Colunistas

O triunfo de W. Eugene Smith

Dorrit Harazim Publicado em: 29 de janeiro de 2014

Nem ele imaginaria que sua obra mais desvairada seria, algum dia, saudada como monumento cultural com direito a tratamento de finíssima especiaria.

Trabalhara nela de maneira obsessiva por três anos (1959-1961) e tentara fazer com que algum editor se interessasse pelo calhamaço caótico que carregava debaixo do braço e que era seu testamento pessoal sobre a condição humana somado à sua visão complexa da narrativa fotográfica.

Embora à época já consagrado como um dos imortais da fotografia do século 20, W. Eugene Smith não conseguiu dobrar a perplexidade dos editores. Um a um, todos rejeitaram publicar algo tão inviável na forma, no volume, no conteúdo, no escopo. Argumentaram que a obra exigiria demais do eventual leitor para ter viabilidade comercial. Tornou-se lenda entre os historiadores com o apelido de “The Big Book”.

Desde então, a única versão existente do Big Book permanecia alojada no Center for Creative Photography da Universidade do Arizona, como parte dos Arquivos Eugene Smith, e exigia cuidados quase arqueológicos para poder ser consultada por pesquisadores. Os dois volumes encadernados artesanalmente pelo próprio fotógrafo têm os cantos das páginas de papel caseiro gastos – legado dos anos de manuseio solitário por parte do autor.

Agora, passadas quatro décadas desde a morte de Smith, chega ao mercado a primeira edição comercial desse livro-fetiche. Para quem cogitar desembolsar em torno de U$ 150 ao encomendar a obra em alguma livraria virtual, aqui vai um aviso: The Big Book, editado pela Universidade do Texas em parceria com a do Arizona, é tudo menos um livro de imagens deslumbrantes, impressas em papel de gramatura perfeita, que faz bonito numa mesa de centro. Navegar por suas confusas 380 páginas intercaladas de 466 imagens resulta numa viagem de outra dimensão.

Trata-se da réplica exata, em fac-símile, dos dois volumes diagramados por ele. Ou seja, o lançamento mantém todas as características caóticas e perturbadoras do original, inclusive a aparência artesanal. “Ocasionalmente incompreensível, não raro lírico e sempre escrito com paixão, a obra desafia ideias tradicionais de diagramação e design e procura estabelecer uma nova forma de expressão para o ensaio fotográfico”, explica na introdução William S. Johnson, um dos responsáveis pelo projeto.

Nada parece seguir qualquer lógica ou cronologia nos dois volumes – fotos de família se misturam às imagens que consagraram o fotógrafo, tudo desprovido de contexto ou nexo. A intenção do autor era construir uma série de capítulos e subcapítulos visuais, acrescidos de uma qualidade literária faulkleriana. Devido à má qualidade das cópias impressas no exemplar original, algumas das imagens agora reproduzidas em fac-símile estão tão apagadas que adquiriram aspecto quase etéreo. Outras se transformaram em borrões identificáveis apenas por especialistas. Mas está tudo ali, nada foi eliminado.

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W. Eugene Smith, maquete em dois volumes, “The Big Book,” ca. 1960. 33,02 cm x 24,77 cm x 7,62 cm

McCain_03483_0025_4x5 Já por isso, The Big Book pode ser considerado o triunfo póstumo de Eugene Smith, uma espécie de homenagem pública às idiossincrasias do autor.  Em vida, ele levara à beira de vários ataques de nervos muitos dos maiores editores de fotografia dos Estados Unidos. Foi irredutível e intransigente em relação à sua visão autoral. Não cedia um mísero milímetro quanto à forma como achava que suas imagens deviam ser usadas, indiferente a  limitações de espaço ou considerações comerciais.

Não espanta que sua relação mais profícua e tempestuosa tenha sido com a revista Life, a meca dos grandes fotojornalistas de todos os tempos. Em suas páginas, Smith retratou a verdadeira face da guerra e publicou mais de 50 ensaios fotográficos. Muitos se tornaram aulas de narrativas visuais, como Country Doctor, Spanish Village, Nurse Midwife ou Albert Schweitzer na África, e inverteram por completo a tradicional subordinação da fotografia ao texto.

Demitiu-se mais de uma vez dessa que era a mais prestigiosa revista ilustrada da época, sempre por querer interferir não apenas na diagramação, mas também nas legendas e no texto que acompanhasse seus ensaios. Há quem atribua essas exigências a uma ferida não cicatrizada desde os tempos de adolescente, quando os jornais de Wichita, a cidade do Kansas onda nasceu, noticiaram de forma distorcida as circunstâncias do suicídio de seu pai.

Eugene Smith tinha domínio pleno sobre todas as etapas da produção fotográfica. Fazia questão de ser seu próprio laboratorista, e jamais deixou nas mãos de terceiros a arte de transformar seus negativos nas imagens de inconfundível chiaroscuro que iluminam a sua obra.

Uma das brigas mais vitriólicas do fotógrafo com a chefia da Life girou em torno de sua recusa em entregar aos editores os negativos de um extenso ensaio sobre a atuação do dr. Schweitzer no hospital de Lambaréné, na África. Ao se demitir, explicou-se por escrito: “Negativos são meros blocos de anotações, rabiscos, tentativas, falsas largadas, rascunhos – ora ruins ora bons –, mas sempre rascunhos, nunca a versão final. Negativos são algo tão privado quanto meu quarto de dormir. A ampliação finalizada deveria satisfazer plenamente as necessidades da revista. Somente a prova de autor, a ampliação em papel, pode ser considerada a fotografia definitiva – seja para a reprodução da imagem, seja para sua colocação na parede de um museu”, escreveu.

Essa última referência deve ter sido meramente retórica, dado o notório desinteresse de Smith pela sua cotação no mercado das artes. “Não tenho paciência para exposições de fotografias com molduras certinhas em paredes de museus, admiradas como se fossem obras de arte. O que quero é que minhas fotos sejam olhadas como pedaços de vida”, insistia.

O olhar humanista que viria a desembocar no seu projeto mais seminal, Minamata, foi moldado no caldeirão da II Guerra mundial. Em 1942, o fotógrafo tinha 23 anos e passagens pelas melhores publicações americanas da época, quando se iniciou na cobertura do conflito. Passou três anos documentando a crueza das operações no Pacífico. Suas imagens de Guam, Saipan, Okinawa, Filipinas e Iwo Jima retrataram uma tragédia que transcendeu a violência dos combates.

Das tomadas aéreas iniciais, feitas a partir de vôos de reconhecimento, a fotos de bravura e solidariedade militar no campo de batalha, passou a focar no horror da guerra para as populações civis e na fragilidade da condição humana como um todo. Ao final da devastação, W. Eugene Smith havia construído o mais pungente libelo contra a matança entre homens da história do fotojornalismo. Carregou esse fardo moral até o final da vida.

A marca física que a guerra lhe deixou não foi menor. Em maio de 1945, com a guerra já nos seus estertores, Smith sofreu ferimentos graves na cabeça e na mão esquerda enquanto fotografava. Submetido a uma série de cirurgias, teve de permanecer hospitalizado durante quase dois anos e temeu jamais poder voltar a empunhar uma câmera. Certo dia da primavera de 1946, ainda afundado numa crise espiritual por ter de conviver com o corpo remendado, a confiança abalada e as lembranças sombrias da guerra, decidiu acompanhar os dois filhos menores num passeio bosque adentro. Pela primeira vez desde que se ferira, levava consigo a máquina fotográfica, e com ela captou a imagem que viria a se tornar a mais popular mundialmente. The Walk to Paradise Garden mostra as duas crianças de costas, caminhando de mãos dadas em direção a uma clareira. “Enquanto as observava”, explicou mais tarde, “tive a nítida percepção de que naquele instante, apesar de todas as guerras e de tudo o que eu vira, eu queria fazer um hino à vida e à vontade de viver”.

“Sentimental”, “piegas”, criticaram muitos. “Magistral”, “eterna”, “para além das forças do romantismo e do comercialismo que conspiraram para diminuir-lhe o valor”, rebate o editor de fotografia da Life. “Neste sentido,” acrescenta James Estrin, do New York Times, “ela se assemelha a imagens clássicas como Beijo de Alfred Eisenstaedt, Che, de Alberto Korda, e Gêmeos Idênticos, de Diane Arbus, que resistem à tendência popular de arrastar todas as formas de arte para o mesmo nível de digestão fácil.”

Assim como sustentava que o mundo simplesmente não cabia no formato de uma câmera de 35 mm, Smith também sofria com as limitações físicas e temporais das pautas que recebia. Em 1955, já como associado da mítica agência Magnum, recebeu a incumbência de fazer um ensaio sobre a vida urbana em Pittsburgh, cujo cordão umbilical, à época, ainda era a indústria do aço. Deveria ficar três semanas na cidade e produzir 100 fotos. Acabou não arredando pé de lá por um ano inteiro, captou 17 mil imagens, e ainda assim achou que não tinha conseguido completar a tarefa.

Embora o ensaio que pretendera fazer sobre a convivência humana tendo Pittsburgh como pano de fundo fosse abrangente demais, recusou-se a estreitar o foco. Às publicações interessadas em editar o vasto material explicava que não se contentaria com “um mero portfólio”. Recusou com desdém uma oferta de U$ 20 mil da Life e vendeu o trabalho para uma revista mensal, a Popular Photography, por míseros U$1.900. Em troca, ganhou a liberdade de diagramar e editar seu épico, que recebeu o título de Pittsburgh e acabou ocupando 38 páginas da publicação.

Mas foi somente no seu último trabalho – a monumental série sobre os efeitos letais da poluição industrial de mercúrio em Minamata, concluída pouco antes de sua morte – que W. Eugene Smith produziu a única fotografia de que teve orgulho pleno. “Considero Tomoko no seu Banho a melhor fotografia que jamais fiz porque ela diz exatamente o que eu queria dizer”, explicou a seus alunos da Universidade do Arizona. Na busca desse ponto de encontro que o consumiu a vida toda, considerava o restante de sua obra mais ou menos fracassado.

Smith tinha uma paixão declarada por música e, numa fase de devoção excessiva ao trabalho, quando abandonou a família e foi se enfurnar num galpão da Sexta Avenida de Nova York, ali acolheu várias bandas de jazz que usavam o espaço para ensaiar. “Em música, sempre prefiro o tom menor, e, quando faço minhas ampliações, gosto de ver a luz emergindo do escuro”, escreveu num ensaio. “Gosto de imagens que vençam a escuridão, pois é assim que minha visão fotográfica [capta a cena]”.

Tomoko, muitas vezes associada à Pietà de Michelangelo, talvez seja mesmo a obra mestra de Eugene Smith. A mãe japonesa que acarinha a filha desnuda e severamente deformada enquanto a banha no tradicional tanque em uso na época teve impacto mundial imediato e compreensão universal. Ryoko Uemura concordou em expor a filha Tomoko em cena tão íntima como grito silencioso contra a devastação física e mental da menina, uma entre as milhares de vítimas do horrendo crime ambiental provocado por uma indústria química.

Smith fora contratado pela Comissão da Defesa das Vítimas de Minamata para retratar a dimensão humana e ambiental da catástrofe e havia se mudado para lá, mergulhando de cabeça no projeto que coroou sua carreira. Amadurecido pelo que testemunhara ao longo da vida, foi um retorno feroz ao fotojornalismo de seus tempos de correspondente de guerra. O impacto de Minamata no processo de reconhecimento de responsabilidade e reparação às vítimas por parte da indústria química Chisso Corporation foi crucial.

Vale um post scriptum para a história da foto-ícone. Em 1997, vinte anos após a morte de Tomoko, a família expressou o desejo de que a obra cessasse de ser comercializada. Tinha cumprido sua missão de alertar o mundo para a ganância corporativa e os perigos do extermínio humano por poluição. Aileen Mioko Smith, viúva do fotógrafo e detentora dos direitos sobre a imagem, fez mais: além dos direitos de reprodução, repassou às mãos dos familiares os originais das fotos.

Os pais chamaram a menina Tomoko de “criança-tesouro” desde o instante em que nascera. A mãe havia se contaminado durante a gravidez ao comer peixe vindo do rio contaminado, só que, ao invés de corroer sua saúde, o veneno passou da placenta para o feto, e este o absorveu por inteiro. Eliminou, assim, a contaminação do organismo materno, que pôde gerar outras seis crianças, todas perfeitamente sadias.

A existência da foto da “criança-tesouro” em museus, coleções e publicações passadas nunca deixou de ser importante para a família, que jamais se arrependeu da autorização dada a Smith numa gelada tarde de dezembro de 1971, na hora do banho de Tomoko.

O que mudou, passado quase um quarto de século, foi a necessidade de aquietamento. Para os pais de Tomoko, chegara a hora dela poder descansar em paz, sem ter o corpo poluído exposto por apreciadores de fotografia como obra de arte. Os pedidos de reprodução haviam se tornado automáticos, “quase profanos”, explicou Aileen Smith ao comunicar que não venderia mais a imagem.

W. Eugene Smith não teve tempo de incluir mais esse dilema em seu Big Book, onde tudo parece caber e se misturar. Como o fotógrafo não concluiu sua obra, os editores acrescentaram um terceiro volume destinado a ajudar a navegação do leitor. Dele constam um prefácio da diretora do Center for Creative Photography, uma introdução do curador dos Arquivos Smith, uma análise do crítico John Berger, a íntegra do ensaio “The Walk to Paradise Garden”, do próprio Smith, e um apêndice com reproduções em miniatura de cada uma das 466 imagens do livro, todas em altíssima resolução.

Descartado no passado como sendo o rascunho caótico de algo que algum dia poderia adquirir forma coerente, The Big Book  está sendo lançado hoje como obra de linguagem surpreendentemente moderna – embora ainda difícil de compreender. Um mérito já lhe está assegurado: trata-se uma fonte primária essencial para o estudo da história da fotografia e da história do fotolivro.

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

© Collection Center for Creative Photography, University of Arizona e herdeiros de W. Eugene Smith.