Ensaios

Morro, mar e memória

Laís Mariane Ribeiro Publicado em: 18 de julho de 2024


Fundadora do projeto Fotogracria, a fotógrafa e produtora cultural carioca Salémm, leva o nome e a imagem dos “crias” da Rocinha para o mundo ao mostrar as vivências e tráfegos dos moradores da comunidade com outros territórios da cidade.

Responsável pela agência de produção cultural Favela Content, Salémm trabalha com artistas e marcas que enxergam a importância da representatividade estética que há nos morros, ao unir um coletivo de profissionais locais para criar conteúdo comercial e artístico, tendo como clientes agências de publicidade e paredes de museus.

Ela conta que tudo começou com um celular emprestado, registrando vivências que se condensam neste território: “É importante começar com o que você tem e de onde você está”. Salémm continua sua reflexão: “O asfalto tem que se coçar, para conhecer mais e subir. O que não pode é ser de qualquer jeito. Antes de sair tirando foto de tudo que vê, o primeiro passo é tirar foto de onde tu é cria, no lugar onde você nasceu, porque fica mais fácil explicar suas intenções como fotógrafo, já que todo mundo vai saber teus fundamentos. Imagina alguém entrar no teu condomínio apontando câmera para tudo que é lado?”

“Ao longo dos últimos anos a Rocinha começou a ser dominada pelo tráfico, que na real são anti-heróis, ajudam as pessoas, mas ainda são o tráfico e isso é complicado de mudar. Fico viajando que se eles fossem na verdade uma força social, racial e ecológica teríamos o ecoterrorismo. A expansão da favela, o fortalecimento da nossa gente impondo a revolução e um futuro melhor pros nossos, porque não dá para esperar que quem vive em suas bolhas de zona de conforto e se beneficiam dessa estrutura social que vivemos queira mudar algo por aqui. “

Na visão de Salémm, ao fazer sua história e a de milhares de pessoas percorrer os museus do Rio de Janeiro e de outras regiões do Brasil, ser mostrada em fotolivros e exposições internacionais, o Fotogracria consegue interromper o processo de pasteurização das favelas pelo olhar de fora das comunidades e dá o tom para narrativas múltiplas do que ferve nas ruas e becos do morro. Tendo a menorzada como público cativo, é deles e para eles os frutos dessa expansão de imaginários.

De frente para a praia e localizada na zona sul do Rio, a Rocinha se situa em um território nobre e de ancestralidade. Por este motivo, no dia a dia os moradores vivem um paradoxo sobre como ocupar essas fronteiras: o mar é parte Rocinha, mas, historicamente, aos seus moradores é vedado o livre acesso à praia. Para Salémm, a praia é uma válvula de escape para a comunidade, proporcionando um olhar de fora para dentro, que permite vislumbrar a grandiosidade daquela ocupação e resistência.

“Eu cresci num beco muito estreito da minha favela, só tinha a visão das outras casas. Naquela época, lembro de minha mãe descendo com 15 crianças para o mar. Isso permanece no nosso cotidiano como apropriação dos nossos espaços de direito. Me perguntava: por que eu não vejo o mar? Hoje vejo o mar e a Rocinha e tudo se encaixa”, declara Salémm.

Ao capturar a vivência dos “seus” na orla, a fotógrafa aproveita essa oportunidade para produzir comerciais e projetos autorais, fugindo da regra favela, futebol e funk. Junto com isso, busca também dar visibilidade a uma retomada identitária. “O trabalho simplesmente flui. Quero as identidades pardas, indígenas e quilombolas representadas. O Norte e o Nordeste, que por consequência da migração foi escanteada para cá. Fazer arte não precisa ser nada complexo, nada nichado. Em tupi, não existe uma palavra específica para arte porque arte não está separada da vida, a vida é a nossa arte.”

Criar memórias visuais e ainda assim registrar o que se perpetua é o que move a artista. Salémm alimenta sua criatividade através do midjourney, brincando com conceitos de amazofuturismo e solar punk. Ao acompanhá-la nessa jornada, vemos a formação dessa favela futurista, onde a ancestralidade é reverenciada e tensionada na descoberta de novas expressões artísticas e culturais.

“Minhas metas continuam sendo trazer mais arte para a Rocinha, pois muitos de nós ainda se sentem deslocados em lugares de arte que transmitem esse ar de distanciamento. E lançar um fotolivro. Na colaboração que fiz no projeto Pega a visão aprendi a produzir e conduzir esse tipo de material, agora quero lançar o meu com um tempero de favela.” ///

Todas as fotos gentilmente cedidas por © Fotogracria

Laís Mariane Ribeiro é fotógrafa e redatora, graduanda em jornalismo onde se especializa em curadoria da imagem e ativismo, colaboradora do Fashion Revolution e integrante da equipe da revista ZUM.

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