Fome de ver
Publicado em: 26 de fevereiro de 2014Entre 1971 e 1979, o fotógrafo japonês Kohei Yoshiyuki fotografou a atividade noturna em três parques de Tóquio: Shinjuku, Yoyogi e Ayoama. As fotos mais perturbadoras expõem casais heterossexuais entrelaçados em encontros furtivos, jogados na grama ou atrás de arbustos, enquanto uma matilha de voyeurs os espreita e cerca, como hienas ao redor de animais feridos, aguardando o melhor momento para o ataque.
Captadas no escuro, graças ao recurso de um filme especial e flash infravermelho, que permitiram ao fotógrafo permanecer não identificado entre seus “modelos” ou “presas”, as imagens constituem a parte principal da exposição O parque (2007), apresentada na galeria Yossi Milo, em Nova York. Uma segunda parte, menos impressionante, é composta de fotos de homossexuais (aparentemente menos vorazes que seus colegas heterossexuais, talvez pela ausência dos voyeurs) em Ayoama e se completa com uma série de imagens que revelam detalhes íntimos de cenas amorosas captadas por câmeras de vídeo em quartos de hotel. O que vemos aqui é a primeira parte: as fotos que representam e restituem, em princípio (mas só em princípio), a relação não consentida que sustenta e define o ato do voyeur.
Yoshiyuki era um fotógrafo comercial em Tóquio, no início dos anos 1970, quando, do alto do apartamento de amigos, percebeu pela primeira vez a atividade noturna em Shinjuku. Passou a frequentar os parques à noite. Ficou amigo dos voyeurs, fez-se passar por um deles, como se compartilhasse os mesmos interesses, sem deixá-los perceber que carregava uma pequena câmera.
As fotos foram expostas pela primeira vez em 1979, na galeria Komai, em Tóquio, no escuro e em tamanho real. Cada espectador recebia uma lanterna ao entrar na galeria. O fotógrafo queria reproduzir a escuridão do parque e a experiência do voyeur. Queria que o espectador examinasse as fotos de perto, reconhecendo os corpos por partes, como os voyeurs retratados nas fotos, cercando as vítimas. As ampliações foram destruídas depois da exposição, e as imagens só voltaram a despertar a atenção (dessa vez também de alguns dos principais museus americanos, que as incorporaram a seus acervos) 25 anos depois, quando o fotógrafo decidiu fazer uma nova tiragem.
Por ironia do acaso, tive de passar por uma cirurgia de última hora no olho esquerdo na mesma semana em que havia programado para escrever este texto sobre voyeurismo. A operação me deixou visualmenteinoperante por uns dias, o suficiente para que uma amiga psicanalista tivesse tempo de me enviar o texto de Freud, de 1910, sobre a “perturbação psicogênica da visão”, que, com o perdão do trocadilho, me fez ver as fotos de Yoshiyuki com outros olhos.
No texto, Freud cita Friedrich Schiller: “Todos os instintos orgânicos que atuam em nossa mente podem ser classificados como fome ou amor”. Está falando da oposição, da queda de braço entre os instintos de autoconservação do indivíduo (fome) e os instintos sexuais (amor) pelo controle dos mesmos órgãos – a boca, por exemplo, que, além de órgão da comunicação e da nutrição, funções básicas para a sobrevivência, também é uma zona erógena. É dessa oposição que nascem a repressão e as neuroses. A cegueira histérica, por exemplo, nada mais é do que a vingança do instinto sexual contra uma repressão por assim dizer “exagerada” que lhe é infligida pelo instinto de autoconservação do eu, quando um órgão que deveria servir a uma finalidade da percepção sensorial (no caso, o olho) “começa a se comportar como um genital”.
Na “Introdução ao narcisismo”, de 1914, Freud escreve que a teoria da libido (que trata da satisfação) repousa sobre essa suposta oposição entre os instintos sexuais e a autoconservação do indivíduo. “O indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra – ou, de todo modo, sem – a sua vontade.” Os instintos o levam a fazer o que ele não quer, mas também a achar que faz porque quer. Os instintos seguem caminhos tortuosos na luta para convencer o indivíduo a participar dessa corrente maior da qual ele é apenas um elo e cujo fim é a autopreservação e a reprodução da espécie. Mas os meios mascaram os fins, e o que era artimanha muitas vezes acaba tomando a dianteira sobre o objetivo. Assim, o homem é constituído por satisfações que não visam apenas à autoconservação. Nenhum fumante, por exemplo, acredita que o cigarro sirva para sua autopreservação, e nem por isso para de fumar. Da mesma forma, o voyeurismo é um dos efeitos colaterais dessa guerra entre os instintos, um desvio, uma perversão. O voyeur projeta e constrói no objeto do desejo o que bem entende, o seu “autorretrato” inconsciente. Ou melhor, ele transforma o desejo em objeto, eliminando todo contato físico e descartando todo fim reprodutivo. É o próprio desejo que ele espreita, encantado.
Logo se veem as consequências em cascata de fotografar voyeurs à noite, num parque, para que em seguida espectadores possam perscrutar essas cenas em galerias, catálogos e museus.
A propósito do voyeurismo, Jacques Lacan vai retomar, no célebre “Seminário 11”, a ideia que Freud apresenta em “Os instintos e seus destinos”, de 1915: que os instintos estabelecem um circuito com o objetivo de satisfazer um estímulo, mas não atingem o objeto do desejo, apenas o contornam para voltar ao sujeito. Os instintos são constantes, de modo que satisfazer totalmente e zerar um estímulo (o que seria, em princípio, seu objetivo) também significaria paradoxalmente o seu fim, a interrupção do circuito. É por isso que o instinto apenas contorna o objeto do desejo. O estímulo não pode ser totalmente satisfeito. Para que não se esgote na satisfação, o instinto precisa circular. O instinto de olhar, por exemplo, “é autoerótico no início de sua atividade, pode ter um objeto, mas encontra-o no próprio corpo”, escreve Freud.
Lacan vai além ao dizer, sobre o voyeurismo, que “o objeto é o olhar”. Mas esse olhar só se revela quando o voyeur é pego em flagrante: “O olhar é esse objeto perdido, e repentinamente reencontrado, na conflagração da vergonha, pela introdução do outro. Até aí, o que é que o sujeito procura ver? […] O que o voyeur procura e acha é apenas uma sombra, uma sombra detrás da cortina. Aí ele vai fantasiar não importa que magia de presença, a mais graciosa das mocinhas, mesmo que do outro lado haja apenas um atleta peludo. […] O que se olha é aquilo que não se pode ver. […] A fantasia é a sustentação do desejo; não é o objeto que é a sustentação do desejo.”
E é a súbita consciência da presença de uma testemunha que revela ao voyeur o circuito do seu instinto, o olhar, e lhe permite afinal constituir-se por um instante em sujeito. É uma revelação análoga que as fotos de Yoshiyuki fazem ao espectador, pego de surpresa pelas imagens que representam seu olhar refletido na voracidade dos voyeurs.
Para o voyeur, a transgressão está no ato de ver. E as fotografias de Yoshiyuki nos põem no lugar do voyeur, num jogo de espelhos que transforma o objeto da nossa observação em nosso retrato, revelando o princípio narcisista do voyeurismo. O que torna essas imagens tão mais desconcertantes é que elas funcionam também como testemunha e consciência do nosso olhar. Somos surpreendidos na espreita da espreita.
Quem vê corre o risco de ser visto. As fotos de Yoshiyuki nos perturbam porque desnudam esse lugar que nos parecia protegido e seguro. Elas fazem dos voyeurs as vítimas da objetiva, do olhar da câmera, e assim põem o espectador na pele do voyeur no momento do flagrante. Diante dessas fotos, o espectador também é visto e está nu. É como se elas fossem testemunhas do olhar do espectador. São elas que o observam a observá-las.
O circuito do voyeurismo depende, portanto, de um ponto de vista inconsciente e protegido (mas nem por isso menos arriscado) que a presença de um terceiro vai romper e revelar à consciência. O voyeurismo pressupõe a invasão e a preservação simultâneas e complementares da privacidade (alheia e própria, respectivamente). Tudo tem a ver com um jogo de espelhos, uma dialética entre ver e ser visto como posições vulneráveis, transgressoras e de risco. O voyeur não pode ser visto, assim como sua presa, cuja intimidade ele invade com o olhar. Mas esse é também um jogo de denegações, porque a transgressão, e a excitação que dela decorre, só existe onde há risco – nesse caso, risco de ser visto. Não seria descabido pensar no ato do voyeur como um desejo dissimulado (e espelhado em sua presa) de ser visto, como nos jogos infantis em que se esconder é uma forma de chamar atenção para si mesmo.
A própria ideia de privacidade como um direito a ser defendido ganhou corpo sob a ameaça da fotografia no final do século 19. Por outro lado, era um ponto de vista preservado e aparentemente seguro que garantia a revelação do mundo à fotografia feita fora dos estúdios, quando a câmera ganhou as ruas e passou a depender da inconsciência e da naturalidade dos objetos fotografados para representar o mundo como ele é, sem o artifício da pose. Nesse sentido, voyeurismo e retrato só podiam trilhar caminhos divergentes. Um é inconsciente; o outro, consciente. As fotos de Yoshiyuki subvertem essa dicotomia, fazendo o “retrato” da inconsciência do espectador por meio do flagrante diferido dos voyeurs.
Num texto incluído no catálogo da exposição, o crítico Vince Aletti escreve que “é como se o fotógrafo tivesse entrado na cabeça de um sonhador e gravado as aparições inconstantes, bruxuleantes, antes que elas fugissem de volta para o subconsciente profundo”. Na verdade, a cena é o próprio “subconsciente profundo”, pois ela registra uma ação que só pode ocorrer sem a consciência do registro e do olhar. O que Yoshiyuki registra é a inconsciência do olhar, o desejo em ação. Como por milagre, graças ao filme e ao flash infravermelho, o flagrante não acontece na hora em que é feita a foto (os voyeurs não se dão conta de que estão sendo fotografados, de que há uma testemunha, e atribuem a luz eventual do flash aos faróis dos carros que passam). Assim o flagrante é postergado e transferido para a consciência do espectador. Nós é que somos pegos em flagrante diante da foto. Somos, ao mesmo tempo, o voyeur e a terceira pessoa, a testemunha.
Tudo isso já seria fascinante se não houvesse ainda um elemento desestabilizador, um ruído, pondo todo o sistema sob suspeita. Além do ponto de vista protegido, o voyeur precisa de uma relação não consentida para agir e transgredir. Pode eventualmente até pagar para ver (como nos peep-shows), mas seu desejo se alimenta mesmo é da inconsciência do objeto observado. É o contrário da pornografia, que depende de um consentimento remunerado. Por isso, voyeurismo e exibicionismo não podem se completar (embora um leve ao outro, havendo uma passagem natural da atividade de olhar à passividade de ser olhado, assim como amar leva a querer ser amado). Mas não teria nenhuma graça nem faria nenhum sentido para o voyeur espreitar quem quer ser espreitado. O voyeurismo depende do não consentimento da vítima.
E o que é que acontece nas fotos de Yoshiyuki? Num primeiro momento, a câmera simplesmente assume o ponto de vista do voyeur, sempre preservando a identidade (o rosto) dos indivíduos, dos corpos fotografados. Não há nada entre a objetiva e os casais no parque, que a ignoram. Aos poucos, entretanto, entram em cena os voyeurs, cercando os casais, atrás das moitas, esgueirando-se pelo chão, igualmente inconscientes da presença da câmera. E, de repente, quando menos se espera, começam a tocar as vítimas! E toda a lógica do não consentimento desmorona, pondo em dúvida, por tabela, a própria ignorância desses personagens em relação à presença do fotógrafo.
Afinal, que gente é essa? Quem são esses casais que se deixam observar e tocar? E quem são esses voyeurs que não estão aí para ver, não se contentam com a visão – ou simplesmente não veem –, mas precisam tocar os objetos, como cegos? E, como se não bastasse agir em grupo sem nenhum pudor (como se o voyeurismo fosse uma atividade social, e não individual), não percebem a presença da câmera! Que voyeur é esse que tateia como cego, em grupo? Que voyeur é esse cujo objeto não é mais o olhar?
Se o voyeur se alimenta do não consentimento da vítima, o exibicionista, em contrapartida, tira excitação de uma relação de consentimento com o espectador. O toque não tem nada a ver com voyeurismo. Não há correspondência nem complementaridade entre o desejo do voyeur e o do exibicionista, embora nada impeça que o voyeur se torne exibicionista e vice-versa. Para que se instaure o circuito do instinto, porém, o objeto não pode corresponder à fonte do desejo. Para o voyeur, é preciso que não haja conivência do objeto observado para que o desejo possa circular: o objeto é o próprio olhar. O que essas fotos mostram é outra coisa (e talvez não seja por acaso que Lacan considerasse os japoneses não analisáveis). Há uma conivência ambígua entre o voyeur e seu objeto, que, no fundo, se revela um exibicionista dissimulado em vítima. O voyeur toca sua presa, e ela continua a ignorá-lo, fingindo que não o vê (em entrevista ao jornal New York Times, Yoshiyuki revelou que, na realidade, esses contatos nem sempre terminavam bem).
Com o advento da internet, dos sites de relacionamento, das redes sociais e do sexo virtual, o fetiche da autoexposição e do narcisismo foi amplificado para dimensões mundiais. O exibicionismo se impôs ao voyeurismo. Os reality shows (onde os participantes não só consentem em exibir uma pretensa intimidade ou privacidade, mas são selecionados, “contratados”, para isso) confirmam essa hegemonia. A despeito das aparências, é um mundo que nada tem a ver com o voyeurismo. Não pode haver flagrante onde tudo é consentimento. É um mundo mais próximo de uma simulação da pornografia, onde já não há lugar nem para a privacidade nem para a transgressão.
Tanto o sexo virtual como a rede social e o reality show têm a ver com a ideia de celebridade levada ao paroxismo, igualada, pelo excesso e pela generalização, a seu oposto, o anonimato. Brincar de celebridade (autopublicar-se, autoexibir-se, autopromover-se, essa redundância reflexiva) equivale a se vender, a encarnar a puta ou o pornógrafo, a expor as próprias fantasias em público, a deixar de ser sujeito para se tornar objeto. A excitação vem do consentimento.
E é como se as fotos de Yoshiyuki anunciassem a passagem de um mundo a outro, da fome de ver à fome de mostrar, de um mundo da transgressão para a sociedade do consentimento generalizado. Ninguém é pego em flagrante, porque todo mundo se entrega antes, mostra antes. Não faz mais sentido falar em vigilância (nem combatê-la, nem denunciá-la, o que não significa que ela não seja mais eficaz que nunca) numa sociedade tautológica, de autoexposição voluntária. A transgressão foi anulada pela banalização do consentimento coletivo. É como se toda a sociedade de repente fizesse a passagem de que fala Freud, da atividade do voyeurismo para a passividade do exibicionismo. Afinal, todos têm seus minutos de celebridade, como previu Andy Warhol, e todos têm seus minutos de puta, com a desvantagem de, em geral, não receber nada por isso. E o mais perverso desse mecanismo é que a promessa de celebridade massificada resulta sempre em mais anonimato, na indiferenciação das diferenças e das individualidades. A rede vende a ilusão de que a exceção é a regra, e assim anula a exceção.
Se a constituição do sujeito passa mesmo, como diz Lacan, pela surpresa de ser pego em flagrante, por ser visto desejando, sem seu consentimento, essa passagem se torna inoperante num mundo em que tudo é consciência prévia, onde o voyeurismo se tornou uma atividade social, de grupo, onde já não se cultiva a privacidade e onde tudo já está à vista de saída – embora por isso mesmo nada seja revelado. Na sua excepcionalidade, a tragédia do estudante gay que se suicida depois de ver suas imagens, gravadas à revelia por um colega de quarto durante um ato sexual e em seguida divulgadas na internet, só confirma a violência extrema desse mundo de autoexposição absoluta, no qual a consciência (o flagrante e a revelação) passa a ser insuportável. O flagrante acarreta a consciência de si, a responsabilidade e a culpa. Nada disso é possível quando a exposição coletiva em rede e o narcisismo massificado vêm obliterar a própria ideia de exceção e desvio individual. Os voyeurs de Yoshiyuki agem em grupo. E não deixa de ser irônico que o sexo virtual (típico desse mesmo mundo) torne mais arriscado e mais obsceno mostrar o rosto (e os olhos) do que o próprio sexo. Mostrar o rosto aí significa entregar ao público (ao olhar do outro) o pouco que resta de individualidade sob controle privado (do sujeito) num mundo de exibição generalizada, mas também, paradoxalmente, restabelecer o flagrante (ainda que pela contradição em termos de um flagrante deliberado) onde já não é possível nenhum flagrante. Revelar o olhar é a única transgressão (suicida, talvez) que resta quando tudo foi posto à vista. É romper com a passividade cega de ser visto para poder voltar a ver. ///
Kohei Yoshiyuki nasceu em Hiroshima, em 1946. Trabalhou para a filial japonesa da agência de notícias Keystone de 1974 a 1978, de onde saiu para ser fotógrafo freelancer.
Bernardo Carvalho (1960) é escritor e jornalista. Publicou, entre outros, O filho da mãe (2009) e Nove noites (2002). É autor da peça BR3, encenada pelo Teatro da Vertigem.
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