Todas as imagens vão desaparecer
Publicado em: 25 de outubro de 2024Foi agora, neste último Carnaval, o primeiro dos Carnavais em que ela disse ter verdadeiramente se entregado à folia, que um episódio no mínimo excepcional aconteceu. Não me cabe contar aqui todos os detalhes – até porque não os tenho –, mas o importante mesmo é tomar conhecimento do momento em que Tadáskía foi picada, na perna, por uma lacraia. Em uma rápida pesquisa que fiz, a lacraia é um bicho assim: tem o corpo longo e o dorso achatado, e pode ser chamada de centopeia; tem muitas patas e pode ser, ou não, peçonhenta.
Eu (assim como você, talvez) pouco sabia como era uma lacraia, mas fiquei impressionada por ela ter se tornado a protagonista que me ajudaria a escrever sobre a prática de Tadáskía, artista com quem venho nutrindo longas conversas – especialmente depois da sua participação na 35a Bienal de São Paulo, em 2023. E foi em um desses encontros que Tadáskía destacou o episódio da lacraia para explicar o que ela chama de “aparição”: um momento de revelação que tem como um de seus princípios acreditar que “algo vai surgir, já está surgindo, já existe”, nem que esse momento de criação seja uma lacraia.
O fato de processar um acontecimento como uma “revelação escondida” se baseia na capacidade da artista de ler as situações do cotidiano para além dos significados mais ligeiros e aparentes. No caso da lacraia, por exemplo – entre o quase nenhum grau de significância ou seu extremo –, Tadáskía se lançou em uma aproximação cromática do quilópode com a figura de Exú, entidade que, em virtude da longa trajetória evangélica da artista, nunca lhe foi tão íntima, assim como a sua festa por excelência, o Carnaval.
Ouvindo a artista e pensando, ao mesmo tempo, no meu compromisso com a escrita da história e no dela com aquilo que não foi feito para permanecer, adicionei às linhas da escritora francesa Annie Ernaux em Os anos (2021) – que eu havia lido nas vésperas do Carnaval e inspiraram o título deste texto – o pensamento da escritora estadunidense Saidiya Hartman sobre a vida ordinária e a monumentalidade do cotidiano das mulheres negras. Juntas, elas me levam a pensar sobre os imbricamentos presentes na relação entre fotografia e performance, o acontecimento, a permanência e o desaparecimento. Tudo isso motivada pela resposta fascinante que recebi de Tadáskía quando lhe perguntei como suas fotografias acontecem: “As coisas vão aparecendo”, ela me respondeu. “E o que eu não sei, talvez esteja nos cadernos.”
Lacraia é o título com o qual ela batizou o caderno de 2024. Um caderno que até o momento da escrita deste texto ainda não existe, mas que já estava acontecendo e, portanto, apareceu num outro caderno intitulado Sacola de viajante, como a artista excepcionalmente verificou, diante das minhas crescentes perguntas. Esse fato é importante, pois, como em muitos de seus depoimentos, a relação entre o fazer e o não saber, mostrar e esconder, desenhar e não ver, fundamentam seu método de trabalho. As ideias e as formas aparecem e reaparecem. Chegam por diferentes canais. Assim como as muitas imagens, orientações, instruções, desenhos e observações que agora começaram a ganhar vida em Lacraia, foi mediante um procedimento similar, e que se realiza por meio dos cadernos, que surgiram os trabalhos to show to hide (2020), Corda dourada (2019) e Hálito (2019).
Em to show to hide (ou “mostrar esconder”), o mistério da aparição nos conta da complexidade com a qual a artista lida com o problema da representação. Ela diz: “Eu acho que nem tudo pode ser revelado, nem tudo pode ser entregue. Quando você vai pensar a fotografia de pessoas negras e pobres, sempre tem algo de tentar representar, documentar, trazer uma identidade, uma identificação. No entanto, não é isso que me encaminha. Com essas fotografias, ao mesmo tempo que eu tinha a necessidade de mostrar que eu surgi dessa realidade – que, de primeira, parece ser um contexto superprecário –, por outro lado, a fotografia me dava a chance de mostrar aquilo que ela mesma está escondendo: é o momento em que você vai encontrar um tesouro, certa espirituosidade da vida, e todos os conflitos que ainda não se resolveram.”
Usando a mesma câmera Yashica 35 mm com a qual o pai fotografava, na infância da artista, os passeios a Aparecida, Tadáskía criou uma série, em 2020, que mostra seu interesse por pensar que algo na fotografia possa se revelar, com base nessa crença na aparição. Pois ela, depois de criar os cadernos, deixa de olhá-los, as fotografias surgem das páginas da imaginação, que voltam quase como uma profecia. Como as aparições não são ensaiadas ou literais, a natureza do trabalho foge do documental para o performativo, muito em razão da importância de uma escrita poética e fabulativa presente em muitos de seus escritos, como a Ave preta mística, série apresentada na 35a Bienal.
Performando com e contra a câmera, é comum no trabalho da artista a presença e a participação de integrantes de sua família. O cotidiano e os repertórios simbólico, afetivo e epistemológico preenchem seu arcabouço cognitivo. Como observamos em to show to hide, uma família de esculturas é criada para ser performada por pessoas de sua família. Zumbidas, Rastejantes, Rabos, Trepadeiras e Gruda-gruda são os nomes das esculturas. Nessa tentativa de mostrar e esconder, é com a performance das esculturas de vestir que o trabalho acaba camuflando ou mascarando a imagem largamente esperada do cotidiano da vida negra. A brincadeira e o diálogo entre essas duas famílias mostram e escondem o ordinário e o alienígena, em uma interação na qual seus parentes não surgem somente como tema do trabalho, mas como protagonistas de um projeto artístico maior de redistribuição da abundância.
Entre cadernos e álbuns de família, a presença de uma linha dourada que liga, conecta, emenda, costura e “redistribui o centro”, além de ser o fundamento de Corda dourada (2019), também está presente em Suco preto e carne dourada (2020) e Corda dourada com minha mãe, Elenice Guarani, minha tia Marilúcia Moraes, minha avó Maria da Graça e minha tia Gracilene Guarani (2019).
Nesses trabalhos, pensar a redistribuição de acessos e de recursos como uma metodologia estética e um procedimento ético (perspectiva também recorrente na prática de muitos outros artistas negros e indígenas), me fez lembrar da seguinte afirmação: “De todas as formas de arte, a fotografia é a mais suscetível ao discurso dos direitos, por boas razões. E o direito que mais se evoca é o direito à propriedade”, como colocam os acadêmicos estadunidenses Stefano Harney e Fred Moten em “A des/aparição da foto de família negra” (2023).
Essa discussão sobre fotografia e propriedade presente no texto nos interessa para discutir tanto a condição compulsória e generativa de despossessão e expropriação da vida negra quanto a relação entre sujeito e objeto “que resiste aos fins do olhar [gaze] e da imagem”. Tendo como fundamentos éticos do trabalho a repartição de possíveis valores vendidos com os familiares presentes nas imagens, assim como o empreendimento de projetos de reparação econômica dos mais diversos, a fotografia parece confirmar o pacto familiar que afirma que nós podemos manter alguma posse ao ser possuídas: “No dia 10 de janeiro, convidei minha família e amigos para aparecermos às 13h comendo uma carne dourada e um suco preto. […] Servi a carne dourada e o suco preto na mão de cada pessoa, com uma colher de pau. Depois de comermos, guardamos a toalha e os objetos para nossa segunda aparição. No mesmo dia, às 16h, aparecemos em frente da porta das Cavalariças. Assim que ouvimos pessoas nos fotografando, dizendo ‘olha o passarinho!’, reviramos os olhos. Cada pessoa em seu próprio tempo.” Assim a artista descreve a aparição intitulada Olha o passarinho! com minha tia Gracilene Guarani, minha mãe, Elenice Guarani, meu pai, Aguinaldo Morais, meus primos Breno Moraes e Lucas Moraes e minhas amigas Aline Besouro e Lorran Dias (2019), registrada por Gabi Carrera no parque Lage, no Rio de Janeiro.
Na contramão de muitas fotos de família abandonadas ou jogadas fora, a economia da propriedade visual e a relação entre possuir e ser possuída alinham Corda dourada com a história. Uma imagem que, para muitos, pode ser amarrada por uma linearidade progressiva com outros movimentos artísticos, mas, para Tadáskía, é um trabalho que nunca esteve atado nem intencionado a fazer nenhum tipo de citação, atualização ou mesmo referência direta a outras obras, artistas hipervisíveis ou grandes narrativas históricas. Como veremos, para Tadáskía, o passado dessa fotografia é o presente e a história da existência negra.
Por meio de um conhecimento incorporado em seu cotidiano, a linha se revelou como aparição, segundo Tadáskía me contou, quando ela percebeu que o ouro e a fortuna não se resumem unicamente a uma questão material. A performance surge, portanto, como um gesto que expande a necessidade objetiva da realidade: realizar um ato em que o ouro se ritualiza e se profetiza como uma imagem para o futuro. Ela toma a família como uma propriedade que resiste ao objeto fotográfico e que compete com a reprodutibilidade da história. Ela toma a família como uma propriedade que, mesmo enquadrada nos blocos aparentes da casa sem reboco ou de uma arquitetura que revela a pobreza, promove a criação de um vocabulário visual prolífico, em que a relação com a memória e com a propriedade se refazem em seus próprios termos.
No texto “Tempo negro: abstração e racialidade na arte contemporânea brasileira” (2021), abordei o complexo debate sobre os modos como as relações entre tempo histórico e tempo ancestral matizam as experiências afrodiaspóricas. Pensei, no entanto, que talvez valha refazer um breve comentário sobre tais processos de alienação e afiliação com a história da arte. Ainda que vivamos o risco contingente de que as referências visuais históricas componham nosso lugar da memória, são (também, e, às vezes, sobretudo) “os ambientes da memória, seus repertórios orais e corporais, gestos e hábitos”, como explica Leda Maria Martins, no ensaio “Performances do tempo espiralar” (2002), que alimentam os inúmeros processos de cognição. É a despossessão que desafia e excede a crítica, capaz de, muitas vezes, ler apenas a representação de um ícone. Como comenta Hilton Als no texto “O primeiro passo para se tornar um historiador de arte” (“The First Step of Becoming an Art Historian”, 1985), “para ver, é preciso possuir uma linguagem que direcione o olhar para aquilo que está sendo percebido. A linguagem da percepção, particularmente a da experiência negra na arte, é difícil de ser adquirida.”
Talvez essa mudança de percepção seja uma das duras dádivas de que tratam Harney e Moten em relação à foto da família negra. Meditando sobre a doação da imagem e sobre a violência que existe no dar e no receber, eles assumem que essa é a química da foto da família negra: “A existência insiste nesse borrão da ferida e da bênção. É a aspiração de nosso suspiro de morte, a substância de ser não vista em ser sempre vista, que, secretamente, desprendidamente, vemos conosco, não vendo nós mesmas, mas vendo algo mais no vendo com, como se ver fosse tudo, como se tudo fosse apenas uma prática, assim como nós fazemos no domingo à noite, evidentemente.”
É também com suspiro e hálito que Tadáskía medita sobre um acontecimento brutal que tomou o noticiário em 2018. Matheusa Passareli, artista não binária e estudante da Uerj, foi executada, esquartejada e teve o corpo incinerado por traficantes no Rio de Janeiro. Às 10h da manhã do dia 30 de maio, após a confirmação da morte da artista, Tadáskía construiu uma pequena fortaleza para se esconder. “Eu uso um vestido vermelho em homenagem a Matheusa Passareli”, se lembra. Em Atrás do muro (homenagem à Matheusa Passareli) (2018), ela constrói uma parede com blocos, em que passa um saco plástico através do buraco na fortaleza no qual enche, esvazia e respira no saco entre a parede. Matheusa é também família e este sopro de vida aparece em diferentes cenas. “Cada hálito com a sua sacola”, se escondendo em nós na luz do que se tornou uma fotografia de uma família destruída, despossuída na sua imagem de família, uma imagem de família que não existe mais. Ou seria um outro tipo, o nosso tipo ou o tipo possível do que se considera um álbum de família?
Em Hálito (2019), Tadáskía, a mãe, o pai, a avó, tias e primos sopram sacolas grudadas pelo fogo na casa da artista. É a duração da vida que cria o quadro. A fotografia “é comissionada contra, mas também sob os termos de um contrato de carniceria social”, nas palavras de Harney e Moten. Hálito pode ser tanto aquilo que a artista chama de um “exercício elementar de vitalidade”, como “uma reunião temporária que murcha”. “Resistindo, estilhaçada, protegida – a química de momentos roubados é nossa verdadeira e terrível e bonita partilha negra”, como dizem Harney e Moten, que também afirmam: “Essa cadeia de visão (olhar, olhar como, ver com aparentar, desfiar) é uma cadeia de entregas. Há violência em ser contida prestes a ser escondida. Ser valorizada é tudo menos estar perdida. Nada encontrada em ser procurada. A respiração comum se foi e não podemos reconstruí-la. E, de todo modo, que presunção é essa de família, e de seus direitos e de seu quebrantamento, tudo o que está sendo confirmado na carreira prematura dos estranhos instantâneos? Pode haver uma tal coisa como uma foto de família negra? Deveria haver?”
O sopro de vida da fotografia de Tadáskía, uma fotografia suada e quente, advém da sua insistência na força animadora de transformação e resistência, através do uso consciente de que esta é a linguagem da percepção que possuímos para sermos possuídas. Entre “o interminável flash, o infindável momento de ser roubada”, e o fato de que “estamos sumindo”, a lacraia exuística renova na artista o compromisso em acreditar que “nem todos os perigos são letais”, e em nós, a crença de que a aparição é um ato de fé. De imagens fúteis e banais, precisamos tomar nota. Voltemos às profecias dos cadernos da artista: “Somos da família das Aves Pretas Místicas. Somos conhecidas também como as Frangas Encantadas. Inspiradas em Sankofa. Amigas da Magia.”
Todas as imagens vão desaparecer. Haverá quem nos reconheça? ///
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Texto originalmente publicado na edição impressa da revista ZUM #27.
Tadáskía (Rio de Janeiro, RJ, 1993) é artista, formada em artes visuais e mestra em educação pela UFRJ. Apresentou as exposições Sob as cinzas, brasa, no 37o Panorama da Arte Brasileira (MAM-SP, 2022), e Projects: Tadáskía (MoMA, 2024), em Nova York. Participou da 35a Bienal de São Paulo (2023).
Diane Lima (Mundo Novo, BA, 1986) é curadora e escritora. Foi uma das curadoras da exposição Vuadora, de Paulo Nazareth (Pivô), e Stella do Patrocínio: a história que fala (Museu Bispo do Rosário), em 2021. Foi cocuradora da 35a Bienal de São Paulo (2023).