“A revelação da sombra”, texto de Teixeira Coelho sobre obra que é capa da ZUM #8
Publicado em: 15 de maio de 2015
Regina Silveira, a revelação da sombra (1981)
por Teixeira Coelho
Um certo poeta uruguaio, talvez tensionado pela herança atávica das estranhices que rondam a condição latino-americana, anotou que o sentido estético surgia antes de coisas como o encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de operação. Numa outra latitude, Einsenstein percebia maravilhado que o sentido na escrita chinesa se formava pela justaposição entre signos independentes: uma faca + um coração = tristeza; uma boca + um pássaro = cantar. E viu nisso o princípio de sua estética cinematográfica: o sentido como função de uma aproximação, de um conflito, uma colisão entre signos autônomos: o sentido surgindo de uma incongruência resolvida esteticamente.
O horizonte destes trabalhos com sombras de Regina Silveira é essa montagem, na compreensão específica de jogo de aproximações e colisões de signos de proximidade insuspeitada. Será pretensão inútil, porém, tentar desmontar seus ideografos: vejo uma bolsa e a sombra de uma serra: bolsa + sombra de serra = quê? Telefone + sombra de garfo = ? A incógnita é tanto mais movediça quanto de um lado há o signo próximo de um objeto (bolsa) e, de outro, a sombra distanciada do signo do objeto: duas dimensões distintas em queda livre na direção de um terceiro significado virtual.
Toca-se em que, com essa somatória? Pela tradição, todo produto estético desdobrava-se em duas vertentes, conteúdo e forma. Mas há uma terceira margem, a da matéria: aquilo que é a substância primeira do ato poético e que receberá num segundo momento uma certa forma que por sua vez se reveste de um conteudo exteriorizado. Matéria não é forma, nem conteúdo. É a mola de ambos, o poético em estado extremado: a ideia do poético, a sensação primeira do poético. Os ideografos de Regina apontam nessa direção. Não é o conteúdo que está em jogo, não há interesse por uma eventual mensagem descritível em termos lógicos convencionados; tão pouco interessa a forma exterior. A proposta é evidenciar a matéria do ato poético: o momento de contato direto com algo apenas virtual: a descoberta poética, agora, de um possível. O contato, agora, com um virtual: a resultante não está, aqui mas se percebe sua presença. Jogo de espelhos: imagem indefinida rebatendo uma sombra refletindo uma imaginação de algo que pode existir. Esse algo não está aqui, mas sua presença é palpável. Inefável, palpável: jogo de descoberta.
Jogo arquitetado com rigor: a base é a intuição mas recusa-se a facilidade. O provocador (nome do que insistem em designar por artista) arma seu jogo: é uma construção, uma artificialidade extrema levantada para se chegar a uma sensação inconstructa. Novamente, a colisão: o artifício e o informe. É que não interessa a competência na construção, nem um saber fazer, nem o produto acabado. O produto não está acabado, não é, nem um produto novo, não é o novo que importa: interessa é o desconhecido a preparação, a construção do desconhecido. Não se está no surreal, no hiporreal: tudo se passa sobre o real: no virtual.
E a sombra nas fotos de Regina não estão apenas ali onde são vistas, não são aqueles traços do garfo pente martelo serra. A sombra é tudo, a sombra é o conjunto, a sombra é princípio e a mola do jogo. Sombra: o duplo, o outro. Função da sombra: revelar, mostrar a fundo o que há para ver (E revelar é velar de novo). A sombra deriva, escapa do lugar, se estende, abarca. Está ali, está em outro lugar. Está na obra e no produtor da obra – e no espectador. A sombra final cai sobre o espectador, é a sombra dele. A sombra é o espectador///
Teixeira Coelho (1944) foi diretor do MAC-USP e curador-chefe do Masp. Autor de A cultura e seu contrário, entre outros.
Texto originalmente escrito para o lançamento da edição de artista da série Enigmas, versão cartão-postal, publicada pela Poesia & Arte, 1981.
IMAGENS: Enigmas (1981), fotogramas de Regina Silveira. Coleção Museu de Arte Moderna de Nova York / Fundo Latino-Americano e Caribenho. CORTESIA MOMA.