Em casa
Publicado em: 2 de setembro de 2014RAUL GARCEZ (1949-87) fotografou o conjunto habitacional Várzea do Carmo, o mais antigo de São Paulo, entre outubro de 1979 e abril de 1980. Suas imagens apresentam a intimidade dos moradores numa rara combinação de olhar antropológico e investigação formal. Texto de Antonio Risério.
O conjunto habitacional Várzea do Carmo foi projetado em 1943 por Attilio Corrêa Lima para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, segundo os melhores princípios do modernismo urbanístico – poucos ornamentos, amplo espaço entre os prédios e áreas de lazer públicas.
Para abrigar a crescente classe média industrial paulistana, estavam previstos 107 edifícios, com 6.918 apartamentos. Ao final, foram erguidos apenas 22 prédios, com 602 unidades.
O conjunto ganhou relevo na história da habitação popular por representar tanto as ambições de grandeza quanto os impasses da política habitacional de Getúlio Vargas.
Raul Garcez se aproximou dos moradores através do centro recreativo local, erguido por eles para abrigar um clube de bocha .
Garcez produziu 780 imagens. Apresentou 42 em sua única exposição individual, intitulada Conjunto habitacional da Várzea do Carmo (1980), na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Em casa
por Antonio Risério
SÃO PAULO É UMA CIDADE que surpreende sempre. Falo isso em termos objetivos, não a partir do clichê. Claro que toda cidade surpreende sempre. A cidade é, por definição, o lócus do acaso. O espaço dos acontecimentos que não foram exatamente previstos. O lugar das coisas não corriqueiras e mesmo incaracterísticas. Mas não é a isso que me refiro. Quero dizer que São Paulo me surpreende sempre tanto em sua história social e cultural quanto na materialidade da sua tessitura urbana.
Um exemplo claro disso, na minha cabeça, é a Vila Nova Conceição. Quando fui morar pela primeira vez em São Paulo, na passagem de 1974 para 1975, me assentei num endereço ótimo: rua Purpurina, número 1, na Vila Madalena, antigo bairro do Risca Faca, com seus botecos e seu campo de futebol. Era uma casinha branca, térrea, quase de esquina, com um quintalzinho mínimo. Anos adiante, a Vila Madalena explodiu, verticalizou-se, encheu-se de bares, lojas etc., num processo como o que comecei a ver recentemente na Vila Mariana. Mas o que quero dizer é que, quando fui morar na Vila Madalena, a Vila Nova Conceição, hoje o bairro com “o metro quadrado mais caro” de São Paulo, era uma zona praticamente rural. Quase uma fazenda.
No meado da década de 1970, a Vila Nova Conceição era um lugar curioso dentro de São Paulo. As pessoas sabiam do Ibirapuera, mas não exatamente do bairro hoje célebre. A Vila Nova Conceição parecia então coisa do interior, de dias tranquilos, de tempos distantes. Um lugar cheio de árvores, por onde passava o Uberaba, um riozinho alegre sobre o qual construíram a atual avenida Hélio Pellegrino. Um lugar de casarões e chácaras, com um mercado onde era possível comprar leite e frutas de produção local, onde podíamos ver o gado pastando. Mas não se trata só de desenho urbano. São Paulo, como disse, me surpreende também na dimensão de sua história social e cultural. E é aqui que tenho de encarar a velha Várzea do Carmo.
Na passagem do século 19 para o século 20, a cidade de São Paulo é vista basicamente em duas dimensões. De uma parte, é cidade que se moderniza, em termos europeizantes. De outra, é tomada por marés de imigrantes – sobretudo italianos. No primeiro caso, o que temos, mal acabada a Guerra do Paraguai (1864-70), são alterações físicas significativas na paisagem paulistana. Um processo acentuado de reconfiguração urbana, estendendo-se das últimas décadas do século 19 às primeiras do século seguinte. É o período em que São Paulo dá um verdadeiro salto, passando de assentamento citadino de feitio rústico, provinciano, a “capital do café”. Em Formação histórica de São Paulo (1954), Richard Morse fala, a propósito, de um “surto de crescimento físico e econômico” que apagou pelo menos os traços exteriores do passado colonial da cidade. O que se impõe, agora, é a São Paulo da avenida Paulista (1891) e do viaduto do Chá (1892), com sua estrutura metálica fabricada na Alemanha.
De outra parte, como disse, São Paulo se mostra como cidade de imigrantes, cheia de japoneses, judeus etc. Mas eram principalmente os italianos que tomavam conta da cidade, davam o tom do operariado em formação, disseminavam o anarquismo (falavam até mesmo de “amor livre”), ascendiam socialmente e até mesmo começavam a gerar riquezas. A villa do empresário Siciliano na avenida Paulista do final do século 19 e a construção do edifício Martinelli, já em fins da década de 1920, são símbolos visíveis, ostensivos até, desse processo que modificou nosso desenho demográfico e transformou para sempre a configuração cultural brasileira.
No meio disso tudo, a Várzea do Carmo nos fala de uma realidade diferente. Quando olhamos em sua direção e começamos a falar de sua fisionomia e de sua alma, a sensação é de que não estamos tratando de São Paulo, mas de outra cidade. A Várzea do Carmo surge como o avesso de Campos Elísios, primeira área residencial paulistana à europeia. E não tem nada a ver com Francisco Matarazzo e suas “indústrias reunidas”, nem com imigrantes italianos mais pobres. No entanto, não se trata de outra cidade. A Várzea do Carmo é São Paulo. A questão é outra. É que São Paulo não é cidade singular. É plural. Feita de várias. É cidade múltipla e móvel.
Jorge Americano escreve, em São Paulo naquele tempo (1895-1915): “A Várzea do Carmo (hoje parque D. Pedro II) era alagadiça no tempo das chuvas. Na seca, entre o Gasômetro e o Carmo, dois braços do Tamanduateí formavam ilha. Um desses é o leito atual, e o outro corria paralelo à rua 25 de Março, até juntar-se ao primeiro, ali pela altura do atual mercado. Da rua Glicério e de toda a encosta da colina central da cidade, desciam lavadeiras de tamancos, trazendo trouxas e tábuas de bater roupa. À beira d’água, juntavam a parte traseira à parte dianteira da saia, por um nó no apanhado da saia, a qual tomava aspecto de bombacha. Sungavam-na pela parte superior, amarravam-na à cintura com barbante, de modo a encurtá-la até os joelhos ou pouco acima, tomando agora o aspecto de calção estofado.”
E isso me faz lembrar das lavadeiras da Cidade da Bahia, na minha infância. Das lavadeiras do rio da Prata, na Buenos Aires retratada por José Luis Lanuza em Morenada. Das lavadeiras que rebrilham ainda no romance moderno, com James Joyce e William Faulkner. Lavadeiras que são personagens fundamentais de qualquer história da mulher no Brasil. Mas não eram só as lavadeiras. A Várzea do Carmo era lugar de gente pobre e mestiça, de pretos e mulatos, que mais sugeria a Bahia ou o Rio do que a São Paulo urbano-industrial italianizada. E dizem que foi ali que aconteceu a primeira partida de futebol realizada no Brasil, em abril de 1895, com a bola de couro trazida por Charles Miller. Nós nos esquecemos de quase tudo isso, assim como dos rios e riachos da cidade, que só agora voltam à nossa memória.
A Várzea do Carmo não pode ser esquecida. Já foi deletada do tecido urbano. Foi aterrada e recomposta. Mas não deve ser abolida da história social paulistana. Ali ficava um espaço que contrariava frontalmente a visão oficial que se imprimia sobre a cidade. Um espaço que era ostensivamente “primitivo”, com suas pretas fogosas e seus curandeiros, no contexto de uma cidade que se metropolizava e se queria moderna e higiênica, expulsando putas e mendigos da região do Theatro Municipal. Espaço de mulatos pobres, com suas práticas próprias de cultura. Espaço de excluídos que, mais uma vez, seriam enxotados, para que o poder público ali erguesse um parque. Enfim, o projeto era extirpar aquele antro, avesso do asseio físico e moral que as classes privilegiadas de São Paulo queriam para a cidade. E foi o que fizeram, aterrando e ajardinando o local, destruindo o Mercado dos Caipiras, banindo pretos e caboclos vendedores de ervas.
E é por aqui que vou olhando as belas fotos de Raul Garcez, que falam já de um outro mundo, do conjunto habitacional erguido sobre o que foi aterrado. Não sou crítico de arte, mas não posso deixar de dizer umas duas ou três coisas sobre Garcez. Acho sempre interessante lembrar que ele se formou em engenharia pela Escola Politécnica da USP. Porque ele ficou para nós como fotógrafo – mas trouxe para sua fotografia o sentido construtivo do engenheiro, celebrado, aliás, na poesia de João Cabral. Ao mesmo tempo, suas composições encantam pela delicadeza. Dele, podemos dizer que se movia nos planos semântico e sintático da criação: tinha o foco social e o conhecimento da linguagem fotográfica. Daí ter sido um pioneiro da documentação e, no mesmo lance, um fotógrafo sutil e rigoroso, de alto poder expressivo.
Sobre isso, o fotógrafo e professor João Luiz Musa escreveu com perfeição: “[Garcez] tinha interesse no desenvolvimento dos temas ligados à realidade brasileira e, ao mesmo tempo, uma forte intenção de conhecer o quanto a fotografia tinha avançado como linguagem visual: era um pesquisador sistemático, um artista. Essa atitude se refletiu no modo como encaminhou seus trabalhos fotográficos: levantava técnicas e avaliava o material de campo ampliando-o à exaustão e sempre querendo se aproximar mais de seu objeto de estudo: o espaço, as pessoas, suas relações sociais. Ao longo dos anos essas preocupações se transformaram em diversos ensaios, e presenciamos alguns dos mais belos e sérios trabalhos que a fotografia brasileira nos forneceu.”
É o que vemos no ensaio fotográfico focalizando a Várzea do Carmo, que Garcez realizou entre 1979 e 1980. Mas, olhando esses espaços e essas pessoas que Garcez fotografou, o que primeiro me ocorre dizer é que parece que a história não perdoa. Parece que as personagens de Garcez herdaram o karma da expulsão da população antiga e da destruição do antigo lugar. Uma gente até bonita, mas muito, muito triste. A gargalhada mestiça já não parece estalar entre aquelas paredes, no meio daquelas pessoas. Mesmo as crianças nos olham com um olhar perdido, desconsolado, triste. A alegria do lugar se foi. As coisas sugerem amargura. Isolamento. Solidão. Um desamparo essencial diante de tudo. Mas, sobretudo, tristeza. Não é mais o povo mestiço e barulhento. É uma classe média que não parece ter encontrado o seu lugar. Classe média de baixa renda. Cafona. Apática. Descolorida. Ainda assim, com traços de alguma beleza esconsa, recôndita, perdida. O que fazer com aquelas crianças? Em que labirintos ou mormaços longínquos elas vivem?
A pobreza não é necessariamente triste. Pelo contrário, a Bahia e o Rio são exemplos de uma alegria maior do que a miséria. São Paulo também, no colorido fortemente nordestino de sua periferia, rosário de bairros alegres e vitais em torno de um “centro expandido” mais sisudo, reprimido, controlado. Mas aqui, nas fotos quase comoventes de Garcez, o que vemos é uma tristeza pobre, uma pobreza triste. Muito triste. Onde todas as pessoas parecem ter a mesma idade: 100 anos de solidão. ///
Raul Garcez (1949-1987) formou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica da USP. Entre os anos 1970 e 1980, fez parte da turma de fotógrafos que se reuniam para trocar informações e experiências no laboratório de fotografia da FAU-USP.
Antonio Risério (1953) nasceu em Salvador. É poeta, tradutor, antropólogo ensaísta e músico. Na década de 1970, editou várias revistas de poesia experimental. Integrou os núcleos de estratégia e criação das duas campanhas de Lula à presidência da República. Escreveu, entre outros, A cidade no Brasil (2012). Tem feito roteiros para cinema e televisão.
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