Conversas na quarentena – Naiara Jinknss e Ryane Leão – parte 4
Publicado em: 20 de julho de 2020
Nay,
Que troca grandiosa você proporciona, seus olhares caminham entre todos os elementos. Quando vejo suas fotos o peito venta, os pés pisam firmes no chão de terra a fim de recuperar raízes, a alma aquece e a vontade é desaguar e seguir fluindo. Antes de escrever essa última carta, eu quero te agradecer pela sua existência, sua continuidade, sua arte, seu ser e estar no mundo. Que a leveza te tope facilmente e faça casa em suas mãos. Dessa vez, as duas primeiras fotos me levaram até as nossas marcas e como nossas linhas são estantes cheias de livros. Deu vontade de ler vários deles e parar pra escutar o que ela tem pra contar. Quais são as literaturas que estão por trás das olheiras? As linhas do rosto formam um labirinto bonito que finda em qual estação? As manchas desenham constelações que apontam segredos de uma sabedoria que somente o passar dos anos pode trazer, né? Somos passagem, mas também somos ponte, somos círculo, somos agora, somos conexão. E por falar em conexão, hoje meu avô faria 93 anos se estivesse ainda no Aiyê (terra). A foto das dentaduras me remeteu muito aos meus mais velhos e ao cheiro do quarto e do colo deles. Ontem arrumando a casa guardei um cachecol dele no guarda-roupa do quarto, mas primeiro abracei bem forte e por um segundo tive a impressão de que nunca mais teria frio. Veja bem, as linhas abaixo dos meus olhos têm bibliotecas inteiras ainda em construção. Também ontem, falando com a minha avó no telefone, senti muita saudade da sala da casa dela e de quando a gente se reunia aos domingos com a nossa família que é pequena, barulhenta e lotada de afeto. Meu refúgio são as memórias que agora conto em voz alta porque sei que as palavras ficam pra sempre no universo. As duas últimas fotos me relembraram o quintal da casa da minha mãe, a marca de sol das tiras do chinelo no pé, o pé de cajamanga, as flores amarelas que faziam um mar dourado no chão na primavera, os cachorros, a Nossa Senhora que minha mãe pendurou na porta na parte de dentro desde sempre. Hoje suas fotos me transportaram diretamente pra nostalgia, pra saudade e para a paciência que espera que as coisas se abrandem logo para que eu possa engolir esses quilômetros de distância. É como se eu tivesse colocado aquela concha grande nos ouvidos e escutado o mar. Ou colocado uma pedra porosa e escutado o rio. Ouvir a natureza é o que tem me mantido de pé. Mesmo de longe, sei que posso confiar nas águas. As respostas só podem vir do que é profundo, sabe?
Abraços com afeto,
Ryane Leão
Nay,
Liguei de imediato a primeira foto com um poema da Rupi Kaur que diz que “tudo chega em duplas. Vida e morte. Sal e açucar. Dor e prazer. Eu e você”. Arrisco dizer que muitas vezes há bem mais do que a dicotomia, por isso estou sempre atenta aos enraizamentos. Também sinto que o que finda tem sede de recomeço, é essa a ordem (ou desordem) natural das coisas. O retorno é inevitável. Luz e sombra abrigam contradições e sopram que eu já sei ser sol no escuro. Somente dois extremos não cabem em mim, por isso quando vejo sua foto reparo na parede, na textura, na geometria, no horário, nos vazamentos que permitem que o brilho entre, na forma que faz coração, no escuro, no possível portão, nas cores, no bairro e em todo o imaginário que habita vivências. Preocupações circundam instantes e nossa pele, nossas expressões, nosso descanso, nossa reza: tudo guarda palavra. O silêncio é voz e os cômodos de nossas casas refletem memórias. A sala daqui tem contado a história de duas mulheres negras que se cuidam com afeto ancestral e acreditam no amor como força motriz para o todo. A cozinha narra culinárias antigas, o quarto narra noites mais longas e sonhos abstratos, a janela tem arruda e café quente, as cortinas permanecem abertas, o espelho tem clamado por visitas mais frequentes, o sofá faz contação de filmes diversos e produções artísticas, as cadeiras sentem saudade, a varanda tem vasos e roupas que caminham pelos mesmos pisos e a luz do banheiro queimou – mas só por fora. Na foto da imagem da santa percebi os detalhes atrás, olhei o altar aqui do quarto com os orixás e concluí que precisamos nos ver como sagrados. Me enxergo sagrada, te vejo sagrada. Buscar no passado a receita para o presente. Fiquei com vontade de ir pra Cuiabá revirar álbuns, abraçar minha mãe e rever meus amigos numa terra quente. Ou ir no terreiro e pairar as folhas de Iroko na cabeça. Os sinais são evidentes e como diz Elza Soares “O fim do mundo é todo dia, baby”. Vinte e quatro horas é bastante tempo se houver disposição e coragem para restaurar.
Abraços cheios de luz,
Ryane Leão
Nay,
Dia desses alguém me disse que eu devia ter orgulho das minhas cicatrizes enquanto eu sigo lutando para mantê-las fechadas. Só eu sei o que passei pra chegar até aqui e por isso não permito que o romântico faça casa na dor. Nossos corpos carregam nomes e histórias que nem sempre estão em alto relevo – pele é livro aberto. A primeira foto me lembrou de quando eu sugeri que minha mãe fizesse uma tatuagem comigo e ela respondeu que o símbolo do infinito era o único desenho que ela faria. Ela comentou que ele nos abarcava enquanto mãe e filha. Temos mania de querer abraçar o eterno, ainda que não saibamos no que ele consiste e que gosto ele tem. Mergulhei nas fotos tentando trazer notícias de um novo mundo. Sigo com meus olhos em rugas que ainda não nasceram, buscando a fé da cabeça aos poros. Já não sou mais a mesma que te escreveu da outra vez, mas ainda carrego muitos traços dela. Suas novas fotografias me remeteram às minhas novas versões. Tenho repetido algumas vezes uma filosofia yorubá que diz “mo wà” e significa “eu existo”. Quando essas palavras dançam na minha boca, sinto que não derrapo. Ainda assim, sigo acendendo velas pra iluminar escuridões que não são minhas. Sigo escrevendo pra fazer o mesmo. As pessoas têm ouvido mais a arte, de repente notaram que as poucas flores que nasceram nesses 70 dias vieram dela. Suas lentes percorrem continuidades ininterruptas. Apesar de tudo que tem acontecido dentro do que tange à quarentena, sabemos que o risco alcança mais quem não pode se permitir parar. Quem sente o frio cortando os pés. Quem atravessa águas e quarteirões. Quem enche e limpa as prateleiras. Quem dorme pra esquecer. Essa semana combinei com a minha companheira de comprarmos cobertores, lanches e água pra distribuir nas ruas dessa cidade friamente instável. Sabemos que ainda não podemos derrubar ou mudar estruturas por definitivo, mas aqui entram as fotos que você focou na cabeça (ori): se nossos sonhos se voltarem somente ao singular, então não entendemos nada dessa passagem. Que a gente se salve e presenteie outras pessoas com fôlegos. Somos tanto, espero que nunca esqueçamos disso. E coisas gigantescas (dentro e fora) geralmente iniciam em faíscas. Ainda há muito pra existir – coletivamente.
Abraços quentinhos de dendê
Ryane Leão
Nay,
Fiquei pensando sobre a espera, os detalhes, as brechas, os abismos, a saudade, as possibilidades e aquilo que fica. Acredito que ninguém simpatize muito com o tempo, mas é justamente aí a nossa falha. Insistimos em nos afastar dele, e assim deixamos de criar laços com os nossos anos e desaprendemos sobre os instantes. Tempo é fora do relógio, tempo é espaço de buscar as sutilezas, tempo é tentar estreitar confortos e enxergar nas linhas de nossos corpos os saberes mais antigos. Tempo é emanar riso frouxo, se enxergar na outra pessoa, cultivar trocas sinceras. Tempo é a madrugada em que ajoelhamos na cozinha de casa, fazendo preces que caminham de nós para o que nos contorna. Temos esperado muito. Do mundo, dos cantos, dos espaços, das pessoas e de nós mesmas. O que virá depois se não refizermos nossas retinas em mudanças que abarcam e acolhem? Memória de futuro é alimento para esses dias de vivências múltiplas. Sua sequência de fotos me fez refletir sobre onde mora nossa fé e como nossos patuás dizem tanto, apesar de compreender que Deus dança dentro de nós constantemente. Também penso em quais máscaras a gente vinha carregando e o quanto olhar nos olhos agora parece inevitável. Eu sou candomblecista, e Omulu me faz crer na escuta do silêncio e no que é ser e estar. Ele tem me soprado segredos que me recordam a sobreposição da sua última foto. Ainda dá tempo de olhar ou sentir o céu.
E reza braba é construir casas em frases que me dizem que não pode ser tarde demais. Me abrigo nos ventos e tenho tentado ouvi-lo quando ele bate nas folhas das árvores. Fecho os olhos, e o som da cachoeira me aponta que o cuidado ancestral ainda pulsa nos nossos peitos abertos. Sabemos que nem toda dor pode ser transformada, nem todo mundo pode ficar em casa, nem toda mão que se abre pode fazer morada nas escolhas, nem toda cura é ligeira. Por isso eu tenho escrito cartas para o futuro, como as que vieram antes de mim fizeram para que eu pudesse erguer minha voz no agora.
Que os orixás possam nos mostrar caminhos abertos e novos significados.
Abraços leves
Ryane Leão
Convidamos a fotógrafa Naiara Jinknss e a escritora Ryane Leão para uma troca de e-mails durante este período de quarentena. Naiara envia fotografias do seu cotidiano e Ryane responde com um texto, uma conversa que seguirá e será publicada no site da ZUM. Esta é a primeira troca entre as duas. Confira também a correspondência entre o fotógrafo Mauro Restiffe e a escritora Carola Saavedra.
Naiara Jinknss é educadora social e fotógrafa humanista, nascida e criada em Ananindeua, no Pará. Trabalha com fotografia há 11 anos e nos últimos tempos compreendeu a importância da representatividade e o cuidado que é preciso ter ao documentar uma história. Acredita que através da imagem é possível fazer pequenas reparações históricas, dando assim dignidade a pessoas e lugares que já foram reduzidos a estereótipos.
Ryane Leão é poeta e professora cuiabana que vive em São Paulo. Publica seus escritos na página Onde jazz meu coração e recita seus poemas nos saraus e slams do Brasil. Seu trabalho é pautado na resistência das mulheres e focado na luta e no fortalecimento pela arte e pela educação. Autora de Tudo nela brilha e queima (Editora Planeta, 2017) e participante da antologia Querem nos calar (Editora Planeta), que reuniu quinze poetas mulheres de todas as regiões do Brasil. Em 2019 lançou seu segundo livro, Jamais peço desculpas por me derramar. É fundadora da Odara – English School for Black Girls, escola de inglês afrocentrado para mulheres negras que hoje conta com mais de 300 alunas. Ryane é do axé, filha de Oyá com Ogum e só sabe existir sendo ventania por aí.
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Leia também no #IMSquarentena uma seleção de ensaios do acervo das revistas ZUM e serrote, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia.
Tags: Covid19, IMS Quarentena, ZUM Quarentena