A história da fotografia que registrou 57 músicos da era de ouro do jazz
Publicado em: 11 de dezembro de 2017Parece uma reunião de família. Ali, diante de um prédio baixo de fachada de arenito, um clássico brownstone novaiorquino, juntos nos degraus da escada e espalhados pelos lados, estão alguns dos melhores músicos de jazz de todos os tempos. Para ser exato, 57. Era um dia de verão de 1958, Um Grande Dia no Harlem, como a foto ficaria conhecida.
Às dez horas daquela manhã, a rua 126 começou a assistir à chegada de dezenas de músicos vindos de toda parte. A nobreza do jazz estava se encontrando diante do número 17. De Count Basie a Dizzie Gillespie, passando por Lester Young, Charles Mingus e Thelonius Monk, era mais fácil notar as ausências: Miles Davis, Duke Ellington, Bill Evans, John Coltrane e Billie Holiday. Boa parte da orquestra de Ellington foi até lá. Miles, Evans e Coltrane talvez estivessem ocupados, pois lançariam no ano seguinte o mitológico álbum Kind of Blue. O fato é que, nos anos seguintes, todo mundo gostaria de ter estado naquela foto encomendada pela revista Esquire, como parte do número de janeiro de 1959, dedicado à era dourada do jazz.
A ideia foi de um dos editores, Harold Hayes, entusiasta do gênero. Ele e o designer Robert Benton, futuro diretor de cinema, convidaram Art Krane, um outro jovem designer da revista Seventeen, para pensar numa fotografia. Kane, que não era fotógrafo, deu uma sugestão singela: por que não fazer uma foto de todo mundo junto, todas as grandes estrelas possíveis? E assim, depois de pedir a ajuda do escritor Nat Hentoff, muito popular entre os jazzistas, e escalar o próprio Kane como fotógrafo, a equipe da Esquire conseguiu reunir toda aquela constelação de músicos. O detalhe é que Art Kane nem sequer possuía um equipamento. E como alguns daqueles músicos brincariam depois, muitos deles, seres notívagos por profissão, não sabiam da existência de “duas dez horas no mesmo dia”.
No documentário com o mesmo título, vencedor do Oscar de 1994, o empresário de Thelonius Monk conta como foi difícil tirar o músico da cama. E como ele demorou uma hora para escolher a roupa da foto, um paletó mostarda que brilha em meio a outros ternos de padrão escuro. Tudo calculado por Monk.
Também ficamos sabendo, pelo documentário, que ninguém fala mal de ninguém naquele meio. Todos os depoimentos, dados com a fotografia em mãos, revelam as alegrias e as curiosidades do encontro notável. A maioria estava ali justamente pela possibilidade de rever velhos amigos que a dura vida das turnês musicais não permitia. Todos ganhavam a vida duramente, mesmo os mais famosos.
Três mulheres aparecem na linha de frente: as pianistas Marian McPartland e Mary Lou Williams e a cantora Maxine Sullivan. Aliás, só há dois cantores no grupo: Maxine e Jimmy Rushing. Mary Lou era um tipo de professora para muitos deles. As três estão muito elegantes. Ao lado de Maxine, que segura uma bolsa no lado esquerdo da foto, está Luckey Roberts, uma lenda do piano. Atrás deles há um espaço que deveria ser ocupado por outra figura extraordinária, Willie “The Lion” Smith, um pianista veloz que jamais tirava o charuto da boca. Acontece que o leão, cansado de esperar, estava sentado no degrau ao lado bem quando a chapa foi batida.
Count Basie, que aparece sentado no meio-fio, também estava relaxando naquele momento. Ao lado, há uma dúzia de meninos, um deles com dois dedos na boca. Outro, nos instantes que antecederam a foto, esteve brincando com o chapéu de Basie. Acima do pianista, Rex Stewart segura a sua corneta, o único que trouxe o instrumento para a fotografia. No bloco de Stewart está um dos poucos brancos do pedaço, o saxofonista Gerry Mulligan. E à frente de Mulligan desenrola-se uma cena engraçada: Dizzie Gillespie mostra a língua para Roy Eldridge, que sempre aparece ao lado dele e sempre é distraído por ele nas fotografias.
Lester Young é o homem alto de chapéu esquisito atrás do cornetista. Poucos talentos presentes se equiparam ao dele, poucos estilos chegam perto do seu, ninguém se veste como ele. Dá para imaginar Billie Holiday, de quem era o melhor amigo, ao seu lado.
Mas a foto também traz um estranho no ninho. No centro da segunda fileira está Bill Crump, que poucas pessoas sabem quem é. Saxofonista e flautista, ele era quase um desconhecido, um mistério total para muitos colegas. Alguns até achavam que ele pudesse ser um espião do FBI. A verdade é que ele terminaria a carreira fazendo acompanhamentos para strippers. Não que muitos daqueles músicos de Um Grande Dia no Harlem não tivessem acabado na pior.
Um deles, o clarinetista Gigi Gryce, que está na extrema esquerda da foto, foi cortado na edição da revista. Quem abriu as páginas da Esquire naquele janeiro de 1959 viu o seu corpo pela metade. Entre os 57 artistas estão três mulheres, dois personagens de óculos escuros, dois de gravata borboleta e 47 negros, mas apenas um deles apareceu pela metade, enquanto do lado direito da foto há espaço de sobra para uma escada vazia que dava no número 19 daquela rua do Harlem. Gigi está encostado de leve no ombro do pianista Hank Jones, de terno e gravata, chapéu e óculos, sapatos engraxados e brilhantes. Segura um envelope debaixo do braço. Havia se convertido ao islamismo e mudara o nome para Basheer Qusin. Não fazia parte de nenhum grupo, não bebia e nem usava drogas. Era uma pessoa reservada. Abandonaria o jazz nos anos seguintes e se reinventaria como professor numa das escolas públicas da cidade, não muito longe dali. Mas teve a sorte de aparecer naquele grande dia no Harlem.///
Cadão Volpato (1956) é jornalista, músico, escritor e ilustrador. É formado em Jornalismo e Ciências Sociais pela USP. Como músico, lançou seis discos com a banda Fellini, entre eles O Adeus de Fellini (85), Fellini Só Vive Duas Vezes (86) e Amor Louco (89). Como escritor, é autor dos livros Relógio sem Sol (2009) e Pessoas que Passam Pelos Sonhos (2012), entre outros.