A janela indiscreta de Alair Gomes
Publicado em: 29 de julho de 2014ZUM esquadrinhou o acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde estão as mais de 150 mil imagens, além de diários e manuscritos de Alair Gomes, e publicou em sua sexta edição dois ensaios inéditos do fotógrafo, A não história de um chofer e Praça da República. O texto Reflexões Críticas e Sinceras sobre a fotografia, de 1976, também foi publicado na revista pela primeira vez, e ainda conserva o rigor e a originalidade, quase 40 anos após ter sido escrito.
Agora, o historiador da fotografia Pedro Vasquez fala à ZUM sobre a relação entre voyeurismo, prazer e arte no trabalho de Alair e relata uma de suas raras aparições públicas, por ocasião de uma palestra na IV Semana Nacional da Fotografia do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte, que o levou a Belém-PA em 1985.
capítulo 7 da série A não história de um chofer
A Janela Indiscreta de Alair Gomes
Para mim o assunto da imagem é sempre mais importante que a imagem.
E mais complicado.
Diane Arbus
Todo fotógrafo é um voyeur. Mas raros foram aqueles que conseguiram transformar o voyeurismo em uma das belas artes, como Alair Gomes com as múltiplas séries realizadas a partir da janela de seu apartamento e enfeixadas sob a denominação de Finestre.
Janela e fotografia sempre fizeram bom casamento, o mais conhecido dos quais sendo o filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, em que o fotógrafo L. B. Jeffries, interpretado por James Stewart, mitiga o tédio da imobilidade forçada por uma perna quebrada bisbilhotando a vida dos vizinhos com a ajuda de uma câmera munida de teleobjetiva.
A fotografia, que já foi qualificada de “janela para o mundo”, tem sua própria gênese umbilicalmente ligada a uma janela: a do ateliê do inventor Joseph Nicéphore Niépce em Gras (nas cercanias de Chalon-sur-Saône), de onde foi realizada, em 1826, aquela que é considerada a primeira fotografia da história: Vue de ma fênetre. Por outro lado, o ex-sócio de Niépce, Louis-Jacques Mandé Daguerre, efetuou o primeiro registro de figuras humanas (a de um engraxate e seu cliente), em 1839, a partir de uma janela com vista para o Boulevard de Capucines. Enquanto André Kertész produziu centenas de tomadas em plongé de centenas de janelas diferentes de ambos os lados do Atlântico, e Eugene Smith descansaria de suas viagens mundo afora contemplando os passantes da janela de seu loft nova-iorquino na série As From My Window, durante os anos de 1957 e 1958.
São tantas as janelas que se abrem na história da fotografia que fácil seria nos perder neste caleidoscópio de estonteante simetria, confundindo a vista com o ponto de vista, de modo que convém direcionar as lentes nostálgicas de nosso satélite para uma única janela: a de Alair Gomes, na cidade do Rio de Janeiro da década de 1970.
UM LUMINOSO CORREDOR RUMO AO MAR
Alair Gomes morava em um apartamento de fundos na rua Prudente de Morais, de cuja janela era possível vislumbrar uma nesga da praia de Ipanema pelo corredor formado pelas laterais de dois prédios da avenida Vieira Souto. Esse espaço restrito, que não passava de uma simples fenda luminosa em meio à massa dos edifícios, lhe permitia esquecer a cidade às suas costas para se concentrar no mundo idílico e eternamente cambiante da praia, onde o vento, o mar, as nuvens e os banhistas encenam ainda hoje o sensual e sedutor espetáculo que deslumbrava o fotógrafo.
Não era um espetáculo encenado apenas para Alair, pois ninguém que se aproxime de uma praia consegue escapar ao sortilégio do mar. Mas era um espetáculo que tinha em Alair Gomes seu principal e mais arguto espectador, aquele capaz de transubstanciá-lo, transformando o que seria apenas inútil paisagem em arte.
Arte pura, no sentido de verdadeira arte, e arte pura – embora carregada de erotismo – em oposição à carnal concretude da arte nua e crua que ele viria a produzir entre as quatro paredes de seu apartamento-ateliê. Isso porque uma nasceu do anseio pela carne, que permaneceu idealizada e intocada, ao passo que a outra é fruto da consumação do ato sexual, do desejo realizado e saciado. Entre esses dois tempos, um longo momento: aquele que vai do reconhecimento do desejo à sua consumação. Aquele que levou o fotógrafo de sua janela indiscreta às areias da praia e de lá de volta ao labirinto inescapável do apartamento, em que, Minotauro de si mesmo, Alair devorou e foi devorado por suas fantasias eróticas.
O HOMEM CERTO, NO LUGAR CERTO, NA HORA ERRADA
No momento em que escrevo, no sábado dia 7 de junho de 2014, o jornal O Globo dedica uma página inteira aos Direitos Civis Homossexuais, anunciando que “o primeiro casal homoafetivo a conquistar o direito à dupla paternidade tem o segundo filho”, enquanto “a primeira soldado a ter seu casamento reconhecido pela PM do Rio celebra a extensão de direitos como seguro saúde à esposa e agora planeja ter filhos”.[1] E o Caderno Niterói informa: “amanhã, às 17h, acontece a 10ª Parada Orgulho LGBT na orla da Praia de Icaraí. A organização do evento estima a presença de mais de cem mil pessoas. E para coordenar o trânsito da cidade, a NitTrans preparou um esquema especial”.[2] Ou seja: no Brasil do terceiro milênio as autoridades, inclusive as militares, não só demonstram crescente aceitação dos direitos dos homossexuais, como até mesmo envidam esforços e canalizam recursos para possibilitar a realização de eventos públicos destinados a reforçar o orgulho gay.
Não sou ingênuo[3] a ponto de pensar que vivemos hoje no melhor dos mundos, em uma sociedade livre de preconceitos. Mas é forçoso admitir que os avanços têm sido consideráveis e, pelo menos do ponto de vista legal, irreversíveis. Contudo, quando Alair Gomes começou a produzir sua obra homoerótica, a partir da década de 1970, a situação era bastante diferente, de modo que nos primeiros tempos ele não costuma expor os trabalhos de natureza mais abertamente sensual e poucos eram os que conheciam sua produção, como seus primeiros colecionadores e amigos, Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva, ou o crítico de arte Roberto Pontual, o principal responsável pela divulgação de seu trabalho no exterior. Com efeito, Pontual foi o curador da exposição Corpo & Alma, apresentada no Espace Latino-Américain no quadro do Mois de la Photo à Paris de 1984, na qual as Sonatinas e os Trípticos de Alair causaram grande impressão apesar de serem os trabalhos de menor dimensão da mostra.[4] As Sonatinas Four Feet, assim como todas as demais fotografias da primeira fase, realizadas do mirante secreto da sua janela, eram impregnadas de luminosa imprecisão em virtude do uso de uma objetiva de 200 mm com um duplicador de focal, o que se por um lado lhe concedia o alcance equivalente a uma teleobjetiva de 400 mm, por outro, não apresentava a mesma nitidez ou a mesma profundidade de campo.
Duas circunstâncias combinadas contribuíram para oferecer a Alair um grande número de modelos involuntários: a consolidação do surfe e a disseminação da aparelhagem de ginástica nas praias do Rio na década de 1970. Não existia até aquele momento o culto do corpo, que atingiu o paroxismo em tempos recentes, fazendo com que muitos abusem dos esteroides anabolizantes ou até mesmo dos implantes para “esculpir um corpo de sonho”. Ao contrário, ali mesmo em Ipanema – declarada República Livre pelo pessoal de O Pasquim – os locais de encontro preferidos pela contracultura eram os bares e restaurantes, em obediência estrita ao vaticínio do jornalista Paulo Francis: “Intelectual não vai à praia. Intelectual bebe”. O brasileiro de então continuava com a magreza que vinha da década de 1940, quando Gilberto Freyre assinalou a desvantagem física de nossos marinheiros em relação aos seus colegas norte-americanos. Até o “homem mais bonito do Brasil”, Pedrinho Aguinaga, era muito magro, a ponto de os cigarros Chanceller associarem sua esbelteza àquela dos seus cigarros de 100 mm, apresentando um retrato seu com cigarro na mão com o dístico: “O único fino que satisfaz”. Muito embora tenha chegado ao Brasil na década de 1960, o surfe era praticado de forma romântica pela “Patota do Arpoador”, em que pontificavam Jorge Bally e o bonitão Arduíno Colasanti, que pode ser considerado o arquétipo dos ginastas fotografados por Alair Gomes, com seu corpo de músculos bem delineados e os cabelos longos. Foi na década seguinte que o surf começou a se profissionalizar e o corpo dos cariocas começou a mudar: ninguém queria mais saber de intelectuais magricelas, cheirando a cigarro e a bebida, os novos tempos exigiam gatões sarados, de peitos largos, cabelos parafinados e corpos com gosto de sal e sol. Os meninos-deuses do Rio, como José Artur Machado, o Petit, que inspirou a canção Menino do Rio de Caetano Veloso, assim como o filme homônimo de Antonio Calmon, como tantos outros inspiraram Alair Gomes.
Com o passar do tempo, à medida que foi superando a timidez, Alair passou a retratar os ginastas da Praia de Ipanema a partir da calçada e depois da própria areia, nos Trípticos de Praia. Depois foi mais além, começando a levar modelos para o estúdio improvisado na sala de visitas de seu apartamento, produzindo imagens cada vez mais ousadas, a ponto de retratar pênis em close e camisinhas usadas. Fotografias que ainda hoje chocam os mais sensíveis e que ele tinha a precaução de arquivar em caixas separadas nas quais colocava um aviso bem visível destinado à irmã: “Aíla – Não mexer”. Conforme relatou divertido o escultor Maurício Bentes, seu grande amigo e um dos mentores da doação de seu acervo à Biblioteca Nacional, juntamente com Aíla Gomes e Celeida Tostes, em 1994. Mas essa foi a única coisa divertida desta nova fase, pois ao trocar os seus modelos involuntários de classe média das praias por rapazes que se dispunham a posar por interesse pecuniário para sua Symphony of Erotic Icons, Alair acabou sendo barbaramente assassinado por um deles, a exemplo do que ocorrera com o cineasta Pier Paolo Pasolini na Itália, e, aqui no Brasil, ocorreria antes dele com o diretor de teatro Luiz Antônio Martinez Corrêa e o perfumista e artista plástico Aparício Basílio da Silva. Todos eles vítimas de “walks on the wild side” à maneira de Lou Reed que, lamentavelmente, não terminaram em arte ou poesia e sim em tragédia.
UMA NOITE INESQUECÍVEL NA BAÍA DO GUAJARÁ
As coincidências são muitíssimo interessantes, sobretudo pelo fato de não existirem. Assim, acho significativo o fato de que, depois de ter deixado o bom Alair esquecido durante tanto tempo em um desvão qualquer da memória, eu tenha sido impelido – por circunstâncias externas – a evocar sua figura e sua obra duas vezes no período de apenas um mês.
Agora, neste dia de um céu azul verdadeiramente alairiano [muito embora ele preferisse transcrevê-lo em PB], eis-me aqui, do lado niteroiense da Baía de Guanabara, a evocar uma longínqua ocorrência na Baía do Guajará, que banha a cidade de Belém do Pará. De forma idêntica à qual, no início do mês passado fui lançado numa evocação nostálgica da atuação belenense de Alair Gomes em virtude do genuíno fascínio que percebi em um jovem fotógrafo. Fascínio que contribuí para alimentar ao relatar aquele que foi o momento de culminância na vida do Alair Gomes crítico de arte, professor e pensador da fotografia: sua palestra na IV Semana Nacional da Fotografia do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte.
A palestra, intitulada “Aspectos da linguagem fotográfica”, foi sem dúvida alguma o ponto alto das aparições públicas de Alair Gomes, já que ele – apesar de ser excelente professor tanto no campo da ciência quanto no da arte – não gostava de falar para grandes plateias em virtude de um defeito de dicção que se acentuava nos momentos de tensão. Talvez por isso, nem bem pisou em Belém, de lá já queria voltar. Alegava ter sido hostilizado no hotel pelo fato de ser gay, muito embora nada em sua aparência evidenciasse de imediato essa condição, já que seu estilo era o daqueles que hoje chamamos de nerds, inclusive com certa semelhança com o célebre escritor de ficção científica Isaac Asimov, exceção feita às bastas suíças do autor da série Fundação.
Pregando uma daquelas perdoáveis mentiras indispensáveis para tornar a vida operacional, eu disse a Alair que tinha certeza absoluta que tudo não passava de um mal-entendido, assegurando a inexistência de preconceito por parte dos funcionários do hotel. Findei assim por acalmá-lo e o convenci a ficar para realizar a palestra prevista, que deveria ser comentada por Cristiano Mascaro, um dos mestres inquestionáveis da fotografia de arquitetura no Brasil.
Quando a noite caiu sobre os bulevares de árvores frondosas de Belém, quem estava nervoso era eu. Isso porque estávamos no aziago ano de 1985, que começara muitíssimo mal para o Brasil, com Tancredo Neves fazendo forfait em seu encontro com a presidência da República e deixando-a assim nas mãos de José Sarney, umbilicalmente ligado ao regime militar que governara o país ditatorialmente durante duas décadas. Portanto, em uma destas ironias do destino que só parecem ocorrer na América Latina, estava encarregado de restabelecer a democracia no Brasil um dos políticos que mais se empenhara em ignorá-la quando os ventos sopravam a favor dos coturnos e dos sabres desembainhados. Os ânimos estavam exaltados e a situação era particularmente confusa no âmbito da administração cultural, em virtude da recente criação do Ministério da Cultura por Aparecido de Oliveira, ao qual a Funarte, antes pertencente ao MEC, agora era subordinada. Nem tudo estava por fazer, mas tudo estava sendo refeito, de modo que a própria Semana Nacional da Fotografia, que costumava ser realizada na semana que compreendia o 19 de agosto [denominado Dia da Fotografia, em lembrança ao anúncio oficial da invenção da daguerreotipia feito por François Arago em Paris, em 1839], só conseguiu ser realizada entre 21 e 25 de outubro, após múltiplos e quase incontornáveis percalços. Por outro lado, após duas décadas de silêncio e opressão, os fotógrafos estavam ávidos por discussões públicas dos temas mais candentes do momento, tais como a regulamentação da profissão; a instituição de uma tabela nacional de preços mínimos; a taxação da importação de equipamentos e materiais de consumo; a organização das agências independentes; a reestruturação dos sindicatos de jornalistas e das associações de fotógrafos… Em suma: uma série de questões práticas e imediatas que às vezes entravam em conflito com as discussões de caráter estético e/ou criativo.
Alheio a toda essa trepidação, concentrado em seu tema, Alair Gomes começou sua fala com o mito da caverna de Platão que, com as sombras do mundo externo projetadas em seu interior, pode ser considerada a primeira descrição de uma câmara escura, ao menos no mundo ocidental. E de lá ele veio vindo, numa lenta e enfeitiçadora evolução que conduziu gradativamente a plateia ao tema em pauta: “Aspectos da linguagem fotográfica”. Um silêncio invulgar, luminoso e sutil, permaneceu no ar durante toda sua locução, transportando a todos para aquela dimensão eterna e inconsútil da arte em que Alair Gomes vivia. Uma experiência única e epifânica que certamente ajudou a despertar ou consolidar as vocações fotográficas de diversos dos presentes.
Por sorte, quando evoquei o ocorrido naquele sábado de maio último no auditório do Sesc Boulevard, havia na plateia dois ou três fotógrafos “das antigas”, que estiveram presentes na palestra de Alair Gomes na Semana de Fotografia de 1985, e eles confirmaram meu relato. Caso contrário eu mesmo ficaria com a impressão de que havia romanceado a história. Mas em se tratando de Alair isso não seria necessário, pois em seu trabalho e em sua vida mito e magia se entrelaçaram com poesia e tragédia em uma mistura única e desconcertante, como um poema de Konstantinos Kaváfis.///
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[1] LINS, Letícia. “Licença maternidade para o pai: Servidor público de Recife conseguiu benefício de seis meses ao ter o segundo filho com companheiro”. Rio de Janeiro: O Globo, p. 35.
Pauta que mereceu destaque também na capital paulista: CARVALHO, Daniel. “Servidor gay obtém licença-paternidade sem apelar à Justiça”. São Paulo: Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano 2, p. 6.
[2] Matéria não assinada: “Parada gay altera trânsito amanha a partir das 13h em Icaraí”. Rio de Janeiro: O Globo, Caderno Niterói, p. 8.
[3] Nem daria para ser, quando se sabe que uma pesquisa produzida pelo Grupo Gay da Bahia indica que o Brasil continua sendo o “campeão mundial em homicídios de homossexuais”. Em 2013, 312 homossexuais, lésbicas e travestis foram assassinados, o que corresponde a um assassinado a cada 28 horas.
[4] É interessante assinalar que esta exposição, realizada sob os auspícios do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte, teve o mérito de destacar o trabalho de artistas que atuavam na confluência da fotografia e das artes visuais, como Iole de Freitas, Vera Chaves Barcellos, Hugo Denizart e Mário Cravo Neto.
Pedro Afonso Vasquez é escritor, fotógrafo, curador e editor de não-ficção da Editora Rocco. Na década de 1980, foi responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte e do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
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