Michel Poivert: “A fotografia é mais que uma imagem”
Publicado em: 20 de julho de 2023Autor do importante livro A fotografia contemporânea (2018), o historiador da arte francês Michel Poivert é um renomado pensador das relações entre a fotografia contemporânea e a sua inserção no mundo das artes, discutindo principalmente o campo de atuação da fotografia contemporânea em torno de temas como o pós-colonialismo, a globalização e a reparação histórica de populações dizimadas e/ou estereotipadas, entre outros.
Em conversa com a pesquisadora e professora Teresa Bastos, Poivert comenta que “observar a fotografia contemporânea pede duas coisas: manter a curiosidade, mas, também, eventualmente, começar a trabalhar e a ver as coisas da perspectiva do tempo. Se quisermos falar apenas do muito atual, nos tornamos todos críticos e falamos mais da moda ou da tendência. O trabalho do historiador consiste em relatar o passado, contar algo, e, para contar alguma coisa, não se pode simplesmente identificar os sintomas.”
Na entrevista, realizada em Paris, em novembro de 2021, como decorrência do pós-doutorado da pesquisadora subsidiado pelo programa de internacionalização acadêmica CAPES/PRINT-PPGAV, UFRJ, Poivert aborda diversas questões importantes para o mundo da fotografia hoje, como possíveis aproximações entre a teoria da representação teatral e o fazer fotográfico, as relações entre o digital e o analógico, e a emergente narrativa visual da ficção documental, entre outros temas. Leia abaixo a entrevista completa.
Em seu livro La photographie contemporaine (A fotografia contemporânea), você destaca que “a fotografia contemporânea não se limita a uma corrente da arte contemporânea. A fotografia abre a categoria geral das imagens”. Como você vê essa distinção entre imagem e fotografia? Como analisa a herança analógica da fotografia na era das produções digitais? Quais seriam as características dessa fotografia contemporânea?
Michel Poivert: É uma questão muito importante, na qual eu distingo duas coisas: a primeira é que, historicamente, a fotografia contemporânea nos anos 1990-2000 foi realmente integrada a uma noção mais geral de “imagem”. Simplesmente porque, na época, a fotografia contemporânea se tornou uma categoria da arte contemporânea e a noção de fotografia era redutora para pensar na criação fotográfica. Inclusive, os teóricos falam de “o fotográfico”, e não de fotografia. Então, nesse sentido, a noção de imagem nos anos 1990 tornou-se uma espécie de passagem entre a fotografia e a arte contemporânea. Isso foi há 20, 25 anos.
As coisas mudaram muito hoje, quando se nota uma espécie de retorno da noção de “fotografia”. A cultura da foto digital que começa nos anos 2000 foi totalmente definida pela imagem, porque os fotógrafos e os artistas que usam a fotografia quiseram se distinguir dessa cultura da imagem digital. Por que quiseram se distinguir? Porque procuraram valorizar a materialidade, a técnica, a experimentação, de forma concreta, e não simplesmente teórica.
Há mais ou menos 20 anos, vemos se desenvolver uma corrente artística em que a prática da fotografia analógica e de todos os procedimentos históricos voltou a ser um fenômeno contemporâneo. Num primeiro momento, nos anos 1970, a fotografia contemporânea precisou se afastar de um estatuto restrito demais para afirmar seu estatuto artístico. Logo depois, houve uma corrente que visava a rematerialização da fotografia para desenvolver uma estética do tangível, do concreto, onde a fotografia é realmente pensada como uma experiência. Esse fenômeno duplo questiona de forma muito profunda a relação entre a fotografia e a imagem.
Hoje, sendo historiador e teórico, afirmo que a fotografia não é necessariamente uma imagem. A fotografia é mais do que uma imagem. No final das contas, podemos definir uma imagem dizendo que se trata de uma representação cujo suporte pode variar. A mesma imagem pode estar num papel, numa tela, em qualquer suporte. Enquanto uma fotografia é necessariamente um procedimento ótico, químico, com materiais, com técnicas de perspectiva, de revelação… Enfim, há uma espécie de sistema fotográfico que deve ser estabelecido para que se fale de fotografia. Desse modo, uma fotografia pode não resultar numa imagem, mas numa experiência visual que pode ser abstrata, pode ser um monocromo, um material, uma experiência com substância fotossensível, híbrida entre analógica e digital.
Eu tendo a dizer que hoje temos um renascimento da fotografia como uma alternativa à cultura digital. Há 25 anos, construiu-se uma nova regra da imagem digital, e em reação a essa padronização se criou essa alternativa. Então, sim, a fotografia passou para o mundo das imagens no final do século 20, mas, de certa forma, confrontando-se à imagem, ela redescobriu suas especificidades. É bastante surpreendente, mas é realmente o sentido de toda criação contemporânea atual.
Você acha que hoje em dia, na fotografia, a condição de materialidade importa mais do que a condição visual como “indício” do real?
MP: Acho que as teorias surgidas da semiologia não são muito atuantes hoje, pois tiramos a fotografia da estrita categoria das imagens e pensamos nela como prática, profissão, tecnologia, dispositivos – e a questão da imagem é apenas uma parte disso tudo. A teoria da fotografia não se coloca mais apenas em termos de visão, do instante, do real, etc. Ela se coloca em termos de materialidade e de experimentação.
Em seu texto “A fotografia contemporânea tem uma história”, assim como no capítulo de A fotografia contemporânea intitulado “L’image performée” (A imagem executada), você reivindica uma história da fotografia que privilegia a encenação e o teatro em oposição à preponderância de uma fotografia “objetiva”. Você aborda a noção de teatro de Diderot, de Sartre e de Barthes. Poderia nos falar um pouco disso?
MP: É um trabalho que me ocupou muitos anos. Consistiu em indagar corpus fotográficos que não correspondem ao princípio de uma fotografia documental, isso é, uma fotografia que traduz a realidade como ela é, que se pode chamar de naturalista, e, sim, falar de uma fotografia que é muito importante, mas com a qual a modernidade sempre teve um problema: a fotografia encenada. Pois uma fotografia encenada parece contradizer o que se espera de uma fotografia. Contudo, na realidade, a maior parte das fotografias são encenadas e respondem a uma construção mental e tecnológica.
Questionei-me se o modelo da fotografia não seria mais o teatro do que a pintura ou outra coisa e, no fim das contas, a partir da teoria do teatro, percebemos que a fotografia pode ser entendida como um modo de representação muito próximo da encenação. A perspectiva, o projeto distribuído no espaço, uma cena que acontece diante de nós… É surpreendente que haja uma quantidade absolutamente fenomenal de fotografias do século 19, assim como do século 20, que são encenadas, mas não se quer que elas sejam vistas como tal. Tentei entender essa estética teatral lendo as teorias do teatro e analisando a maneira como a fotografia podia ser pensada não tanto como uma imagem, mas como uma encenação.
A fotografia como a imaginamos, ou seja, uma fotografia que capta o real de forma intuitiva e instantânea, é uma mitologia, ou mesmo, uma mistificação. O que me interessou no teatro e na teoria do teatro foi a relação com a realidade, a verdade, mas, também, desconstruir a mitologia do naturalismo e do instante decisivo na fotografia.
Atualmente, a teatralização tornou-se uma das características da fotografia contemporânea. Em geral, fazemos a associação entre fotografia e pintura, mas eu tentei estabelecer um paralelo entre teatro e fotografia. Grandes teóricos do teatro, como Diderot, são também teóricos da pintura, e, afinal, da representação. O que eu propus através de inúmeros estudos foi a noção de “imagem desempenhada”. O real passa a ser apenas uma condição da fotografia, que constrói uma realidade autônoma.
Tenho a sensação de que é preciso fazer justiça a uma estética que sempre colocamos de lado, dizendo que não era uma boa fotografia, mas uma encenação. Isso apesar de grandes fotógrafos estadunidenses da street photography conceberem a cidade e a rua como um teatro, com suas perspectivas, seus transeuntes que são como atores involuntários. É interessante cruzar essa ideia de fotografia de rua com a do teatro de rua.
No livro, você indaga: “Do que a fotografia contemporânea é contemporânea?”. A resposta é clara: da arte. Como ela foi, entre os anos 1930 e 1960, contemporânea da informação. Você reinsere a fotografia numa história em andamento, contemporânea da arte e em verdadeira cumplicidade com ela. A partir de então, as questões estéticas levantadas pela fotografia se revelam centrais para a arte. No Brasil, especialmente, isso se relaciona ainda com questões éticas e políticas; a questão da herança da escravidão? Questões de gênero e identitárias? Como relacionar estética, ética e política?
MP: Essa questão é muito vasta. Deve-se buscar um equilíbrio entre uma invenção formal, estética, e uma posição ética. É verdade que a fotografia contemporânea, isso é, a fotografia desde 1950, se liberou do mundo da informação. Até os anos 1960, o grande modelo de produção de fotografia é a reportagem. E o que é a reportagem? É um relato da atualidade para a informação. O portfólio, as ilustrações nos jornais, etc. Então, pode-se dizer que a fotografia entrou em nossa cultura pela informação.
O que acontece, a partir dos anos 1970, com o nascimento da fotografia contemporânea, é que esse modelo de reportagem já não predomina. Todos os fotógrafos que refletem sobre sua prática dizem isso: eles não podem mais criar fotografias fazendo reportagem, pois não são dados tempo suficiente para fazê-lo, não escrevem o texto e, com frequência, os jornais mudam o sentido das imagens. Os fotógrafos ficam infelizes e com raiva quando as legendas e os textos que acompanham as imagens modificam o significado delas. Então, há um desejo de escapar desse modelo de informação e encontrar outro que seja mais ético.
Os fotógrafos que se formaram em fotojornalismo, que sabem fazer fotografia de atualidade, tiveram que aprender outra linguagem, e é essa outra linguagem que virá dos artistas plásticos, dos cinegrafistas, dos arquitetos, de todos os outros horizontes artísticos. Eles precisam escolher formas que correspondam à sua sensibilidade, então, aos poucos, vão colocar em primeiro plano a questão da subjetividade e afirmar a noção do autor.
O fotógrafo se torna um autor – e entre autor e artista não há muita diferença. O estatuto de artista surge, sobretudo, porque os fotógrafos autores têm que encontrar outro espaço para mostrar as imagens. Os jornais não querem vender imagens que não correspondem às suas expectativas como informação. Essas imagens, então, serão mostradas nos museus e no mundo da arte.
Até os anos 1970, o local de consagração social do fotógrafo era a imprensa; a partir dos anos 1970-1980, o local de consagração social do fotógrafo é o museu. É assim que estamos hoje. Para ser bem-sucedido como fotógrafo, é preciso expor em um museu de arte contemporânea, muito mais do que ter suas fotografias publicadas na imprensa.
Isso mostra a questão ética: o significado das imagens, sua integridade e o respeito à singularidade do fotógrafo fizeram com que a fotografia de reportagem fugisse um pouco do padrão dos jornais e se tornasse mais ambiciosa e voltada para o olhar e para a criação de formas. Isso não significa que as fotografias não sejam documentais, não significa que não haja um olhar sobre o real, mas agora a forma, o tempo e o tema são escolhidos pelos fotógrafos.
A produção fotográfica atual é enorme. Como você a acompanha? Festivais, Instagram, museus, galerias? Qual é sua metodologia como historiador da fotografia contemporânea?
MP: Concordo inteiramente, há uma oferta quase infinita de fotografia. Sobretudo nas redes sociais, que permitem difundir a criação fotográfica, seja ela profissional, amadora, jovem, sênior, de todos os estilos possíveis. Cada indivíduo se tornou seu próprio museu ou galeria. Como conseguir acompanhar a atualidade, nesse universo onde há cada vez mais livros, exposições, museus e festivais?
Eu diria que há duas atitudes possíveis. A primeira é a atitude do jornalista, que consiste em ir ver o máximo de coisas possíveis e tentar sentir quais são as tendências. Já o historiador contemporâneo, que sempre precisa de um pouco de afastamento, vai levar um pouco mais de tempo e funcionar ao mesmo tempo como “antena” para tentar sentir a produção e utilizar uma metodologia de ciências humanas e sociais para não se deter aos sintomas. Podemos ser curiosos, mas, uma hora, o trabalho de historiador, mesmo sobre o momento presente, será o de tentar propor uma grade de leitura e um relato.
Há uma diferença entre a “atualidade” do jornalista e a “história do momento presente” do historiador. Quando se fala de “história do presente”, trata-se de tentar produzir um relato sobre o que acontece em 10, 15 ou 20 anos. É muito rápido. Estou terminando de escrever um livro, Contreculture dans la photographie (editora Textuel), sobre práticas fotográficas alternativas que duram 25 anos. Todos os artistas estão vivos, são muito ativos, muito atuais, mas já fizeram história. O trabalho consiste em buscar os elementos que se estruturam em torno das práticas e das ideias para entender a fotografia contemporânea.
Vou dar um exemplo. Há quase 25 anos, vemos fotógrafos que trabalham sem aparelho – “without camera” –, é uma tendência que surgiu no início do digital. Vemos artistas que não querem mais utilizar a tecnologia moderna e preferem trabalhar no fotograma, na impressão, nas experiências químicas. Nesse período, muitos se definem como fotógrafos “sem câmera”. Não é simplesmente uma moda ou uma prática estranha, é uma posição artística de que a fotografia se faz no laboratório: é um trabalho de química, muito mais do que de captura ou do olhar.
É muito interessante para um historiador do presente perceber que há fotógrafos que fazem fotografia e não, necessariamente, imagens. Eles fazem experiências, fazem objetos fotográficos, mas não focam, observam, captam e registram. Eles têm uma abordagem da fotografia muito mais ligada à sua materialidade; sobretudo à questão do papel e do suporte.
Observar a fotografia contemporânea pede duas coisas: manter a curiosidade, mas, também, eventualmente, começar a trabalhar e a ver as coisas da perspectiva do tempo. Se quisermos falar apenas do muito atual, nos tornamos todos críticos e falamos mais da moda ou da tendência. O trabalho do historiador consiste em relatar o passado, contar algo, e, para contar alguma coisa, não se pode simplesmente identificar os sintomas.
Num momento em que os estudos pós-coloniais estão em pleno crescimento, o filósofo camaronês Achille Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra (N-1, 2018), defende a conduta de reparação por parte dos países colonizadores. Ele também fala de um “futuro negro do mundo”. No Festival de Fotografia de Arles de 2021, vi muitas conversas e exposições sobre essa questão. Como você vê esse desafio na fotografia contemporânea? E como, sendo europeu, enxerga o reposicionamento dos países emergentes e daqueles que ainda estão à margem, como o Brasil e os países africanos? Como o você vê a produção artística vinda desses lugares?
MP: Claro que a fotografia é muito afetada pela questão pós-colonial e racial. Percebemos que muitos fotógrafos, de diversas origens, se confrontam com a criação de estereótipos. Há fotógrafos que procuram arquivos fotográficos, trabalham com eles e os valorizam, não simplesmente para apontar que são arquivos interessantes, mas para trabalhá-los plasticamente. Há fotógrafos que trabalham com o fenômeno da reparação, ligado às guerras coloniais, a traumas, e vão buscar na fotografia tanto um testemunho da história como uma forma de fazer ressurgir os traumatismos, para criticar, esclarecer, dar sentido a fenômenos, em geral, invisíveis.
Por exemplo, o fotógrafo sul-africano Santu Mofokeng (1956-2020) trabalhou nos arquivos fotográficos do século 19 e do início do século 20 que mostram como as famílias de negros africanos foram fotografadas com roupas ocidentais em encenações de estúdio exatamente no modelo dos brancos. O artista arquivou suas fotografias e as associou a textos que demonstram como o colonizador usou a fotografia para fazer o Outro adotar os códigos da dominação.
Há muitos exemplos como esse, de artistas contemporâneos que mostram a responsabilidade da fotografia na construção do estereótipo da dominação: pelo orientalismo, pelo exotismo, por todas essas formas de arte que estigmatizaram populações.
Uma questão muito interessante é a utilização, por alguns fotógrafos contemporâneos, de procedimentos antigos, como o colódio úmido, que contribuiu para construir estereótipos de raça. A técnica do colódio, que foi a mais importante no século 19, não tem grande sensibilidade em todo o espectro de luz, sobretudo no azul. Isso se traduz em um escurecimento de tudo o que não é branco: as peles dos indígenas, dos asiáticos e dos negros e mestiços se tornam muito escuras, bem mais do que na realidade. Assim, os fotógrafos contemporâneos mostram que as técnicas fotográficas fabricaram cores de pele. E, de certa forma, construímos um imaginário de tipos físicos que não existem. Artistas como Kaly Spitzer ou Wil Wilson (Diné) trabalham nesse sentido.
Também há artistas fotógrafos contemporâneos que questionam a reportagem fotográfica, analisando como ela foi a principal mídia para construir a comunidade, como ela fabricou estereótipos. Em virtude das suas responsabilidades, a fotografia se interessa pela reparação, ela pode contar a história de outra forma. Alguns artistas fotógrafos vietnamitas, como Dinh Q. Lê, reuniram estoques de fotografias de antes da guerra do Vietnã e do genocídio do Camboja e fabricaram instalações em que uniram fotografias para reconstituir um povo desaparecido.
Hoje, há muitas propostas artísticas onde essa expressão da reparação é colocada em primeiro plano. Além disso, há uma questão menos artística e mais cultural ou política: como os países europeus se situam diante dessa questão da reparação? Atualmente, na Europa, há um desejo de questionar essa história de dominação, essa história de criação de estereótipos, seja mostrando coleções e, de certa forma, explicando como os Estados produziram imaginários da colonização, seja valorizando artistas esquecidos por pertencerem a categorias de populações dominadas. A fotografia contemporânea trata muito dessa questão da reparação.
Isso acontece a partir de quando?
MP: É muito recente. Há 10 anos, por exemplo, vimos surgir na França o museu Quai Branly, dedicado a todas as culturas de fora da Europa, em que a fotografia contemporânea é muito presente no que diz respeito a essa questão pós-colonial.
O termo “ficção documental” é cada vez mais usado para se referir a certa produção contemporânea. Esse é inclusive o tema do Festival da Fotografia de Carcassonne. Parece haver uma absorção superficial do tema, provocando confusão entre criatividade, imaginação, realidade, real, representação etc. O caráter construtivista faz parte da natureza da fotografia, mas seu efeito de realidade – usando um termo de Barthes – conduz a se ver nisso uma naturalização da vida. Como você vê essa interação entre ficção e documentário?
MP: O termo “ficção documental” é um oxímoro, isto é, uma contradição entre dois termos que funda um terceiro: ficção-documental. É uma expressão que mostra a ambivalência que se espera da fotografia hoje. Gostaríamos que uma fotografia falasse do mundo, mas, ao mesmo tempo, gostaríamos que ela fosse uma criação do mundo. Essa expressão caracteriza bem a sensibilidade da nossa época, que exige coisas diferentes da fotografia: tanto seu caráter objetivo quanto seu caráter subjetivo. No entanto, isso caracteriza muito bem uma geração de fotógrafos hoje que documenta situações sociais e ecológicas, mas que, para transmitir uma mensagem, precisa criar uma narrativa. É aí que a fotografia é interessante: ela nem sempre precisa da objetividade para ser documental. Contar uma história em fotografia pode ser mais justo do que simplesmente fazer uma constatação.
Sempre voltamos a essa ideia de que a fotografia deve ser pensada junto com um texto, e que, se deixamos uma fotografia sozinha, ela não diz nada, é muda. A ficção-documental é um termo que mostra muito bem a expectativa contemporânea sobre a fotografia. São “construções” documentais, mais do que “ficções”, pois “ficção” remete à evasão, ao irreal, enquanto “construção documental” indica que algo foi fabricado. Poderíamos até falar de “imaginação documental”.
No livro 50 Ans de Photographie Française (50 anos da fotografia francesa), você apresentou uma produção vertiginosa, nos campos mais variados, e se colocou a questão: há uma fotografia francesa? A resposta engloba a questão: qual é a cultura francesa atual? Você não chega a uma definição, mas engloba todas as suas manifestações. Ao mesmo tempo, as produções artísticas do mundo inteiro circulam intensamente nas redes sociais. Você acha que se pode falar de uma fotografia europeia, africana ou americana hoje?
MP: Será que se pode definir uma fotografia de acordo com a nacionalidade, ou, mais amplamente, sua origem geográfica? Por trás dessa questão, há a noção muito importante de globalidade, de globalização. Será que há tipos de produção artísticas específicas a países ou regiões do mundo? Respondo a isso dizendo sim e não.
Primeiro, não: não se pode abordar a arte em função da origem, pois a arte que existe há muito tempo é internacionalizada e, há pelo menos 50 anos, globalizada. Mas o que é essa globalização? É, sobretudo, a cultura artística, são as exposições, o gosto e o mercado.
Mas também respondo que sim, há especificidades regionais. Os artistas de sucesso internacional são artistas que falam de suas origens. Em geral, estão muito inseridos na história de suas comunidades ou trabalham com algum tema sobre uma região: o vilarejo, a família… Obras de sucesso mundial, em geral, abordam a singularidade da experiência do artista – até mesmo sua intimidade – e questões universais. E, se partirmos do princípio de que uma obra de arte importante é uma obra de arte que abrange o singular e o universal, só podemos concluir que há particularidades dos artistas de tal país ou de tal cultura. Isso não significa que essas especificidades limitem a cultura. Mas há países que conseguem fazer produções regionais irradiarem, pois há construções econômicas e sociais a serviço dos artistas. Uma fotografia alemã, uma fotografia brasileira, uma fotografia turca ou uma fotografia sul-africana será reconhecida se também construirmos esse reconhecimento no plano cultural e econômico.
Quando escrevi esse livro sobre a fotografia francesa, fiz um trabalho de historiador, mas também busquei distinguir uma fotografia que não é muito representada, sobre a qual não há uma visão global. A grande responsabilidade dos críticos, dos historiadores, dos marchands, dos curadores de museus é, num dado momento, efetuar um trabalho de representação. Quer dizer: montar exposições de grupo, valorizar certos fotógrafos, escrever histórias ou, ainda, analisar estilos ou atitudes. Se esse trabalho não é feito, não há possibilidade de haver uma representação da fotografia francesa ou da fotografia brasileira.
Então, é uma construção longa, complicada, mas que funciona. A França, que não fez esse trabalho, se vê hoje em grande dificuldade, pois, apesar de haver museus, festivais, uma feira internacional (Paris Photo), editores e etc, não se pode dizer que há uma fotografia francesa. Ela existe, mas é preciso representá-la.
E quanto à produção fotográfica na América Latina e no Brasil?
MP: É uma questão difícil, pois não sou especialista dessas regiões. É uma pergunta a fazer a Christine Barthe, que é a responsável pela unidade de patrimônio fotográfico do museu Quai Branly, viaja pelo mundo todo e conhece bem a América do Sul. O que eu sei é que na América Latina há uma cultura fotográfica muito profunda, e que há, através das coleções, dos museus, dos festivais, uma verdadeira cultura fotográfica. Espero que ela seja cada vez mais exibida na Europa.
Acho que há um desejo de mostrar a fotografia brasileira na França. Eu orientei a tese de Jessica Blanc sobre a história da agência F4, que me fez descobrir toda uma geração de fotógrafos politicamente engajados. Tomei consciência da riqueza da fotografia de agência nos anos anteriores e logo após a ditadura, nos anos 1980. Graças a essa pesquisa, eu percebi que há no Brasil uma história da fotografia informativa e de uma fotografia militante, engajada, extremamente importantes. E, claro, há fotógrafos brasileiros contemporâneos importantes, o Brasil é um país imenso, com estados e regiões onde há atividades culturais muito diferentes.
O que você pensa do uso do retrato e do autorretrato na fotografia contemporânea?
Michel: Será que o retrato pode ser um gênero fotográfico hoje? Tendo a pensar que sim. Durante muito tempo, o retrato era feito pelo pintor, pelo menos no Ocidente. Hoje, ainda se vai à Índia para fazer um retrato pintado, é uma tradição, mas numa cultura ocidental o retrato se tornou uma questão fotográfica. Não acho que o retrato seja discutido na pintura ou na escultura atualmente. Ele se tornou uma questão fotográfica no século 20. A questão da semelhança, da função social do retrato, está ao mesmo tempo na fotografia de família, na fotografia administrativa e política, em todos os campos. Será que esse gênero clássico na história da arte não se tornou puramente fotográfico? É uma questão que acho interessante.
Você pode falar sobre o seu projeto de um instituto de fotografia?
MP: O Colégio Internacional de Fotografia é um projeto que consiste em associar o know-how fotográfico – mais precisamente, o serviço de laboratório, a revelação fotográfica, que é muito frágil do ponto de vista econômico – e a criação experimental contemporânea. A ideia é associar, por exemplo, o design, uma atividade de arte tradicional e uma experimentação artística, como se faz em outros campos.
Percebemos que os artistas contemporâneos, desde a cultura do digital, não conhecem mais a tradição analógica. Eles exigem dos artesãos soluções técnicas na realização de seus projetos fotográficos. Queremos criar um lugar de diálogo entre a técnica fotográfica e a criação contemporânea, um conservatório onde se transmite esse patrimônio vivo.
Isso significa entender que uma imagem é fabricada. O Colégio vai conduzir essa ideia da conservação e da transmissão do know-how fotográfico numa época em que o digital se torna o novo padrão da imagem, que é desmaterializada. O conservatório é um projeto sobre a materialidade da fotografia.
Essa instituição está surgindo na cidade de [Louis] Daguerre, o inventor da fotografia. O prefeito de Bry-sur-Marne nos propôs criá-la dentro da casa de Daguerre, num grande prédio que estamos restaurando.
O Colégio Internacional de Fotografia abre em 2024, mas já estamos realizando ações de transmissão e de educação nas escolas. Também criamos um prêmio de revelação fotográfica para recompensar o trabalho do revelador e apoiá-lo, e criamos bolsas de pesquisa para fotógrafos que trabalham com revelação e com novas experimentações.
Como você vê o futuro da fotografia?
MP: Acho que o futuro da fotografia é entusiasmante, pois a fotografia não é mais apenas um meio de produzir imagens, mas um conjunto de conhecimentos, de experimentações e de criação, e, também, um meio de se situar dentro da cultura das imagens. A fotografia, que todo mundo dizia ter acabado com a revolução digital e o desaparecimento da cultura da imagem analógica, renasce a partir dessa mesma cultura analógica. É uma espécie de resistência da matéria diante da comunicação pela imagem! Pode ser que o futuro da fotografia seja a aventura da rematerialização das imagens. ///
Michel Poivert (1965) é professor de História da Arte na Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne, onde fundou a cátedra de História da Fotografia. Suas publicações incluem La photographie contemporaine (Flammarion, 2018), 50 ans de photographie française de 1970 à nos jours (Textuel, 2019) e Contreculture dans la photographie contemporaine (Textuel, 2022), entre outros.
Teresa Bastos é professora sssociada da ECO/UFRJ onde atua na graduação e nos programas de pós-graduação em Artes da Cena (ECO/UFRJ) e Artes Visuais (EBA/UFRJ). Doutora em Letras / Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio, 2007), com estágio de doutorado em fotografia na ECHESS, de Paris. Pós-doutorado em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ (2009 – 2011) e no departamento de Histoire de l’Art/Photographie da Université Paris I, Panthéon Sorbonne (2021).