Conversas na quarentena – Mauro Restiffe & Carola Saavedra – Parte 4
Publicado em: 18 de junho de 2020
Querido Mauro,
Últimas fotos, diz o arquivo, espalho-as sobre a mesa. Esta correspondência impossível, mas constante, apaziguadora. Acabou… digo a mim mesma, e a palavra “quarentena”, que estivera o tempo todo em silêncio, invisível, agora se acomoda ao meu lado. Coloco as fotos de volta no envelope, ouço um barulho, talvez o vento que instiga as árvores, talvez um pássaro, desço correndo as escadas.
Os degraus se contorcem feito as grades de um labirinto. Uma prisão. É possível fugir? Abro a porta da varanda, no quintal uma paisagem que eu nunca vi. Sento em frente à janela, olho para dentro da casa, a sala de estar, ou será a cozinha? Observo com atenção. Dentro da sala de estar está você, o teu reflexo, é estranho te ver ali, como se só naquele momento eu tivesse me dado conta do óbvio. A câmera aponta para um armário, para as panelas de barro, de cobre, sobre o armário, e uma galinha que nos observa com seu jeito distraído.
Volto para o jardim, olho em volta em busca da saída, logo encontro uma porta, está aberta, constato com alívio. Caminho em direção à saída, depois de tanto tempo, este tempo todo. Depois virá o depois, penso, a porta se aproxima, cada vez mais perto, cada vez mais, mas a porta nunca chega, e eu me pergunto: será possível fugir?
Um abraço,
Carola
Querido Mauro,
Passei a semana com as fotos na lembrança. Estranho como uma imagem, ou várias delas, podem se amalgamar num único sentimento, ou uma única palavra. Mas a palavra me escapa. Tateio. O lado de fora invade o lado de dentro. Alguém tenta se proteger, com as mãos ou com o tecido da camiseta, alguém se recusa. Era essa a palavra: recusa? Esse excesso. Lembro dos pequenos detalhes, figuras de madeira, quadros, uma máquina fotográfica e alguns livros em frente à janela. Foco nos livros, aumento a imagem, é difícil saber, mas parece haver um dicionário. Sim, gosto dessa narrativa, em frente à janela, um dicionário, outras linguas-linguagens. O mundo de dentro está cheio dessas estranhas metáforas. Abro o dicionário e escolho uma palavra, acaso? Abro o dicionário e escolho a palavra “saída”. Pego um café e me sento à janela, há uma mochila, coloco-a no chão. Não quero interferir, mas é impossível, ver é sempre uma interferência.
Saída. Haverá saída, por onde seja possível voltar?
Um abraço,
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Querido Mauro,
Recebi as fotos com alegria.
Eu, muito acostumada a colocar palavras em imagens, me vejo de repente nesse movimento contrário: imagens à guisa de resposta. Como nos sonhos (vejo o que desejo). Decifro sabendo que se trata de um encontro impossível.
Espalho as fotos sobre a mesa. Penso nesse diálogo entre o mundo de dentro e o mundo de fora, essa conversa que permanece. O mundo que nos invade a todo instante, mesmo na mais hermética cápsula. A família. A casa. O corpo. Sempre há um livro, um celular, a tela do computador, uma árvore que se esgueira, as raízes entrando pelo chão da sala, um rio submerso, entidades, toda uma floresta, um bosque. O lado de fora insiste dentro de nós. Às vezes esquecemos, noutras nos acostumamos. É preciso traçar pequenos pontos de fuga. É preciso voltar.
Enquanto isso, no andar de cima, o mundo ainda parece o mesmo. Talvez seja.
Olho pela janela, percebo, pela primeira vez nestas últimas semanas, a passagem do tempo. As árvores espalham as suas folhas pela paisagem.
Um abraço,
Carola
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Querido Mauro,
Recebi as fotos.
Imprimo, espalho-as sobre a mesa.
Imagino um momento em família. Um instante em suspenso. Depois do almoço ou depois das últimas notícias ou depois de nada muito importante. Alguns descansam no sofá, outros ainda à mesa, um café, os objetos deixam rastros pela casa. Ao pé do sofá, um cão dorme. Tudo é esse espaço interior. Me chama a atenção o armário que se repete, a porta de vidro e a louça nas prateleiras, xícaras, canecas, alguns pratos, feito um arquivo, uma composição. Penso na vida dos objetos, a alma secreta das coisas. Mas isso seria uma expansão e por enquanto é tudo apenas átimo, um rufar de tambores antes do último salto, o trapezista nessa suspensão do tempo, uma corda-bamba que se estica e se estica. Tento não pensar. Encontro finalmente a narrativa das fotos. Depois do almoço, a tarde se estende. Poderia ser uma tarde qualquer, depois de um almoço como outros. Mas sabemos que não é, não é uma tarde que se estende qualquer, preguiçosa, sem pensamentos, ao contrário, é mais uma espera, uma trégua, que é o instante de todos nós. Mas, se essa trégua implica alguma sombra oculta, ela traz também a possibilidade de um escape, de um caminho outro. Olho para o que, imagino, deve ser a última foto da série. Nela o instante finalmente se quebra, nela alguém olha para a câmera, nela, também pela primeira vez, uma janela, o verde-azul do lado de fora. Um olhar para a câmera e uma janela, me parecem movimentos paralelos, complementares, são movimentos de fuga, o olhar se move para fora, seja esse fora um espaço físico, seja esse fora o encontro com o outro. Há salvação, penso eu.
As luzes do mundo entram pelas pequenas frestas.
Um abraço,
Carola
Convidamos o fotógrafo Mauro Restiffe e a escritora Carola Saavedra para uma troca de e-mails durante este período de quarentena. Mauro envia fotografias do seu cotidiano e Carola responde com um texto, uma conversa que seguirá e será publicada no site da ZUM. Acompanhe!
Mauro Restiffe é formado em cinema pela FAAP-SP, estudou fotografia no International Center of Photography e na New York University, em Nova York. Desde o final dos anos 80 trabalha exclusivamente com fotografia analógica. Possui obras em importantes coleções públicas, como Instituto Moreira Salles, Pinacoteca do Estado, MAC, MASP e Museu de Arte Moderna em São Paulo, Inhotim em Brumadinho, Tate Gallery em Londres, MoMA e Bronx Museum em Nova York, SFMOMA em São Francisco, entre outras. Realizou exposições individuais no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Instituto Moreira Salles, Garage Museum of Contemporary Art em Moscou e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 2019 teve exposição individual na OGR em Turim e 2020 encontra-se em suspensão.
Carola Saavedra é autora dos romances Toda terça (2007), Flores azuis (2008, eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti), Paisagem com dromedário (2010, Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti), O inventário das coisas ausentes (2014) e Com armas sonolentas (2018, finalista do Prêmio São Paulo e Prêmio Rio de Literatura), todos pela Companhia das Letras. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os vinte melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019 é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia, Alemanha.
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Leia também no #IMSquarentena uma seleção de ensaios do acervo das revistas ZUM e serrote, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia.
Tags: Covid19, IMS Quarentena, ZUM Quarentena