Revista ZUM 10

Retorno a El Alto

Tatewaki Nio Publicado em: 8 de agosto de 2016
Festa do 16 de Julho, El Alto, Bolívia. Fotografado com o celular.

Festa do 16 de Julho, El Alto, Bolívia. Fotografado com o celular.

Desembarcando do voo que partiu de São Paulo, a respiração, como previa, tornou-se mais difícil. Depois de um ano eu retornava a El Alto, na Bolívia, cidade a que me sinto atraído por sua cultura diferente e pela profunda simpatia de seu povo.

Como não há muitas opções, escolhi a mesma pousada em que fiquei no ano passado, quando realizei a série publicada na ZUM #10, situada em Ceja, região que possui maior concentração de comércio.

Em julho é comum haver muitos dias seguidos com temperaturas abaixo de zero no altiplano. Contudo, o movimento comercial do bairro começa antes mesmo do amanhecer. Feirantes e ambulantes, a grande maioria mulheres, abrem seus negócios nas ruas, montados com estruturas simples, por volta das 6 horas da manhã. Carnes de lhama e cordeiro recém-abatidos, batatas, chuños, cereais e várias verduras se espalham pelos dois lados das ruas.

Costumo rejeitar as torradas e o ovo mexido oferecidos pela pousada para tomar meu desayuno na rua. Uma das minhas preferências é o wallake de pejerrey, um caldo quente levemente apimentado com batata, chuño e pejerrey, um peixe oriundo do lago Titicaca. Admiro a riqueza do sabor e a ideia de servir peixe na primeira refeição do dia me traz lembranças familiares, pois o café da manhã tradicional na minha terra de origem é um set de arroz, misso-shiru e peixe grelhado.

Minha jornada fotográfica em El Alto quase sempre começa após levantar daqueles banquinhos baixos e compridos, compartilhados com outros que também se concentram em separar as espinhas de seus peixes com as mãos.

 

Debaixo do teto da van

Levando um tripé e uma bolsa com a câmera e as lentes no ombro embarco em uma van lotada. O motorista buzina e o cobrador anuncia repetidamente o destino do veículo, como uma mantra para chamar a atenção dos pedestres. “Viacha, Viacha, Viacha, camino a Viacha”.

Muitos desses veículos, de porte menor que as saudosas kombis, têm letras japonesas adesivadas nas portas: 株 木村建設 (Construtora Kimura Co., Ltd.), 頑張れ!東北‐大阪名古屋東Speed Racer (Força! Tohoku – Osaka Nagoya Leste Speed Racer), おいしいシュウマイ(shaomai delicioso). Divirto-me imaginando as cenas e situações pelas quais passaram antes de ser revendidos e importados, atravessando o Oceano Pacífico.

Vans da Toyota ou da Nissan, fabricadas décadas atrás, são realmente pequenas e têm o teto baixo. Mesmo eu sinto isso, talvez pelo fato de que a altura média do homem adulto japonês tenha aumentado mais de 10 cm nesses 60 anos. Para enfrentar o caos viário de El Alto, o porte pequeno me parece ser uma vantagem. Desfrutando dessa condição, as vans vão se esquivando dos outros veículos e do cruzamento repentino de pedestres nos espaços pequenos e lotados.

Vendo costas e perfis dos passageiros alteños no balanço daquela lotação, imagino uma época passada, em que os japoneses viviam de modo mais coletivo e solidário.

Festa do 16 de Julho, El Alto, Bolívia. Fotografado com o celular.

Festa do 16 de Julho, El Alto, Bolívia. Fotografado com o celular.

 

Pollera e sombrero

La Paz e El Alto são cidades vizinhas: vai-se da região central de uma para a da outra em menos de meia hora. La Paz recebe muitos turistas estrangeiros que percorrem seus espaços urbanos com arquiteturas de estilos ocidentais variados, construídas desde a colonização. Já em El Alto, cujas construções em geral apresentam tijolos sem revestimento externo, é muito difícil encontrar um gringo de visita.

Outra diferença perceptível entre as duas cidades é o número de mulheres que anda com o traje tradicional de cholita (pollera e sombrero), muito maior em El Alto. Apesar de sua origem remontar à obrigação imposta pelos colonos espanhóis a nativos indígenas ou mestiços no século 18, a pollera e o sombrero, que se tornaram mais coloridos e elegantes hoje em dia, são vestidos com orgulho pelas cholitas.

Diz-se que na verdade os jovens preferem usar calça jeans, tênis e camiseta em vez do traje tradicional, e que a população que ainda usa o traje está diminuindo significativamente. Todavia, ao mesmo tempo a demanda pelo traje para uso em festas e cerimônias aumenta, e ele tem ganho espaço no Bolivia Fashion Week. A situação é parecida à do quimono no Japão, com a diferença de que este perdeu seu espaço no cotidiano há muito mais tempo.

A estadia em El Alto me faz pensar em tudo o que o Japão vem perdendo e deixando para trás na corrida do crescimento econômico. Isso porque, me parece, há certa semelhança nas raízes dos povos japonês e andino. Mas essa sensação também pode ser apenas uma ilusão minha, advinda da vontade de empatia e identificação de um homem solitário em terra estrangeira.

Ao fotografar cenas urbanas em El Alto, sinto um prazer especial quando as cores e as formas desses trajes tradicionais entram na composição da imagem. Aliás, sua ausência seria uma falta enorme; só posso torcer para que essas cores nunca desapareçam sob a luz solar cristalizada do altiplano. Que sua tendência ao sumiço, da qual me falaram, não se concretize.

Mas talvez este seja um modo de pensar de alguém alheio à realidade local. De um estrangeiro algo sonhador.///

 

Tatewaki Nio (1971), fotógrafo, nasceu em Kobe, no Japão. Formado em sociologia pela Universidade Sophia, em Tóquio, vive em São Paulo desde 1998. Foi contemplado com o prêmio Funarte de arte contemporânea em 2011.

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