20 destaques na fotografia e no audiovisual em 2024
Publicado em: 17 de dezembro de 2024“É hora de se fazer um diagnóstico sobre os legados e traumas que a cultura de massa imprimiu”, reflete o curador Raphael Fonseca sobre um dos memes mais icônicos de 2024: Que Show da Xuxa é esse?. “A exposição mostra como o cabelo tem sido um meio poderoso para comunicar, questionar e transformar estilos e cânones de beleza ao longo do tempo”, conta o editor Luís Juárez sobre a exposição Grow it, show it!. A Look at Hair from Diane Arbus to TikTok, na Alemanha.
A ZUM perguntou a oito editores, curadores e pesquisadores das artes visuais o que eles e elas experienciaram de mais marcante em 2024, no campo da fotografia e do audiovisual. As respostas contemplaram suportes diversos: exposições, livros, fotolivros, obras, artistas, séries audiovisuais e memes. Os 20 trabalhos listados abrangem diferentes territórios brasileiros e, nas percepções compartilhadas entre os curadores, são provocadores à medida que questionam narrativas coloniais, na fotografia e na história. Ao indicar a produção mais recente de Rafaela Kennedy e Labo Young, a curadora Carolina Rodrigues enfatiza que “a dupla evoca os fenômenos e mistérios que fazem com que populações negras e indígenas permaneçam vivas e conectadas com a terra.”
A necessidade de se discutir o conhecimento e o legado artístico de artistas negros também é central na obra do artista britânico Isaac Julien, indicado pelo pesquisador Tiago Sant’Anna. “Julien atualiza o debate sobre a restituição de objetos do continente africano saqueados sobretudo por países do Norte Global”, destaca o curador. A atualidade dos debates contra coloniais na fotografia é mencionada nas indicações da artista e pesquisadora Denise Camargo, que celebra a edição brasileira do livro História Potencial: desaprender o imperialismo,de Ariella Aïsha Azoulay.“É um livro que faz desaprender o que não deveríamos nunca ter aprendido.”
O caráter ficcional da fotografia é lembrado pela pesquisadora Talita Trizoli ao indicar a produção da artista Julia Milward: “há uma predominância na investigação do fascínio ficcional da imagem fotográfica, e sua respectiva falência testemunhal.” Já a crítica de arte Tatiane de Assis evoca os ensinamentos exuísticos para explicar o porquê Rosa foi uma das suas favoritas do ano: “As imagens feitas por R0s4 são complexas como encruzilhadas”, sintetiza. Confira a lista completo dos destaques de 2024.
À Espera dos Raios Cósmicos, de Anti Ribeiro
Acompanhei este trabalho de Anti Ribeiro desde seus primeiros experimentos na residência no Espaço Chão, no Maranhão. Fui ouvindo os relatos que envolviam estratégias para escutar os enredos internos das nuvens e imagear a transmissão das escutas. A artista optou pela construção de uma videoinstalação, em que sobrepõe camadas de vozes e imageia rotas possíveis para o navegar das nuvens em uma cama transluminescente de papel poliéster.
Em sua primeira experiência, a obra funcionou como a artista planejava. Na segunda exibição, que ocorreu durante a exposição Poéticas de Presença Para Ciclos em Migração (em que fiz a curadoria para o Programa Arte Sesc, em Garanhuns – PE), o espaço impôs uma relação outra com a cama transluminescente, criando uma aurora boreal sobre o corpo e o chão da instalação. Isso abriu novas etapas para a pesquisa, que é um dos trabalhos mais bonitos de Anti Ribeiro e vale muito a pena ser visto e exibido.
É fundamental dizer que a poética da cama transluminescente foi feita em parceria com a artista Angel de Palmar, e o vídeo foi construído com Pablo Monteiro. A costura sônica do trabalho tem vozes de Anti Ribeiro, Gê Viana, Carchíris, Daniel Barreto, Yanaki Herrera, Victor Fidelis, Jeremias Morais, Yuri Logrado, Kaka Farias, Bruno Ferreira e Raissa Souza; e textos de Mundinha Araújo, Castiel Vitorino, Leda Martins, Guilherme Wisnik, Anti Ribeiro, Paulo Diniz, Arnaldo Antunes, Celso Borges e Denetem Touam Bona.”
AMÉFRICA: Em Três Atos, do Coletivo Legítima Defesa
É um trabalho poético de intensas dimensões. Eu assisti no Sesc Copacabana e fiquei hipnotizada pela ruptura estético-visual transmutada em cena e performance pelo Coletivo Legítima Defesa, com participação de Antônio Pitanga. Em seus três atos, o coletivo articula fundamentos do conceito de Amefricanidade, de Lélia Gonzalez, para propor quase três horas de imersão nas interrelações criadas entre saberes, vivências, metodologias e respostas criadas pelos povos originários e negrodescendentes neste continente.
O grupo propõe uma experiência compartilhada com o público por meio de vocalizações, estéticas sônicas, acervos de imagens, experimentos visuais e audiovisuais que costuram debates políticos acerca do significado das existências desses povos como pilares fundamentais dos ciclos de sustentação do planeta.
O roteiro estruturante é ainda alinhavado pelo o que o coletivo chama de conceito-ação de Retomada, dos Tupinambás da Serra do Padeiro, e o conceito de Confluência, de Nego Bispo. É singular e há muito eu não via uma proposição assim circulando pelo país.
Ana Lira, artista visual, fotógrafa, curadora, rádio host, escritora e editora baseada no Brasil. É especialista em Comunicação Social pela UFPE
Hard truths, de Mike Leigh
A primeira colaboração entre o já icônico diretor inglês Mike Leigh e a atriz Marianne Jean-Baptiste foi no filme Segredos e mentiras, de 1996. Quase trinta anos depois ambos colaboram nesse novo filme que, em certa medida, retoma um tópico do filme anterior: a noção de família. A crueza da direção e as atuações são impressionantes; em minutos vamos das gargalhadas intensas ao choro silencioso acompanhando a personagem principal, Pansy Deacon, interpretada pela atriz. Trata-se de uma mulher que praticamente se recusa ao silêncio e sua verborragia a leva às mais diversas situações que levam ao público reflexões sobre o luto, a maternidade, a sororidade e os muitos silêncios que concretam as relações humanas.
Parte do método de Leigh como diretor é baseado no improviso e é assustador pensar que parte dos diálogos – como afirmado pela atriz em roda de conversa após a sessão onde pude assisti-lo em Denver – seja improvisado. Mas assim não é também a vida, cheia de improvisos, projetos inconcluídos e dúvidas sobre aqueles que amamos e aqueles que, supostamente, nos amam?
Que Xou da Xuxa é esse?
Seis palavras proferidas por uma criança em 1988 se transformaram em um dos memes mais difundidos no Brasil de 2024. Seu nome é Patrícia Veloso Martins e ela se encontrava em plena euforia em um registro de câmera acerca da apresentadora Xuxa Meneghel. Impedida de entrar no seu programa, ela pergunta a um entrevistador: “Que Xou da Xuxa é esse?”. De retórica rápida para o que talvez se espere de uma criança, ela percebeu o jogo de palavras contido na palavra “show” – entre a celebração efêmera e a desorganização, Patrícia desconstruiu Xuxa, mesmo que por alguns segundos.
Parte da divulgação do documentário Pra sempre paquitas, dirigido pela ex-paquita Ana Paula Guimarães e Ivo Filho, o meme e os episódios do programa nos levam a uma contínua reavaliação dos anos 1980 em nosso país – do documentário anterior sobre Xuxa à minissérie ficcional sobre Ayrton Senna, 40 anos após muitos fatos históricos, é hora de se fazer um diagnóstico sobre os legados e traumas que a cultura de massa imprimiu em um recorte histórico tão influenciado pela televisão e seus mitos.
Patterns of activation, de Katja Novitskova
Caminhando pela feira de arte Frieze, em Londres, me deparei com um trabalho que havia visto na pequena tela do computador: o vídeo Patterns of activation (gardens of the galaxy), da artista estoniana Katja Novitskova. O trabalho vem sendo realizado desde 2021 e era um gif que reunia imagens extraídas de um banco de dados científico. Nesta compilação, a artista lida com imagens feitas com câmeras noturnas que captaram animais, registros astronômicos, embriões de caracóis e células sanguíneas de macacos.
Mostrada na feira em um painel de led e acompanhado de uma trilha sonora sedutora, era impossível não se deter pelo menos um minuto sobre a velocidade com que estas imagens são atiradas ao público. Uma reflexão sobre as bordas entre ciência, o digital e aquilo que convencionamos chamar de natureza, o vídeo é uma bela e dolorosa experimentação em torno do tempo e das muitas eras geológicas que nos trouxeram até aqui. Hoje somos observadores por meio de nossas lentes, mas não esqueçamos que estamos sendo observados e igualmente manipulados, como esses registros que, assim como qualquer desejo científico, são embebidos de ficção.
Raphael Fonseca, curador de arte moderna e contemporânea latino-americana no Denver Art Museum. Curador-chefe da 14ª Bienal do Mercosul.
Luz da Manhã, de Tayná Uràz
Indico pela forma como a artista pensa a fotografia expandida para criar fabulações que preencham lacunas de memórias explorando suportes e visualidades que fogem muito ao lugar comum de trabalhos que abordam a ancestralidade. Nos últimos anos, a artista vem desenvolvendo sua pesquisa sobre apagamento identitário, principalmente direcionado aos povos originários, reconfigurando as imagens idealizadas que construíram as narrativas oficiais.
Rebojo, Amoré e Breada, de Rafaela Kennedy e Labo Young
As séries Rebojo (2023), Amoré (2023) e Breada (2024), de Rafaela Kennedy e Labo Young, apresentadas no 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil Graus, parte do norte do país para apresentar uma crítica intensa às mudanças climáticas, que são sentidas mais intensamente nesse território, em diálogo com as dimensões espirituais e encantadas. Produzindo uma simbiose entre o corpo e elementos ambientais, a dupla evoca os fenômenos e mistérios que fazem com que populações negras e indígenas permaneçam vivas e conectadas com a terra, apesar das crises causadas pela violência colonial.”
Carolina Rodrigues, historiadora da arte e pesquisadora. Curadora geral do Museu Bispo do Rosário
Fragmentos da memória, de Claudio Goulart
A exposição Fragmentos da memória, do artista gaúcho Claudio Goulart (1954-2005) que aconteceu na Galeria Zielinsky, em São Paulo, retomou a obra do artista – que viveu boa parte de sua vida em Amsterdam e cujo trabalho ainda é pouco conhecido no Brasil. O conjunto de obras apresentadas na mostra denota a multiplicidade de Goulart, através de um passeio poético que esgarça os limites da fotografia, do vídeo e da performance. Em séries como O.A.N.I. / Objeto Anônimo Não Identificado, o artista compõe intervenções urbanas, pixando no espaço urbano setas que se assemelham a figuras fálicas e, logo em seguida, registrando-as em fotografias.
A série, apresentada da década de 1970, contém uma ironia e um escracho frente aos regimes ditatoriais vigentes naquele período, apontando que não se tratava somente de uma Ditadura Militar, mas também um regime que reprimia as identidades de gênero e sexualidade. Caminho também seguido, de maneira mais poética e afetiva, no vídeo Lovers, em que Claudio Goulart utiliza uma espécie de fita como ponto de partida para pôr em tangência e em te(n)são os corpos de dois homens nus contrastados com um fundo escuro e uma luz lateral dramática. O legado de Goulart parece atravessar o tempo, se conectando de maneira contundente com uma legião de artistas que questionam a rigidez dos papeis de gênero e sexualidade no Brasil hoje.
Once Again… (Statues Never Die), de Isaac Julien
A obra Once Again… (Statues Never Die), composta pelo artista britânico Isaac Julien, trazia para o espaço do Whitney Museum uma série de cinco projeções que criava uma ambiência audiovisual e instalativa para discutir a necessidade de reconhecimento do legado artístico dos artistas negros. Para tal, a estratégia encampada por Julian foi partir da contribuição do pensador Alain Locke – vinculado ao movimento Harlem Renaissance – para, de maneira metalinguística, exibir como uma sorte de criações negras abrem caminhos para os movimentos artísticos do Modernismo e como muitas dessas produções influenciaram até mesmo artistas não-negros.
Julien atualiza o debate sobre a restituição de objetos do continente africano saqueados sobretudo por países do Norte Global, entendendo como essas produções artísticas, embora atestem a sua história por meio da materialidade inscrita em suas próprias estruturas, foram deixadas de lado quando da escrita de uma História da Arte oficial.
Bebê Rena, de Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch
Embora seja um destaque mais ligado ao campo do mainstream, dada à circulação e difusão por meio de uma das gigantes do streaming no mundo, a série audiovisual Bebê Rena nos atravessa de maneira intensa, pois esmiúça como muitas vezes a forma de organização social da contemporaneidade e, mais especificamente, do campo das artes, estão pautados em regimes de visibilidade.
É uma série que nos apresenta a vida de um ator de stand-up comedy, que se desdobra entre a sonhada carreira no campo artístico e as atividades em um bar, até que o encontro com uma cliente stalker muda completamente o rumo da sua vida. A série, que aposta em diálogos densos em detrimento dos efeitos especiais, traz um arco dramático intenso e perturbador pois cria uma narrativa em que as imagens de si (e consequentemente do Outro) e as expectativas sociais nos mostram como a dependência emocional e o desejo por “dar certo” ou ser visto nos fazem perpetuar ou nos mantermos inseridos em relações tóxicas e abusivas.
Tiago Sant’Anna, artista visual, curador adjunto 14ª Bienal do Mercosul e doutor em Cultura e Sociedade pela UFBA.
Grow it, show it!. A Look at Hair from Diane Arbus to TikTok
Esta exposição, aberta à visitação até janeiro de 2025, no Folkwang Museum Essen, na Alemanha, investiga a representação do cabelo através da linguagem fotográfica reunindo obras de artistas e fotógrafos como Nan Goldin, Peter Hujar, Wolfgang Tillmans, Samuel Fosso, Graciela Iturbide, Lebohang Kganye, e uma série de fotografias icónicas do século 19 com autoria de Julia Margaret Cameron, entre outros.
A Balam Magazine teve a honra de participar nesta exposição internacional criando uma instalação participativa comissionada pelos curadores Thomas Seelig e Miriam Bettin. A exposição explora o cabelo como ferramenta de identidade que permite expressar e tornar visíveis os discursos que envolvem debates étnico-raciais e de gêneros. É um mergulho em discussões sociais, políticas e culturais, destacando como o cabelo tem sido um meio poderoso para comunicar, questionar e transformar estilos e cânones de beleza ao longo do tempo. Através desta ampla diversidade de perspectivas, a exposição convida-nos a refletir sobre o impacto simbólico do cabelo na construção de identidades e no discurso visual contemporâneo.
State of Emergency, de Max Pinckers
O álbum fotográfico State of Emergency, do fotógrafo Max Pinckers, combina arquivos coloniais fragmentados, imagens de vestígios arquitetônicos, valas comunitárias, manifestações e testemunhos daqueles que viveram e sobreviveram à guerra Mau-Mau no Quênia, na África.
Este projeto, resultado de uma década de trabalho, foi realizado em colaboração com veteranos e sobreviventes do conflito, dando ênfase aos arquivos fotográficos como meio de análise da história colonial do Império Britânico. A obra documenta a luta pela independência, oferecendo uma narrativa visual que nos convida a refletir sobre as práticas fotográficas coloniais e o seu papel na construção de narrativas históricas. Através desta investigação meticulosa, Pinckers confronta-nos com a complexidade dos legados coloniais e das histórias silenciadas, criando um espaço para questionar como as imagens contribuem para perpetuar ou desafiar narrativas dominantes.
Luís Juárez, diretor e editor da Revista Balam. Integra o Arquivo da Memória Trans na Argentina.
Esse casco pode ter tudo que esse casco quiser, de R0s4
A exposição foi apresentada na Central Galeria, entre maio e agosto deste ano. Era composta por fotos, músicas, vídeos e instalação. A artista parecia propor um coro entre as linguagens. Que apesar das diferentes vocações e datações das obras, que elas pudessem soar juntas. A série Dilda, de 2014, era composta por fotografias marcadas pelo contraste entre luz e sombra e de quadros minunciosamente trabalhados, tal como um filme de ficção. Mas eram protagonizados pela artista. Como não lembrar de Cindy Sherman? Próxima às fotografias, a instalação Barraco 2, feita com ripas de madeira.
Ali, de novo, R0s4 se colocava no jogo, mas agora mirando mais o documentário. O processo de construção da estrutura era exposta em um vídeo dentro da própria instalação, chamado “processo de montagem de barraco 2”. Por qual motivo era preciso mostrar o trabalho anterior, do qual resultara a obra? E qual a razão de usar a câmera de segurança da galeria? Outros dispositivos seriam menos controversos. Uma série de perguntas para pensar, pontos distintos para aproximar, uma comunicação que tem na espiritualidade, na figura de Exú, sua base. Talvez por isso as respostas não venham rápido e retas, as imagens feitas por Rosa são complexas como encruzilhadas.
George Love – Além do Tempo, de George Love
O nome de George Love já havia salpicado em algumas entrevistas e conversas, contudo nada que tivesse alcançado depois um lugar de densidade. Dessa forma, George Love – Além do Tempo, em cartaz no Museu de Arte Moderna (MAM-SP), entre março e agosto de 2024, foi importantíssima para apresentar e aprofundar o conhecimento sobre a produção do fotógrafo afro-americano, que morou no Brasil entre as décadas de 60 e 80. Que esteve com Claudia Andujar na Amazônia, em viagens que virariam o livro. Ele também foi casado com a fotógrafa. A experimentação estética da produção de Love, em específico a cromática, definitivamente fascinam porque trazem sua perspectiva inventiva, com flerte com a abstração psicodélica em fotografias que se fazem junto a povos originários e ao meio ambiente.
Tatiane de Assis, repórter da piauí, é crítica de artes visuais com especialização pela Unicamp.
Julia Milward
Na produção de Milward há uma predominância na investigação do fascínio ficcional da imagem fotográfica, e sua respectiva falência testemunhal. Formada em comunicação com pós em fotografia, e residindo por anos fora do país, a artista desenvolve um projeto de estiramento dos limites possíveis de comunicação pela imagem, seu caráter discursivo e memorialístico. São imagens fragmentadas, reconstruídas com opacidades e estouros de luz, capturadas de arquivos públicos e privados, convertidas em ícone de uma memória anacrônica, desgastada, e deixando qualquer aspecto de familiaridade das cenas e objetos com um caráter plastificado, de estranhamento.
Rosa Bunchaft
Filha de exilados políticos da ditadura civil-militar, Bunchaft passou sua infância no sul da Itália, antes de migrar para Salvador. A artista possui uma primeira formação em Física, o que explica seu fascínio de caráter enciclopédico sobre a história das técnicas fotográficas. Realizou por anos fotografias de medidas monumentais das cidades por onde habitou a partir da técnica do pinhole, ou “fotografias uterinas”, como ela mesma gosta de nomear devido ao caráter instalativo e performático do processo. Recentemente ela tem trabalho a partir da cianotipia, a representação crítica e melancólica de cenas relativas à “alienação parental” e de violência jurídica e patrimonial nos processos de luta de guarda.
Anna Costa e Silva
Oriunda do cinema, Anna Costa tem desenvolvido ao longo dos anos um corpo de obra – muitas das vezes em parcerias e trocas com outras artistas – sobre as dimensões do encontro humano e suas limitações. Entre vídeos, instalações, fotografias e objetos, a artista orbita entre narrativas afetivas e traumáticas sobre sonhos, delírios e desejos de vida. A banalização dos afetos, a artificialização das experiências de vivência, a plasticidades dos desejos e a melancolia da memória formam um tecido de potências de impotências existenciais, principalmente ao dar corpo a emoções e histórias relegadas à mundanidade.
Talita Trizoli, é curadora, professora e pesquisadora na área de feminismos. Doutora pela FE-USP.
História Potencial: desaprender o imperialismo, de Ariella Aïsha Azoulay
A edição brasileira de História Potencial: desaprender o imperialismo, de Ariella Aïsha Azoulay (cineasta, artista, curadora, “nascida israelense por definição”), marca a chegada ao Brasil, bem atrasada, por sinal, do pensamento desta escritora, potencialmente “judia palestina-judia argelina”, dada a ascendência familiar. Tão fundamental para os nossos dias, a publicação reúne três dos sete capítulos publicados na edição original em inglês Potencial History: unlearning imperialism (Verso, 2019).
É preciso lembrar que a Revista ZUM já vem trazendo pitadas saborosas de sua escrita envolvente em artigos, entrevistas e menções à escritora. No entanto, ter em mãos mais do que isto, na excelente tradução de Célia Euvaldo para o português, é um dos grandes achados que 2024 trouxe para o campo da fotografia. Nas suas intersecções com a política, a cultura e com os estudos decoloniais/contracoloniais – tão significativos quanto necessários às reflexões sobre as ancestralidades, a pilhagem, a manipulação e a exibição de arquivos.
Esta abordagem de Azoulay nos convida a escapar do discurso da técnica para pensar uma política de representação dos sujeitos e, por isso mesmo, oferecer-lhes as devidas reparações. É um livro que faz desaprender o que não deveríamos nunca ter aprendido. É mesmo um abrir de obturadores contra a violência colonial, como diz Benjamin Seroussi, na orelha da belíssima edição da editora Ubu.
Silvana Mendes
Venho acompanhando o trabalho dea Silvana Mendes (1991), maranhense de São Luís, cujo trabalho vi nos diversos júris dos quais participei este ano. Em sua biografia, ela se apresenta como “multiartista visual cuja prática se manifesta a partir de pesquisas sobre questões raciais, territórios e políticas de afirmação”. Colagem, pintura, fotografia e videoarte são as linguagens das quais ela faz uso para, de modo geral, inverter os sentidos impostos pelas imagens produzidas de corpos negros escravizados.
A maneira com a qual ela interfere nessas imagens faz dissiparem-se os estereótipos perpetuados nos arquivos históricos e que amaldiçoaram esses corpos. Nesse trabalho, portanto, a artista encontra uma nova forma de exibição que, de fato, se configura em uma postura artística decolonilizante. É assim que enfrenta, desde 2019, por exemplo, os Tipos Negros, produzidos nos estúdios fotográficos de Alberto Henschel entre 1866 e 1882. Seu trabalho reforça o que Ariella Azoulay propõe ao olharmos “imagens de escravidão”: “devemos recusar a determinação do obturador sobre o que vemos […] como parte de um letramento do imperdoável”. Silvana Mendes descondiciona arquivos.
A imagem fantasma, de Hervé Guibert
Há algumas décadas leio o texto “O único rosto”, do escritor e fotógrafo francês Hervé Guibert (1955-1991). O recorte de jornal já puído pelo tempo vai resistindo graças aos sistemas de impressão. Recentemente, o digitei para obter um arquivo digital. Posso dizer que todos e todas que passaram pelas minhas salas de aula – e já são quase 30 anos! – leram esse texto e, invariavelmente, também se encantaram com a beleza do encontro desse fotógrafo com um rosto que Guibert amou como um louco no meio da multidão, “uma relação sentimental”, em que o que estava em jogo era o desejo.
Essa parece ser também a premissa dos 60 textos breves reunidos no livro A imagem fantasma, lançado pela Editora 34. A tradução é dos artistas Lucas Eskinazi e Nina Guedes. A orelha, escrita por Fábio Furtado, são um primor. Os textos apresentam crônicas de um cotidiano aparentemente prosaico, inofensivo, mas se transformam em matéria de vida para toda uma teoria do fotográfico, característica dos escritos do autor. São verdadeiras narrativas visuais amparadas pela emocionante literatura que ele produz e por seu conhecimento sobre a produção fotográfica e seus discursos.
Denise Camargo, artista visual, curadora, educadora, gestora cultural e professora. Doutora em Artes pela Unicamp. ///
Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos, educação e crise climática. Colabora com diversos veículos e revistas, como UOL, Nexo, Revista Select, Portal Colabora, Dialogue Earth, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.