Virginia de Medeiros e a alma de bronze das mulheres que lutam por moradia em SP
Publicado em: 8 de outubro de 2019As videoinstalações e fotografias do projeto Alma de bronze, da baiana Virginia de Medeiros, foram criadas a partir do convívio da artista com os movimentos de luta por moradia na cidade de São Paulo, mais especificamente com as mulheres das ocupações Cambridge e Nove de Julho. Primeiro trabalho do projeto, a videoinstalação Quem não luta tá morto é composta por depoimentos de 12 militantes do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) e nasceu de “uma pergunta-chave [que] conduziu as entrevistas: você se considera uma guerrilheira? A pergunta que inicia o diálogo tinha a intenção de abrir o campo de subjetividade das colaboradoras que, contando suas histórias, impelem-nos a refletir sobre a insurgência de uma força coletiva liderada pela ascendência do feminino”, comenta Medeiros.
Desde 2016, Alma de bronze vem se desdobrando em novos trabalhos, como a série fotográfica Guerrilheiras e a videoinstalação Clamor, ambos criados a partir da vivência da artista com as militantes do MSTC. Em entrevista, Virginia de Medeiros fala da sua relação com as mulheres do movimento e das suas obras criadas nesse contexto.
Como surgiu a ideia para o projeto Alma de bronze? E como foram acontecendo os vários desdobramentos a partir desse conceito inicial?
Virginia de Medeiros: O projeto Alma de bronze teve início em outubro de 2016, durante o Programa de Residência Artística Cambridge, que aconteceu dentro da Ocupação Cambridge do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro). O programa de residência deu ênfase a práticas colaborativas, desenvolvidas em diálogo com os moradores, cuja pesquisa deveria se relacionar com assuntos ligados ao cotidiano da ocupação, sua história e seus modos de inscrição e atuação nas dinâmicas da cidade. Desde o começo dos anos 2000 venho pensando no gesto artístico como uma maneira de habitar o mundo, de encontrar novas formas de relacionamento e de convívio. Em novembro de 2016 mudei-me para o 15o andar da Ocupação Cambridge, reformei o espaço que estava disponível para os residentes e pude conviver de perto com as dinâmicas internas da Ocupação. A residência de 3 meses prolongou-se por 2 anos. De 2016 a 2018 convivi no território de luta do MSTC, colaborando muitas vezes em contextos que extrapolaram o campo artístico. Conheci o movimento de dentro, pude ver que o MSTC tem na sua linha de frente mulheres trabalhadoras de baixa renda, que dividem suas vidas privadas – afazeres do lar, filhos e emprego – com a luta pela habitação saúde, educação e cultura. Através da vivência, as ideias foram surgindo espontaneamente. A primeira que surgiu foi Quem não luta tá morto, uma videoinstalação composta por depoimentos de 12 militantes do MSTC. Uma pergunta-chave conduziu as entrevistas: você se considera uma guerrilheira? A pergunta que inicia o diálogo tinha a intenção de abrir o campo de subjetividade das colaboradoras que, contando suas histórias, impelem-nos a refletir sobre a insurgência de uma força coletiva liderada pela ascendência do feminino.
O início da minha residência coincidiu com a semana do “Outubro Vermelho”, ação organizada pelo FLM (Frente de Luta por Moradia) e que busca dar visibilidade ao problema de moradia para trabalhadores de baixa renda da cidade de São Paulo. Acompanhei, filmando, a Ocupação do antigo prédio do Instituto do Seguro Social (INSS), na Av. Nove de Julho. Neste contexto, pela primeira vez, a minha a câmera funcionou como uma espécie de escudo, inibindo possíveis agressões de policiais contra os militantes. O prédio já havia sido ocupado pelo FLM em 1997 e, nesse mesmo ano, dentro da própria ocupação, a bandeira do MSTC nasceu tendo como líder Carmen Silva Ferreira. O prédio foi esvaziado na gestão de Marta [Suplicy], em 2003, com a promessa de se tornar habitação popular. O INSS tem um histórico marcado por inúmeras ocupações e reintegrações de posse, um prédio de valor simbólico para a luta por moradia e pelo direito à cidade. Esta experiência deu origem a Alma de bronze, uma videoprojeção documental de 33 minutos de duração. O vídeo foca na força do feminino através da liderança da Carmen e na ocupação do prédio Nove de Julho – os esforços coletivos para reger um espaço recém-ocupado e como, neste processo, se estabelecem e fortalecem relações de solidariedade, cooperação e apoio mútuo. Perguntei para a líder do movimento: “Carmen, como a luta despertou em você?” Ela respondeu: “Como a poesia desperta no poeta, a minha alma foi tomada de bronze.” Assim surgiu o título do projeto.
Além dos trabalhos em audiovisual, foi realizada também uma série fotográfica intitulada Guerrilheiras, composta por 12 fotografias. Contei com o apoio do fotógrafo Marcos Cimardi na execução das imagens. O ensaio foi propositivo e conduzido pelas mulheres retratadas. Um nova pergunta foi lançada, também com o intuito de acessar o campo de imaginação e projeção de uma imagem de força que as designem: Toda guerreira tem uma ferramenta de luta, qual a sua? As mulheres retratadas entraram em ação e construíram seus retratos para câmera: do passivo de serem retratadas passam para o ativo se fazerem retratar. Guerrilheira taxista, costureira, porteira posaram ao lado da sua ferramenta de luta, quase sempre seu saber, seu trabalho, seu ofício ou com objetos que simbolizavam resistência e memória.
O movimento de luta por moradia é vivo, realizar um trabalho de arte engajado é tentar responder ao tempo presente. Este é o desafio do novo desdobramento do Alma de bronze – a videoinstalação Clamor, 2019. Clamor propõe-se como espaço para debates, com programação definida de acordo com as demandas do MSTC. Somente durante essas conversas, os tambores cederão o volume em favor das vozes presentes neste espaço circular. Clamor é o ato de comunicar um forte desejo, uma necessidade imprescindível. Até o momento tivemos três ativações: “Ato”, “A Terra prometida”, “Atravessado deserto e bem-aventuranças”.
Em Guerrilheiras vemos retratos fotográficos de mulheres da Ocupação Cambridge. Já em Clamor, você optou por exibir os retratos dessas mulheres em uma videoinstalação. O que levou você a experimentar essa mudança de suporte no seu trabalho?
VM: Com o trabalho finalizado, percebi que havia uma imagem-síntese que traduzia o Alma de bronze: o retrato em vídeo das militantes encarado, em silêncio, a câmera ao som dos tambores da Beth Beli e da Jackie Cunha. Beth é mestra de tambor e fundadora do “Ilu Obá de Min: mãos femininas que tocam tambores”, grupo que pesquisa as culturas de matrizes africana e afro-brasileiras e trabalha o empoderamento das mulheres através do toque de tambor. Estas imagens fazem parte da videoinstalação Quem não luta tá morto, compõe os depoimentos. A exposição no Tomie Ohtake me possibilitou experimentar esta montagem. Gosto muito do resultado!
Nos seus projetos, como é constituído o “lugar de encontro” entre a fotógrafa/artista e as pessoas retratadas?
VM: É no espaço da vulnerabilidade que o lugar do encontro é construído. Estar vulnerável é estar, antes de tudo, susceptível a ser tocado. É um exercício de tirar qualquer armadura de proteção, de correr riscos, de fazer coisas sem garantia e de abrir-me para a experiência. Acredito que este sentimento fortalece “o lugar de encontro” – as relações com as pessoas, comigo mesma e com o mundo. É no território da amizade que tudo acontece. O lugar de encontro é construído pela amizade.
É importante colocar que no “lugar do encontro” eu sou sempre o Outro – o de fora. Desconstruir meus estigmas é o primeiro passo para o encontro.
A representação do corpo político é algo presente em seus projetos. Trabalhando em diferentes contextos – com travestis, prostitutas e agora com mulheres que lutam pelo direito à moradia – quais diferenças e similaridades você enxerga na sua abordagem?
VM: Cada trabalho exige uma abordagem, uma ética, uma forma de contunda que será intuída, construída e acordada na tentativa de dizer sempre a mesma coisa: estamos ligados uns aos outros. A vida é sempre uma vida compartilhada.
Na conjuntura política atual, marcada pela intolerância e criminalização à luta por moradia digna, o que aprendeu com as mulheres do MSTC?
VM: Aprendi muito sobre consciência cívica e sobre políticas públicas, sobre especulação imobiliária e direito a cidade, sobre as raízes históricas da escravidão e as cidades brasileiras. Aprendi que a legislação urbanística da Constituição de 1988 é muito avançada para uma realidade tão atrasada. Aprendi que é preciso lutar de forma engajada por justiça social. Aprendi que os movimentos sociais são o coração do nosso país. Aprendi acima de tudo sobre resiliência – a capacidade dessas mulheres do MSTC de lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos, resistir à situações adversas sem entrar em surto psicológico, emocional ou físico.
Você está trabalhando em novos desdobramentos do projeto Alma de bronze?
VM: Clamor está ativo, em desdobramentos. ///
Virginia de Medeiros (1973) é Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia. Recebeu em 2015 os prêmios PIPA Júri e Voto Popular e a 5a Edição do Marcantonio Vilaça. Seus trabalhos foram expostos em importantes instituições, como o MAR – Museu de Arte do Rio, a 31a Bienal de São Paulo e o Museu Serralves (Porto, Portugal), entre outros.
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