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De Bolsomito a Bolsomartir

Giselle Beiguelman Publicado em: 20 de julho de 2021

Do alto de seus mais baixos índices de popularidade, Bolsonaro levantou sua audiência nas redes com uma foto de sua mais recente internação hospitalar. Retrato a um só tempo escatológico e messiânico, revelava o corpo seminu do presidente coberto por eletrodos e o seu rosto, de olhos fechados e sorrindo placidamente, apesar de atravessado por uma sonda nasográstrica.

Incongruências à parte, a foto repete a cartilha bolsonarista de produção de imagens que apelam a uma versão profissional da estética amadora (sic), com o objetivo de forjar espontaneidade e verdade pela sua suposta aderência ao real.

Iluminação descuidada, câmera mal posicionada, barriga em primeiro plano são seus elementos contextuais, arrematados pelo cordão do pijama ligeiramente desalinhado. Abordei esse tema em outra coluna sobre Bolsonaro e chamo agora a atenção para o diferencial dessa foto: a figuração edulcorada do mártir.

Recurso simbólico inédito na construção imagética de Jair Messias Bolsonaro, contrapõe-se à do valentão que disparava tiros imaginários do leito hospitalar e que cruza cidades em motociatas audazes e furiosas. De facadas ao coronavírus, toda a retórica visual do bolsonarismo até então se esmerava em afirmar que nada abalaria esse mix de Rambo tropical com Easy Rider catatônico.

A foto, inegavelmente perturbadora, que chegou a quase 2 milhões de curtidas no Instagram, era coroada pela presença do braço de um padre, pousado sobre o seu ombro. A pose e esse “adereço” cumpriam a função simbólica de colocar o presidente no limite tênue entre a vida e a morte, reforçando a iconografia que cerca o transe do mártir.

Em resposta ao furacão de retuítes e compartilhamentos desse seu novo perfil imaculado, circularam na imprensa e nas redes as associações entre a foto de sua internação mais recente e o célebre quadro de Mantegna (Lamentação sobre o Cristo morto, 1478). A identidade compositiva é de fato notória, mas sabemos que é bem difícil supor que alguém na equipe do presidente tenha feito essa relação.

Mais do que a presença do quadro de Mantegna, a semelhança indica a naturalização do imaginário do mártir na cultura visual. E é esse aspecto que intriga. Como esse imaginário se desdobrou ao longo dos séculos e ao que responde quando sai do âmbito da pintura religiosa e invade a política?

Foi a fotografia médica do século 19 a primeira mídia a potencializar uma nova modalidade de apreensão do mártir. Tendo como referência a arte religiosa cristã, combinava a pretensa objetividade da câmera com uma série de recursos de composição dos retratos, como pose, expressão facial e manipulações de luz e enquadramento, conforme se pode atestar nas desconcertantes fotos do arquivo do St. Bartholomews Hospital, o mais antigo da Inglaterra, analisadas pela pesquisadora Treena Warren. Fundado no século 11, seu acervo pertence hoje ao Barts Pathology Museum de Londres.

Contrapondo-se à estética fragmentária dos desenhos de anatomia, que focam sempre o fragmento, sem o contexto do corpo, escreve Warren, essas primeiras fotografias médicas, produzidas entre 1860 e 1910, documentavam não apenas “diferentes tipos de aflições, mas também uma forma de considerar a natureza do sofrimento, oferecendo reflexões sobre a mortalidade.”

Importante destacar que se no âmbito das estéticas do cristianismo a imagem do mártir converte o corpo na forma física de uma causa e figura a sua disponibilidade para a morte, consolidando os princípios de suas crenças, no contexto científico ganha outra abordagem. Aí a imagem do mártir, ainda que mantendo a prerrogativa de enunciar o ideal de como sofrer com dignidade, incorpora “os valores morais burgueses convencionais da época, como a nobreza do auto-sacrifício, a supremacia do espírito sobre a matéria e a deferência a uma autoridade superior.”

Esse arcabouço vitoriano, como mostra um estudo feito na Universidade Northwestern (Evanston, Illinois), é revisitado e atualizado de várias formas na cultura contemporânea, confundindo-se com um arquétipo social de um certo empreendedorismo, que valoriza a agência individual do sujeito em luta contra a opressão institucional, ainda que às custas do seu sofrimento físico.

“É a disponibilidade para morrer, ao invés de abandonar as crenças, o que gera as imagens poderosas”, dizem os autores do referido estudo. São elas afinal as que terão competência para transformar o corpo martirizado “em símbolo de reputação concreto para o sofrimento enfrentado por seus apoiadores.”

Nessa perspectiva, o mártir se torna uma figura compensatória do herói derrotado. Algo que faz todo o sentido quando se pensa na tão discutida foto de Bolsonaro na maca, levando em conta o momento atual do país. Ela deixa claro que três anos e 540 mil brasileiros mortos depois da facada que quase custou sua vida, a imagem do impávido colosso não cola mais. Nem entre seus eleitores. Por isso, a saída, pela extrema-direita, demanda outros atributos que o imaginário do martírio do soberano parece atender. ///

 

Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Memória da amnésia: políticas do esquecimento (2019), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).

 

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