados: “Para mim a cor é fantasia, eu vejo a realidade em preto e branco”. Para os que já a conhecem, está tudo ali, desde as primeiras imagens no estilo fotografia de rua, nas quais percebemos a composição refinada que Graciela afirma ter aprendido com um de seus mestres, Manuel Álvarez Bravo. Também estão na mostra muitas de suas fotografias feitas em viagens ao interior do México em trabalhos com comunidades indígenas.

Rituais, máscaras e personagens fundamentais em seu trabalho, como a Nossa Senhora das Iguanas, que ao estilo de uma medusa mantém um olhar forte e perdido no horizonte. A retrospectiva não é apresentada de modo cronológico, mas algumas linhas a conduzem, além da forte presença da figura humana em suas diversas formas, tanto coletivas quanto solitárias, e da presença de pedras e rochas, fotografadas nas diversas paisagens que Iturbide percorre desde o início de sua carreira nos anos 1970, e principalmente a constante presença das aves — em revoadas que ela relaciona ao luto pela perda de sua filha, como revela em um dos vídeos apresentados na exposição, assim como na relação próxima que comunidades indígenas mantêm com esses animais. A mostra contempla ainda trabalhos mais recentes, como a colaboração com a marca Dior. Nas fotografias comerciais, o estilo de Iturbide não se perde, mas cria-se uma estranha ficção entre a apresentação dos trajes e as vistas que ela propõe. A cenografia, marcada pela simplicidade nas formas em tons terrosos e montada em amplo espaço no Kyoto City Museum of Art Annex, é de Mauricio Rocha Iturbide, filho da fotógrafa.


Em uma estreita galeria numa rua turística de Quioto estão as fotografias da marfinesa Laetitia Ky: três andares de autorretratos e esculturas feitas com seu próprio cabelo. Os temas dos trabalhos, de abordagens políticas até o corpo feminino, são representados na cabeça de Laetitia, que encontrou na fotografia uma forma de manifesto sobre sua identidade. Após anos usando métodos de alisamento para se adequar a padrões de beleza, a artista se libertou, passou a se aceitar e usar seu cabelo como forma de expressão. A parte mais recente deste trabalho, A Kyoto Hair-itage (Uma herança-capilar de Quioto), foi produzida durante sua residência artística no Kyotographie, quando mergulhou nos costumes locais e criou leques, bules e outros objetos orientais a partir de seu cabelo. A nova série está exposta em formato de grandes painéis publicitários na Demachi Masugata, uma das galerias de compras e passagens mais populares de Quioto, propondo um encontro entre o festival e o cotidiano da cidade.


A questão racial também é tema da exposição Being There (Estar lá), do norte-americamo Lee Shulman em parceria com o senegalês Omar Victor Diop, na Shimadai Gallery. Ao entrar na galeria, uma antiga loja de saquê reconstruída no final do século 19, o visitante é mais uma vez convidado a tirar os sapatos e adentrar em um espaço transformado numa casa americana dos anos 1960. Percorrem-se cômodos de paredes coloridas repletos de fotografias de família em vários formatos, em porta-retratos, quadros e uma projeção em frente a um sofá. Todos os objetos cotidianos estão ali: copo, cinzeiro e garrafas de água. Poderia ser apenas uma exposição de fotos de arquivo em um ambiente cenográfico, mas o que o cineasta norte-americano Lee Shulman, do The Anonymous Project, e Omar Victor Diop propõem é uma reflexão sobre a ausência do corpo negro nestas imagens. Ao olhar com atenção, vemos Omar inserido através de montagem em diferentes contextos, quase todos de celebração, típicos dos tradicionais álbuns familiares. O estranhamento da presença de Omar direciona a leitura das imagens para o apagamento racial na cultura norte-americana. No último cômodo, uma mesa com cadeiras e um clima de fim de festa, com garrafas, restos de comida e cinzeiros usados; na parede, uma grande fotografia mostra uma comemoração. Mais uma vez, o rosto de Omar surge entre os convidados, contextualizado no tempo da imagem. Sua presença reforça a ficção como crítica social.


Vista da exposição de JR na Estação de Quioto. Foto: Kenryou Gu

Outra colagem, mas em grandes dimensões, com largura de 22 metros, pode ser vista em uma das paredes da principal estação de trem de Quioto. De autoria do artista francês JR, conhecido por seus trabalhos em formatos gigantes, a imagem apresenta uma paisagem humana da cidade, onde várias pessoas interagem em um cenário que remonta a locais típicos. The Chronicles of Kyoto (As crônicas de Quioto) é a versão japonesa do projeto realizado anteriormente em cidades como Paris e San Francisco, resultado de uma interação fotográfica local proposta pelo artista. Um pequeno estúdio foi montado em diferentes pontos de Quioto no outono de 2024; ali, além dos retratos feitos em fundo verde para posterior recorte e edição, JR realiza entrevistas nas quais as pessoas — gueixas, drag queens e até o prefeito — contam histórias ligadas à sua vida e à cidade.

Mas a melhor apresentação deste trabalho está em outro local: um antigo parque gráfico do jornal Kyoto Shimbun. O galpão desativado em 2015 é o cenário onde alguns personagens fotografados aparecem em impressões gigantes que se destacam no pé-direito alto do espaço. A visita começa em uma ante-sala, antiga área de serviços anexa ao galpão, onde todos os retratados aparecem em uma extensa impressão em papel jornal, coladas em chapas e enroladas no chão, lembrando o processo de produção do periódico. Em uma mesa estão os personagens, impressos e recortados em pequenos formatos, dispostos para montagem e presos com alfinetes, revelando parte do processo da construção do painel instalado na estação. Na sequência, os visitantes são convidados a entrar em uma segunda sala onde é exibido um mini documentário sobre o trabalho conduzido por JR. Só então, no terceiro espaço, revela-se o que há neste grande ambiente escuro. Os retratos em grande formato são iluminados um a um e ouvimos os relatos gravados no momento da fotografia. Para quem não fala japonês, a experiência fica prejudicada pois não há tradução, mas a potência visual daquelas imagens transformadas em figuras monumentais causa impacto e propõe uma nova experiência visual.


Além das exposições oficiais do festival, ocorrem também outras mostras no chamado Programa Associado. Nesta edição, destacam-se duas oportunidades de conhecer mais sobre a fotografia japonesa e sua influência no contexto artístico. Em outra machiya, um pouco distante do centro turístico, está a recém-inaugurada galeria The Lombard, onde também é preciso retirar os calçados para pisar no tatame e visitar a exposição Daisuke Yokota x Another Man. O trabalho é uma colaboração entre o fotógrafo japonês e a revista internacional de moda. Distribuídas em diferentes áreas do salão intimista, as impressões em preto e branco têm uma sinergia com o espaço, como se tivessem sido produzidas ou abandonadas por ali. Em uma das paredes, as fotografias formam, lado a lado, uma espécie de diário: imagens de gato, flores, céu e detalhes íntimos de um corpo seminu na cama, compõem dois grandes mosaicos que visualmente parecem ter sofrido alguma alteração no processo de revelação. Em outra parede da sala está um conjunto de papéis fotográficos que passaram por processos químicos de revelação. Em grandes folhas de teste, com manchas que mostram um certo grau de experimentação a partir do processo de revelação em laboratório analógico, o fotógrafo transforma o próprio processo fotográfico no tema de sua exposição. Estas imagens sobrepostas e penduradas na parede em variados formatos, remetem tanto ao acúmulo de imagens fugidias da memória quanto à degradação da materialidade da fotografia. O ambiente minimalista, com iluminação baixa e muito silêncio, cria a sensação de suspensão no tempo, como as cópias fotográficas que ali estão expostas.


Outro destaque do Programa Associado é a Kyotomason Marathon!, exposição que apresenta visualmente, por meio de documentos, arquivos e vídeos, o conceito de tomason, criado pelo artista japonês Genpei Akasegawa (1937–2014) nos anos 1970 quando foi professor na escola de arte alternativa Bigakkō, fundada em Tóquio. Os resultados práticos da aplicação do conceito são fotografias feitas a partir da observação do espaço urbano e no registro de objetos sem função incorporados e preservados em espaços cotidianos, apesar de sua falta de utilidade — como janelas bloqueadas ou escadas sem acesso. Durante o festival os visitantes são convidados a colaborar com a exposição, podem apropriar-se da ideia e usá-la em suas fotografias, a partir dos tipos de tomason apresentados, como inutilidade ou sombra. Ao buscar detalhes, seja na arquitetura ou no posicionamento dos objetos, esta prática nos obriga a observar antes de fotografar. Um convite apropriado para inverter a lógica habitual da fotografia, de clicar antes de ver.


De todos os trabalhos apresentados no Kyotographie, a exposição Small World (Mundo Pequeno), do fotógrafo britânico Martin Parr, é a que mais dialoga com o ambiente turístico em que o festival está inserido. Conhecido por suas imagens de turismo de massa, antes mesmo da fotografia digital e dos celulares ele registrou poses inusitadas de pessoas fingindo segurar a Torre de Pisa, ou a aglomeração para ver e registrar a Monalisa no Louvre. São estes aspectos que chamam mais a atenção de Parr do que os próprios pontos turísticos. A convite do Kyotographie, ele esteve em Quioto durante a floração das cerejeiras, pouco antes da abertura do festival, período de grande movimento de visitantes de todas as partes do mundo em busca do melhor ângulo para suas fotos e selfies. Parr esteve ali para capturar mais um episódio da sociedade do turismo em massa. As imagens capturadas são projetadas em um espaço anexo à montagem principal com as obras mais conhecidas produzidas desde os anos 1980. Apesar de atuais, as fotografias feitas em Quioto são apresentadas com pouca edição: uma sequência de cenas muito semelhantes, imagens com contraste baixo, acompanhadas de uma trilha sonora cômica, reforçam o tom irônico dado à série. Enquanto observamos as situações engraçadas de turistas em espaços disputados, nos deparamos com o espelho da humanidade, na qual, apesar da diversidade de experiências, tudo tende a se resumir em uma imagem. ///

Guilherme Tosetto é fotógrafo, pesquisador e curador independente. Doutor em Belas Artes/Fotografia pela Universidade de Lisboa e mestre em Multimeios pela Unicamp, é professor no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

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