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Mauricio Lissovsky e os duplos que assombram a história da fotografia

Ronaldo Entler Publicado em: 27 de junho de 2024

Duas jovens segurando um daguerreótipo, fotografia de autor desconhecido, Estados Unidos, c. 1855. Reprodução do livro A fotografia e seus duplos, de Mauricio Lissovksy, 2024.

Walter Benjamin sugeria ao historiador que lidasse com o tempo como um lugar sempre “saturado de agoras”, de modo que um acontecimento do passado pudesse ser tomado não tanto “como ele foi”, mas como uma potência que dirige um apelo ao presente (Sobre o conceito de história, 1940). Como nenhum outro benjaminiano, Mauricio Lissovsky fez da fotografia o lugar privilegiado em que esse conceito de história se torna matéria visível e, por meio dela, investigou os modos como acontecimentos de épocas diversas se dirigem ao presente. Lissovsky resgatou o pensamento benjaminiano de sua condição especulativa e fez disso um método para pensar as imagens que estão nos arquivos, nos álbuns de família, nos jornais, na publicidade ou impressas em souvenirs.

Lissovsky morreu em 2022. Vivia um momento muito produtivo em que suas leituras avançavam sobre as entrelinhas mais enigmáticas dos textos de Benjamin e se desdobravam numa escrita poética e inventiva. Deixou um projeto teórico consistente, atravessado também por autores não menos complexos, como Warburg, Freud, Bergson, Deleuze, Barthes, Sontag, Derrida, Agamben e Didi-Huberman, entre tantos outros. E deixou um livro inédito, A fotografia e seus duplos, resultado de uma pesquisa que realizou ao longo de uma década, muito representativo desse momento de maturidade e irreverência intelectual. A obra foi editada em 2023 e teve um lançamento simbólico bastante restrito ao ambiente acadêmico. Mais recentemente, o livro ganhou uma edição digital pela editora Acaso Cultural, com distribuição gratuita, como era seu desejo.

Baldomero Alejos, Ayacucho, Peru, c. 1930. Fonte: Archivo Fotográfico Baldomero Alejos, 1924-1976. Reprodução do livro A fotografia e seus duplos, de Mauricio Lissovksy, 2024.

A temática dos duplos, que já aparecia em aulas e artigos pontuais, se converte agora numa teoria mais ampla sobre a fotografia. Mas afinal, o que são os duplos? Se não é simples defini-los de maneira sintética, podemos, ao menos, descrever alguns deles: um duplo pode ser uma imagem dentro de outra imagem; podem ser retratos de pessoas – parentes, gêmeos, sósias – que tensionam semelhanças e diferenças; podem ser personagens que, por meio de artifícios diversos, se duplicam dentro de certas fotografias; são também formas que, ao longo da história, se repetem ou se atualizam em lugares distantes e improváveis. E o que nos ensinam esses duplos? Em linhas gerais, que há um pensamento articulado pelas imagens e entre as imagens, operados de modo consciente ou não por seus autores.

Mas o duplo se constrói também em negativo, como um contraponto que a imagem faz de si mesma, demonstrando contradições que habitam as evidências que ela fornece. Como exemplo disso, Lissovsky traz uma longa reflexão sobre a relação entre cães e humanos, demonstrando o modo como esses personagens ocupam posições intercambiáveis no imaginário produzido pela fotografia. Para além das poses que compartilham, esse paralelo aponta fissuras no pensamento humanista que foi tão caro à história da fotografia. Ele localiza esse contraponto também no interesse que diversos fotógrafos e intelectuais tiveram pelo xadrez – seja o jogo de xadrez ou as estampas e composições em xadrez. O contraste entre o preto e o branco, que delimita o espectro de tons que constituem essa imagem, metaforiza certos binarismos que assombram a história da fotografia: por exemplo, o modo como essa imagem escrutina e produz a alteridade racial ou, no âmbito da técnica, a linguagem digital – o 0 e 1 – que viria a pôr em xeque seu valor testemunhal.

Em reflexões anteriores, Lissovsky já havia demonstrado sua capacidade de fazer conexões improváveis entre fenômenos distantes. Neste livro, ele discute esse procedimento quando, citando Freud, compara o chiste e a magia. Ele se refere a ambos como “a construção de analogias entre elementos disparatados (ou a revelação de analogias ocultas entre eles), (…) passagem, tão breve quanto possível, do desconcerto ao esclarecimento” (A fotografia e seus duplos, 2023).

Passagem do desconcerto ao esclarecimento é uma boa expressão para definir a impressão que muitas vezes tivemos ao escutá-lo. Exemplo marcante disso foram suas “Dez proposições acerca do futuro da fotografia e dos fotógrafos do futuro”, um de seus textos mais lidos, e que alguns tiveram o privilégio de conhecer pela voz do próprio autor, na participação que fez no Fórum Latino-americano de Fotografia de 2010. Ali escutamos algumas construções impactantes que reverberariam em muitas rodas de conversas de fotógrafos e pesquisadores: “os fotógrafos (…) são profetas das entrelinhas”; “todo fotógrafo é o guarda florestal de uma reserva de futuro”; “toda fotografia um dia irá nos assombrar. Fotógrafos são caça-fantasmas”; “fotografias são sobreviventes. Fotógrafos são foto-náufragos em missão de resgate”; “toda fotografia é a última, principalmente a próxima”, diz Lissovsky nesse texto. São raciocínios difíceis, mas que ficam cravados no pensamento como imagens, e que seguem fazendo seu trabalho até o momento em que tornariam crucial nosso encontro com alguma fotografia que viríamos a produzir ou a descobrir em um arquivo, um álbum ou uma publicação. Instaurar essa latência é justamente o trabalho das profecias.

Pouco depois da morte de Lissovsky, alguns de seus alunos e amigos foram convidados pelo artista Pio Figueiroa a ler cada uma dessas dez proposições. O resultado é um filme, ainda em fase de finalização, que detecta o modo como sua voz ecoa no pensamento e na produção de outros tantos pesquisadores.

Se Lissovsky sempre gostava de construir pontes entre experiências distantes, a reflexão sobre os duplos representa um desafio adicional. Não se trata apenas de pensar a fotografia por meio de analogias irreverentes que o pensamento literário é capaz de construir. Trata-se agora de perseguir uma distância percorrida pela história das próprias imagens que, em suas perambulações, dialogam entre si para se tornarem, elas mesmas, alegorias daquilo que elas pensam sobre outros tempos.

Cosme e Damião, de Adenor Gondim, Salvador (BA), 2003. © Adenor Gondim. Reprodução do livro A fotografia e seus duplos, de Mauricio Lissovksy, 2024.

A semelhança em que se baseiam os duplos é de um tipo que Benjamin definiu como “extrassensível” (Doutrina das semelhanças, 1933). Segundo ele, aquilo que chamamos de leitura era, nas sociedades antigas, esse desvelamento do futuro por meio de semelhanças que aparecem sempre como centelhas no presente, por exemplo, no modo como os adivinhos enxergavam um espelhamento entre as constelações do céu e a vida na terra. Então, Benjamin se interroga: em que lugar da linguagem essas semelhanças extrassensíveis se escondem, quando a noção moderna de leitura passa a se apoiar em signos puramente convencionais, como os que compõem hoje a escrita? Lissovsky coloca uma pergunta similar a respeito das imagens que saem do campo da magia e adentram o universo da técnica. É assim que, na busca pelos duplos, ele encontra anjos, personagens das mitologias egípcia e grega, santos padroeiros, Cosme e Damião, elementos religiosos das tradições africanas Iorubá e Bulu, ou dos Tlingit, do Alasca.

A noção benjaminiana de aura – essa sensação de distância que a obra de arte única produz “por mais próxima que esteja” – também é herdada das imagens sagradas (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1936). Para Benjamin, as técnicas de reprodução surgidas com a fotografia e com o cinema eliminam a distância imposta pela unicidade da pintura e, assim, destituem as imagens de sua aura. No entanto, Lissovsky demonstrou que Benjamin nunca cessou de buscar a aura na fotografia, que tem justamente a ver com sua capacidade de produzir fissuras na linearidade do tempo. Lissovsky parece então querer reencontrar as condições que permitem à aura sobreviver à multiplicação. Os duplos constituiriam assim uma medida justa entre a imagem única e uma reprodutibilidade menos mecânica, que permite à fotografia reencontrar-se com sua aura e instaurar-se como imagem histórica, no sentido forte que Benjamin deu a esse termo.

Como educador, Lissovsky trabalhou arduamente contra aquilo que entendeu ser o “analfabetismo do futuro” que, conforme o escutamos dizer no fragmento de vídeo acima, não tem a ver com a incapacidade de ler as imagens, mas de ler o futuro que nelas se aninha. “As fotografias atravessam os tempos como os fantasmas atravessam paredes, ambos condenados a fazer a incessante mediação entre o que foi, o que é, e o que será”, diz ele nesse último livro. Esses duplos são também presságios, não necessariamente mau-presságio, como eram os duplos – os doppelganger – da literatura de horror dos séculos 18 e 19. Os fantasmas são assustadores apenas para aqueles que tomam os acontecimentos do passado como coisa inerte e sem vida. Lissovsky, pesquisador dos mais irrequietos, deixou pelo menos duas pesquisas inconclusas que talvez nunca cheguem até nós: uma sobre sua coleção de “falsos falsos”, objetos sem valor aparente adquiridos em leilões, nos quais ele reconhecia certa força de originalidade; e outra sobre o modo como a fotografia era capaz de produzir tanto hostilidade quanto hospitalidade, no contato do olhar com a alteridade. Pelo menos, este último trabalho nos dá a certeza de que que seu pensamento ainda tem muitas camadas a serem descobertas. Muitos que acompanham sua obra, chegarão ao fim deste livro com a certeza de que Mauricio Lissovsky mal começou a ser lido. É assim que ele permanecerá nos assombrando. ///

Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.

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