O oposto de atirar
Publicado em: 12 de dezembro de 2024Toda fotografia de Sheida Soleimani começa a partir de uma história. Pode ser um acontecimento político que envolva a complexa relação entre Oriente Médio e Ocidente ou uma memória contada por seus pais, cidadãos iranianos que se refugiaram nos Estados Unidos durante a guerra entre Irã e Iraque. Entre a história escolhida e a imagem produzida, há um longo processo, semelhante à construção de um espetáculo teatral ou de uma obra cinematográfica. Sheida pensa no roteiro, nos cenários, na posição dos objetos, no jogo de luzes, nos personagens. Sobre esses últimos, em seus mais de dez anos de trajetória, há protagonistas que se destacam em sua obra: os pássaros.
Sheida não fotografa qualquer pássaro. As aves que atravessam sua vida, e suas lentes, são aquelas que estão impossibilitadas de voar e, por isso, precisam de cuidados. A reabilitação de animais silvestres fez parte da sua infância. Sua mãe, enfermeira de formação, não pôde tratar humanos quando chegou em solo estadunidense, e foi nos animais que ela seguiu exercendo suas práticas do cuidado. Atualmente, Sheida divide o seu tempo entre o seu ateliê-estúdio e o Congress of The Birds (Congresso dos pássaros), uma clínica criada por ela que trata pássaros selvagens feridos em Rhode Island, nos Estados Unidos. Os pássaros são retratados em imagens de cores vibrantes, camadas compostas por objetos em diferentes planos, luzes, sombras e texturas.
A prática artística de Sheida questiona a origem violenta da fotografia, seja o histórico eminentemente colonizador da técnica, seja a própria linguagem utilizada para o gesto de fotografar. As imagens da artista são compostas como um patchwork, técnica historicamente associada às mãos de mulheres. Além de fotografar, há vários verbos que se somam à sua produção imagética, como recortar, colar, costurar. E isso não é à toa. O processo artístico de Sheida se expressa em uma recusa de reproduzir violências ao fotografar. Sua prática parte de outros lugares, inclusive, de outras palavras. É preciso ir na origem para mudar, e ela não nos deixa esquecer.
Ao criar um vocabulário próprio atribuído ao ato de fotografar, ela reflete desde o fundamento da linguagem sobre o que significa criar imagens. Ela fotografa para gerar conversas e perguntas. Como aprendeu com seu pai logo cedo, ser uma iraniana-americana é lidar com uma sensação de não pertencimento. Sua criação é uma forma de não aceitação de um modelo único. É uma permanência no entre.
Ela propõe que precisamos partir de outras perspectivas, proporcionar espaços consensuais em que as imagens não sejam “tiradas”, mas construídas, encenadas, fabuladas. “A própria linguagem fotográfica é violenta em si. To shoot – atirar. To frame – enquadrar. To take – tirar”, ela diz, e então questiona: “Qual é o oposto de (a)tirar? Qual é o contrário de tirar fotos? É construir? É colaborar? Eu penso nas minhas imagens como conversas. A câmera é uma espécie de palco que está sendo construído para esse diálogo”, reflete a artista. A feitura de uma única imagem pode durar um dia, ou então, três meses.
Seu trabalho evidencia também uma dinâmica atenta entre fotógrafo e retratado, seja ele humano ou não-humano. Para isso, Sheida cria regras, estabelece parâmetros que são, tanto para ela quanto para os demais participantes envolvidos, maneiras de subverter a visão de dominância que a câmera historicamente oferece. Com os pássaros não é diferente, atitude que vai na contramão de uma assimetria antropocêntrica.
“Se vou trabalhar com pássaros, se vou fotografá-los, preciso ter certeza de que não é para algum tipo de projeção centrada no ser humano”, explica. O desconhecimento provoca a associação de estigmas, como o gesto comum de se atribuir personalidades humanas às aves. As imagens de Sheida vão por outro caminho. Cada fotografia nasce de uma relação.
O que veio antes na sua vida: os pássaros ou a arte?
Sheida Soleimani: Os pássaros, com certeza. Desde criança, observava minha mãe criar e reabilitar animais, em especial, pássaros. Cresci com eles por perto. É interessante, porque acredito que minha curiosidade no início foi mais mental do que prática – no sentido de tocar nos pássaros.
Conforme fui crescendo, percebi que a morte era um tema presente na minha vida, porque constantemente observava pássaros morrendo. Minha mãe salvava e ajudava vários, mas nem todos sobreviviam, claro, e eu acompanhava tudo de perto. Ela me mostrava o corpo deles, suas asas esticadas, a estrutura dos ossos e como isso influenciava o tipo de voo.
Minha mãe sempre dizia: “Embora isso seja a morte, é também a vida. É como uma obra de arte.” Então, era uma questão presente para mim a forma como lidamos com os ritos de passagem, com a morte. Como olhamos para o que está morto? Não somos uma família religiosa, então nunca entendi sob uma ótica da fé. O meu questionamento sempre foi mais sobre a forma como as coisas mudam de estado e como isso acontece visualmente.
E foi neste momento que a fotografia entrou na sua vida?
SS: Comecei a me perguntar: O que significa parecer estar vivo, ou, então parecer que não está? O que significa fotografar nesses contextos? Minha mãe tinha uma câmera, ela fotografava o tempo todo, mas eu não pensava sobre a fotografia como uma forma de arte. Eu apenas pensava que era algo feito para registrar momentos. Então, comecei a tirar muitas fotos dos pássaros mortos como uma forma de registrar seus momentos de morte.
Para mim, é importante lembrar como comecei, porque, no caminho, muitas vezes achava que a produção artística deveria ser bonita, algo que as pessoas olham e ficam felizes. Quando eu produzia, ficava bonito, mas era também muito deprimente. Eu lembro de fotografar o momento em que os pássaros entram em rigor mortis [estado de decomposição]. Eu fotografava, com uma espécie de lupa da câmera, o momento em que as garras se fechavam. Tudo é muito lindo do ponto de vista anatômico e biológico, mas é, realmente, uma coisa mórbida.
Sheida, agora entrando na sua produção artística. No começo, como você contou agora, sua relação com a fotografia era mais próxima do registro documental. Porém, com o tempo, você passa a entender seu trabalho como a fotografia de espaços criados, certo? E que pretende contar uma história, muitas vezes relacionada a questões geopolíticas. Então, como você percebe que sua produção, mesmo tratando da guerra, mobiliza o espectador em uma direção diferente do fotojornalismo?
SS: Essa é uma reflexão muito importante para mim. A história da fotografia é uma história do não-consentimento. É uma história conduzida majoritariamente por homens, como a maioria das histórias, infelizmente, além de ser extremamente branca e eurocêntrica. Basta pensar nos fotojornalistas indo a outros países fotografar “o desconhecido”, assim como os colonizadores.
Reflito constantemente sobre o que significa fotografar, em especial se envolver guerra, morte ou violência. Estamos tão dessensibilizados que quando vemos imagens como essas circulando, não prestamos atenção a elas da maneira que merecem. Você está no feed do Instagram e fica tipo “olha, alguém foi bombardeado”, “olha, outro país está em guerra”, “ah, não, um país foi inundado.” Vemos ou ouvimos sobre os eventos por dois segundos e, logo, nossa atenção já muda para outra coisa. Então, penso que a fotografia deve encarar a sua própria origem violenta.
Quando pego a câmera, penso sobre a história que veio antes de eu poder fazer esta fotografia, porque uma coisa não pode ser separada da outra. O debate precisa ir além de apenas “ter uma boa intenção”. Um fotojornalista pode até dizer que tinha a intenção de mostrar um evento traumático ao mundo para ajudar a sociedade a entender o que aconteceu. E, sim, você pode ter essa intenção, mas isso não significa que vai terminar do mesmo jeito que você pretendeu.
Precisamos partir de outras perspectivas, proporcionar espaços consensuais em que as imagens não sejam “tiradas”, mas construídas, encenadas, fabuladas. A própria linguagem fotográfica é violenta em si. To shoot – atirar. To frame – enquadrar. To take – tirar. Pensar sobre esse vocabulário é uma maneira de refletir o que seriam os opostos. Qual é o oposto de (a)tirar? Qual é o contrário de tirar fotos? É construir? É colaborar? Eu penso nas minhas imagens como conversas. A câmera é uma espécie de palco que está sendo construído para esse diálogo.
Esses apontamos que você faz, de certa forma, aparecem nas suas imagens, já que elas são repletas de camadas. A subversão do gesto de fotografar torna-se uma característica forte nas suas séries, porque elas criam também dúvidas no sentido de “isto é uma foto?”, “Isto é uma colagem?”. Você costuma comentar que tem interesse em produzir imagens que criem perguntas. O que isso significa para você?
SS: Quando as pessoas olham para uma imagem, elas muitas vezes querem descobrir o que os elementos significam. Acho que tem uma ansiedade que vem de não saber. Existe um desconforto em não conseguir identificar algo ou saber tudo. Para mim, olhar para a arte é encontrar aquele momento de desconforto. Sempre que algo imediatamente se apresenta a mim e é digerível, eu não gasto tempo com isso, porque não ressoa. Eu não tenho nada a descobrir. Eu simplesmente não me interesso.
Eu sou assim, e talvez por isso não queira que meu trabalho “revele tudo”. Quero que provoque perguntas, como “o que é isso?” e “o que isso pode significar?”. E se as pessoas passarem um tempo experimentando essas primeiras perguntas, elas conseguem mergulhar mais fundo e ir além da superfície.
Como é o seu processo de construção dos cenários para fotografar – das colagens e montagens, da escolha dos objetos e combinações. Você chega a rascunhar, antecipar a imagem de alguma forma?
SS: Eu faço muitos esboços. A primeira coisa que eu faço é tentar descobrir a fotografia que quero fazer. Eu não invento imagens do zero, porque geralmente algo acontece e se torna uma espécie de disparador. Começo pensando no cenário que preciso construir para a imagem.
Uma ideia que estou idealizando, por exemplo, é sobre uma história que minha mãe me contou sobre a época em que ela era enfermeira em um hospital de campanha. Ela foi estender os lençóis para arrumar a cama e dentro deles havia uma pequena família de ratos. Todas as pessoas no hospital ficaram desesperadas, gritando, e a minha mãe não, porque ela ama ratos. Então, ela pegou a família, empacotou e os levou para fora.
Digamos que eu fosse fazer essa imagem. Eu começaria pensando quais são os adereços, os objetos e os personagens principais da história, como se fosse um roteiro. Para construir as imagens, me pergunto: “o rato está vivo ou morto?”, “as mãos da minha mãe vão aparecer em ação, dobrando os lençóis?”, “qual será a cor desse lençol?”. Abro meu caderno de esboços e rascunho possibilidades de como as coisas funcionam na composição. Quando decido o que fazer, construo tudo em uma mesa e começo a fotografar. Isso pode durar um dia, ou então, três meses.
Então, a origem das suas fotografias são sempre histórias, isso?
SS: Sempre. Ou eventos políticos. Quando eu estava fazendo a série Levers of Power (Alavancas do poder), eu tinha em mente o que foi o dia 3 de janeiro de 2020, quando o governo Trump assassinou Osama Soleimani. Esse acontecimento foi o ímpeto para a realização da primeira peça da série.
É muito interessante que você cria um vocabulário próprio para falar da sua prática fotográfica, pegando palavras emprestadas do teatro, do cinema.
SS: Penso muito na relação íntima da fotografia com o cinema, porque, afinal, em ambas as linguagens há um processo de construção. Não é como se eu estivesse saindo pelo mundo e pegando as imagens por aí. E quando você está criando, você pensa: Quem são meus personagens? Qual é o enredo? Onde é o palco? Eles estão entrando pela direita ou pela esquerda do palco? Como eles são iluminados? Quem é o antagonista? E o protagonista? Todas essas perguntas me atravessam quando estou fotografando.
É interessante que suas imagens são como patchworks, técnica historicamente feita por mãos de mulheres, e que contempla os gestos de colar, recortar e costurar que você utiliza. Pensando nisso, você poderia comentar um pouco mais sobre o aspecto patchwork das suas fotografias?
SS: Fico feliz que vocês tenham escolhido essa palavra. É realmente muito importante para mim pensar como narrativa e história são tecidas. É como a tecelagem, o patchwork, a fibra e o quilting (alcochoado). Todos são gestos que combinam pequenas peças e as costuram para formar um todo maior.
Em algum sentido, enxergo que um patchwork pode se tornar uma comunidade de restos de tecido que foram unidos. Costurá-los pode ser violento, porque você está cutucando-os com uma agulha, na criação de algum tipo de poder entre eles, para que não possam ser rasgados ou despedaçados. Penso muito nisso ao contar histórias. Não quero que as coisas se tornem incidentes isolados. Quero que o que eu produzo esteja em comunidade, em relação com outras coisas e pessoas.
Frequentemente, são as mulheres as guardiãs das histórias e as destinadas a contá-las. Há uma pressão cultural para que uma mulher se sinta assim, especialmente quando se trata de histórias familiares, porque tradicionalmente as mulheres são consideradas mais sensíveis ou capazes de estarem em sintonia com as emoções – o que penso ser um condicionamento social. Não sei se isso é verdade ou não, mas acho que é muito importante pensar sobre esse peso que nos foi colocado ao longo da história, recuperando ou transformando ele de alguma forma.
Voltando a questão dos pássaros, você comentou em uma entrevista que se num primeiro momento mostrou os pássaros em seu trabalho enquanto arquétipos de paz, guerra, morte e horror, posteriormente, passou a querer usá-los não como símbolos antropocêntricos, mas como rotas para encontros mais vulneráveis e sintonizados com o não-humano. Como foi esse momento de virada de chave – da representação à participação?
SS: Acho que aprendi isso trabalhando com os pássaros. Estou com eles todos os dias. Agora, por exemplo, na clínica, tenho uma coruja, uma pomba, um gaio-azul, um cuco. É comum cientistas e pessoas, de modo geral, atribuírem hábitos específicos a alguns pássaros, como: “ah, esse pássaro é tão engraçado” ou “ah, esse pássaro é tão calmo”.
Na arte, isso também acontece. Basta pensar na imagem de Fidel Castro com uma pomba pousando em seu ombro, uma imagem que se tornou icônica. As pessoas olham para essa fotografia e associam à ideia de uma pessoa pacífica, porque há uma pomba branca pousando sobre ele. Então agora dizemos que as pombas brancas são pacíficas e as utilizamos em casamentos. São coisas como essas que me fazem pensar como as pessoas projetam arquétipos em animais sem conhecer nada sobre eles. Nós apenas pensamos “oh, isso significa isso, portanto é isso”. Estou cansada de ver essa maneira centrada no ser humano de lidar com os animais, porque vejo o que acontece com tantos animais que vêm até mim, que foram feridos ou mutilados por humanos que pensavam que os entendiam.
Neste momento, estou cuidando de uma pomba na clínica, e percebi que não há nada neste pássaro que seja realmente pacífico. Ela é quieta, pode ser calma, mas na verdade é extremamente medrosa, aterrorizada e reservada. Todas essas características são comportamentos que ela tem por ser uma ave que é presa, não predadora.
É uma forma de produção de estigmas, não é?
SS: Sim, é como o que acontece com as corujas. Dizem que elas são sábias. Só que as corujas são burras como pedras, são estúpidas. Elas são lindas e adoráveis, mas o que quero dizer é que elas não são animais excepcionalmente brilhantes. Elas são predadoras, focadas unicamente em matar e comer. Isso tudo me faz pensar que se vou trabalhar com pássaros, se vou fotografá-los, preciso ter certeza de que não é para algum tipo de projeção centrada no ser humano ou alguma forma de pensar centrada no ser humano. Eles não são veículos, eles são criaturas independentes que deveriam estar livres das nossas projeções.
Você consegue expressar isso na fotografia The Blind Owl (A coruja cega – 2023), na qual um dos olhos da coruja está parcialmente coberto por uma laranja. Sobre essas relações, gostaríamos de saber se você sente que um pássaro “pede” uma cena ou imagem específica. [A filósofa belga] Vinciane Despret tem uma frase que diz: “os animais veem seus cientistas vendo-os”. Assim, no seu processo de composição fotográfica, você sente a agência dos pássaros? Há uma relação sua com eles de ‘entender’ que imagem faz sentido de acordo com cada ave?
SS: Com certeza, é como uma colaboração. Há uma grande parte do trabalho que acontece fora das câmeras, fora do estúdio, que consiste realmente em aprender a conhecer essas criaturas, porque muitas vezes elas ficam na reabilitação por meses seguidos. Acabo conhecendo suas peculiaridades – seja que tipo de insetos elas gostam de comer ou como elas gostam de comê-los.
Neste momento, estou cuidando de um cuco amarelo, uma ave que produz um som estranho. Ela rosna quando se sente ameaçada e eu nunca tinha visto um pássaro rosnar antes. A confiança entre nós tem se dado aos poucos. Temos uma rotina em que eu a alimento, mas ela não come a lagarta enquanto estou na sala. Faz um mês e meio que ela chegou e sinto que não nos conhecemos de verdade ainda, porque estou aprendendo coisas novas sobre ela a cada dia.
São relações que nos fazem refletir sobre formas de dominância. Eu nunca iria estereotipar ela como apenas um pássaro que será retratado em um estúdio de foto. Isso é muito importante. Como quando eu fotografo os corvos, por exemplo, eu parto de um relacionamento que construí com eles, no qual eles realmente me antagonizam. Eles desamarraram meus cadarços. Quando eu não estou olhando, eles se sentam no meu ombro, colocam seus bicos no meu bolso, ou então puxam meu celular e o escondem em algum lugar. Há algo sobre eles serem trapaceiros, travessos, que penso que é importante para suas naturezas, e isso aparece quando nós trabalhamos juntos. Cada pássaro é diferente, eu poderia falar sobre eles para sempre.
Sua relação com os pássaros é diferente da ideia que construímos desde a infância de eles serem animais que vivem na natureza, em um ambiente ‘intacto’, enquanto os humanos vivem nas cidades. Você mistura todas as coisas, quebra as dicotomias, e é interessante aprender sobre isso. Essa mistura ‘impura’ aparece também nas suas exposições. Em diversas montagens do seu trabalho, as fotografias são exibidas junto a desenhos nas paredes, ou apresentações mais próximas da escultura-instalação. Como essas escolhas expográficas fazem parte do seu processo?
SS: Trabalho com a quebra de expectativas, desde a fotografia até a apresentação. Para mim, não faz sentido que a fotografia seja apenas bidimensional, enquanto um papel emoldurado. Quando estou construindo a foto penso em todo cenário, nos personagens. Quando a foto está feita, não vejo ela como uma “documentação” do que aconteceu. A imagem segue viva, como uma história que ainda está acontecendo.
Quando você entra no espaço expositivo, o lugar se torna novamente um palco a ser ocupado. Vejo as fotografias tornando-se atores da exposição. Então, se nós apenas pegarmos esses atores e os fixarmos na parede, é como se tivéssemos um pouco da vida, do movimento. As fotografias devem ser lugares de ativação.
Eu penso em construir o design das minhas exposições da mesma forma que eu construo os cenários das fotos. Não estou interessada em mostrar os cenários porque penso que isso é parte do truque de mágica que gosto de sustentar. Hoje em dia, estamos muito interessados em saber se algo é ou não real. Eu não quero fornecer o cenário real para que o público veja como foi feita a imagem, mas eu penso sobre encenação, construção e teatro da mesma maneira como faço no processo das fotografias.
Gostaríamos de ouvir você sobre sua série mais recente e em desenvolvimento, Ghost writer (Escritor fantasma). Nela você reflete sobre a fuga dos seus pais do Irã enquanto refugiados políticos, algo que perpassa toda a história da sua vida e da sua obra. Essa é a primeira vez que você aborda esse assunto tão diretamente no seu trabalho. Por que você acha que levou tanto tempo? Por que agora?
SS: Venho querendo fazer esse trabalho a minha vida toda. Eu só não tinha a linguagem adequada para fazê-lo. Comecei a produzir artisticamente sobre o que aconteceu com meus pais quando tinha em torno de 20 anos. Eu não era formada ainda, e lembro que nas críticas feitas entre os colegas da área, houve uma exotização e fetichização do que havia acontecido com a minha família. Quando eu tinha 25 anos, fiz minha primeira exposição em uma galeria e conversei com um jornalista. Fui muito aberta sobre o que havia acontecido com meus pais. O artigo, que deveria ter sido sobre a minha produção artística, virou sobre a minha história e esse fascínio pela pornografia da dor.
Pessoas que não tiveram traumas graves em suas vidas querem se sentir próximas de algo traumático, e então elas absorvem as histórias dos outros. É algo que não estou interessada em reproduzir, e quando aquela publicação saiu eu parei de tratar desses assuntos nas minhas obras. Decidi não fotografar meus pais, nem falar sobre a história deles.
Então, veio a pandemia de covid-19 e meu pai é médico, um trabalhador essencial, e tive medo de que ele morresse. Comecei a pensar que meus pais poderiam morrer, eu nunca havia fotografado eles antes. Lembro de ligar pra eles e dizer “ok, se todos nós vivermos, posso fotografar vocês?”. Eles disseram: “sim, nós vamos viver, pare de ser paranoica. Você pode nos fotografar, mas com estas condições.”
Então, nós criamos um conjunto de regras de colaboração e privacidade, e trabalhamos juntos para garantir que essas histórias fossem contadas de maneira não apelativa. Foi assim que eu realmente construí a linguagem para fazer Ghost writer. Eu não acho que eu poderia ter feito esse trabalho antes. Aconteceu quando precisava acontecer.
O cuidado é um dos corações do seu trabalho. Seja o cuidado com os pássaros, com os seus pais, ou com a forma de contar uma história pessoal e coletiva marcada por violências da guerra. As suas imagens nos lembram uma provocação da escritora estadunidense Maggie Nelson, em que ela diz: “De que maneira as noções de cuidado – também como uma forma de amor — podem transformar a estética do protesto?”. Então, por fim, Sheida, você acredita que fazer imagens é uma maneira de curar?
SS: É uma ótima pergunta. Acho que pode ser. Não acho que seja o fim em si, tem que ser uma abordagem multifacetada, certo? Acredito que produzir imagens é uma das maneiras de gerar conversas, de fazer as coisas andarem, de produzir entendimentos e desentendimentos. Porém, não pode ser uma tarefa solitária.
Deve caminhar de mãos dadas com outras ações, como protestos, reuniões de grupos, discussões. Penso muito no meu pai como uma figura política, um militante, um trabalhador em prol dos direitos humanos. Ele é alguém que fez um trabalho muito diferente do que eu estou fazendo. Estou apenas criando imagens e contando histórias, mas eu não poderia fazer isso se não fossem aqueles que fazem o trabalho in loco, cuidando de pessoas, organizando protestos. São coisas indissociáveis.
Acredito que as imagens precisam fazer parte de uma comunidade. As fotografias precisam integrar uma conversa maior, para realmente conseguirmos atingir os objetivos que queremos atingir, a libertação que queremos alcançar um dia. ///
Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos, educação e crise climática. Colabora com diversos veículos e revistas, como UOL, Nexo, Revista Select, Portal Colabora, Dialogue Earth, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.
Taís Cardoso é pesquisadora e curadora, interessada em processos artísticos que tenham uma abordagem feminista e queer e que se relacionem, direta ou indiretamente, com a crise do clima e suas materialidades. É doutoranda e mestre em história, teoria e crítica de arte, pelo PPGAV–UFRGS e bacharel em Ciências Sociais.
Tags: filosofia da imagem, fotografia contemporânea