Para onde foi a senzala?
Publicado em: 11 de fevereiro de 2015
Em dezembro de 2013, Casa-grande & senzala, o clássico de Gilberto Freyre, completou 80 anos. A obra recebeu inúmeras críticas e revisões nas décadas subsequentes a sua primeira publicação, mas permanece como nosso ensaio sociológico mais influente e, sobretudo, como a mais duradoura das interpretações da sociedade brasileira. Na proposição de Freyre, a casa-grande e a senzala formariam uma dualidade essencial, fundadora não apenas da sociabilidade privada dos brasileiros como da cultura política do país. As duas construções, vizinhas, seriam simultaneamente antagônicas e complementares, assim como os senhores e os escravos que as habitavam.
Como era de esperar, preparou-se uma bela edição comemorativa. Na capa, a fotografia de uma casa-grande: sob um céu crepuscular, ela se ergue magnífica, glamourosa, com iluminação monumental, pronta para servir de locação para um filme ou uma novela. Mas há algo de inquietante nessa foto. Para onde teria ido a senzala – ou a imagem do escravo – que costumava ilustrar as dezenas de edições anteriores? Por que os editores sentiram-se à vontade para subtrair da imagem uma das duas estruturas complementares – tão complementares que Freyre procurou enfatizar a relação com o emprego de um e comercial? Quem os autorizou?
O que, nessa fotografia, os autorizou? Buscando respostas para essas perguntas, lembrei-me do catálogo de uma exposição realizada em 1982, em João Pessoa, patrocinada pelos governos municipal e estadual, com o apoio da Universidade Federal da Paraíba. Obra de ficção histórica com fotos encenadas como em uma fotonovela, chamava-se Engenhos e senzalas. Foi o próprio Freyre, então com 82 anos, quem escreveu um prefácio em que exaltava a habilidade do fotógrafo, que, por meio de sua “imaginação romântica belamente avivada pelo mais belo dos realismos”, com maestria havia despido “equivalentes de sinhazinhas e mucamas” e as apresentara “em várias posturas de completa e nada pornográfica nudez”. De fato, nessa versão fotográfica, igualmente glamourosa, do livro de Freyre, a nudez e o erotismo não selecionam matizes. Na hora do jantar, o priápico proprietário mal pode esperar pelo fim da refeição para despir a esposa. Enquanto isso, o filho mais velho, futuro senhor daquelas terras, encontra-se com sua escrava favorita, com quem se diverte no quarto. No dia seguinte, é a própria senhora quem se faz banhar por suas mucamas, preparando-se para ver o amante durante a ausência do marido. Este, por sua vez, faz da fiscalização do trabalho dos cativos apenas um pretexto para visitar a amante negra. Na senzala espaçosa e bem iluminada, concebida como um harém, as escravas já estão despidas, e ele pode ter um encontro romântico com o objeto maior de seu desejo.
Engenhos e senzalas, 1982, interpretação fotográfica do clássico de Gilberto Freyre feita por Luiz A. Bronzeado
Essa curiosa narrativa, que muitos poderiam considerar uma aberração histórica e antropológica, ajuda a iluminar o lento processo de transformação da senzala no imaginário brasileiro. Duas décadas antes, as recepções carnavalescas da obra de Freyre já haviam sinalizado esse movimento. Em 1962, a Mangueira fez de Casa-grande & senzala tema de um desfile considerado memorável. Os versos do samba-enredo sustentam que a escravidão foi decisiva no desbravamento e na conquista da terra, e serviu para construir a “riqueza do Brasil”, bem como para lograr a emancipação tanto de senhores como de escravos. E concluem estabelecendo uma correspondência entre a casa-grande e a senzala: “E esses bravos/Com ternura e amor/ Esqueciam as lutas da vida/Em festas de raro esplendor/ Nos salões elegantes/Dançavam sinhás-donas e senhores/ E nas senzalas os escravos/ Dançavam batucando os seus tambores”.
Do samba à fotonovela, a dimensão do trabalho (“as lutas da vida”) esmaeceu-se. A economia agrária sucumbiu à economia do desejo. Nada mais natural que a senzala desaparecesse também da capa do livro. Mas um sintagma tão poderoso – casa-grande e senzala – não poderia diluir-se assim tão facilmente. Tendo adquirido nova conotação, o reencontramos em circunstâncias outrora inimagináveis. Em Arraial d’Ajuda, no litoral da Bahia, por exemplo, há uma pousada chamada Casa-grande & Senzala. Alguém se hospedaria lá? Certamente, mas apenas na casa-grande. No site do empreendimento, uma fotografia mostra um dos quartos do hotel. As cadeiras e a cama, com dossel e mosquiteiro de renda, remetem a um ambiente tradicional e luxuoso. Mas e a senzala? Uma pequena gravura na parede do quarto alude à escravidão, mas desloca a referência ao reproduzir uma cena de servidão no antigo Egito.
Uma vez que todos os hóspedes agora habitam a casa-grande, onde fica a senzala nesse pacote turístico? A resposta é fácil: nos restaurantes. Na cidade histórica de Paraty, em 2012, surgiu uma tal Senzala Churrascaria. Mas esse não foi o primeiro nem será o último. Uma simples pesquisa na internet revelará dezenas de restaurantes com esse nome espalhados pelo Brasil. O significante deslizou de tal maneira que ninguém realmente se ofende ao ser convidado para comer na senzala. Ao contrário, aceita-se imediatamente a proposta, na certeza deque ali serão desfrutados os melhores e mais refinados sabores.
Toda imagem é um sintoma. A fotografia na capado livro de Freyre sugere que a imaginação da casa-grande acabou ocupando a senzala. No Recife, cidade natal de Gilberto Freyre, a nova configuração desses termos alcançou sua expressão mais dramática. Diante da imponente residência em que viveu o sociólogo, no bairro de Apipucos, hoje transformada em museu em sua honra, inaugurou-se um motel chamado Senzala. O slogan de lançamento não desperdiçava a piada: “Visite a casa-grande e divirta-se na senzala”. Os herdeiros de Freyre conseguiram embargara publicidade, mas o motel vingou e é um sucesso. No outdoor que anuncia as suítes sadô, lê-se: “Aqui você vai para a chibata”. A exemplo dos restaurantes, os motéis Senzala se multiplicaram. Em Porto Alegre, há um motel onde as referências ao martírio dos escravos são ainda mais explícitas. Na suíte pelourinho, por exemplo, o poste no qual os escravos eram amarrados e torturados promete os mais intensos prazeres. A conversão imaginária da senzala em lugar de delícias tanto culinárias como eróticas não só esmaece e torna cada vez mais remotas as imagens da escravidão no Brasil, mas, principalmente, manifesta o atual desejo – sexual, mas não só – de pertencermos todos à casa-grande.
Carregador do Porto do Sal, Belém, 1985, Luiz Braga
Cena de 1922: a exposição da Independência, documentário de Silvino Santos recuperado por Roberto Kahané e Domingos Demasi Filho
O RETORNO DA SENZALA
Entretanto, como estamos cansados de saber, nada desaparece por completo da memória. E, como Sigmund Freud ensinou, o recalcado sempre retorna. A súbita visão do negro é um susto, uma assombração, revestindo de comicidade o pânico social que a classe média urbana brasileira herdou dos antigos estamentos senhoriais. Em 1922: a exposição da Independência– documentário de Silvino Santos rodado na grande exposição que comemorou, no Rio de Janeiro, o centenário da Independência do Brasil –, um jovem negro emerge subitamente de um grande vaso de barro. É a repentina aparição do negro que, qual um fantasma, atravessa a membrana do presente, como na fotografia do carregador do Porto do Sal, em Belém, de Luiz Braga. Aparições como essa ocorrem inúmeras vezes na iconografia brasileira, em particular no cinema. A sequência do nascimento de Macunaíma, no filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1968, também encontra sua versão fotográfica na conhecida série de Rogério Reis sobre o Carnaval no Rio de Janeiro.
Assim, o fantasma do negro da senzala não se encontra propriamente invisível – nem mesmo entre os estratos superiores da sociedade brasileira moderna–, mas sim submerso. É disso que dá testemunho o registro documental feito por Marcel Gautherot de um minerador no Pará, em 1950.
Da série Carnaval na Lona, foto de 1999, de Rogério Reis | Garimpo na foz do rio Tauari, Pará, c. 1950.Marcel Gautherot/IMS |
Estado de sítio, 1977, Walter Firmo
Banido do imaginário dominante da casa-grande, o fantasma retorna na fotografia de várias maneiras,
mas é na condição de sombra que é convocado com mais frequência. Na fotografia Estado de sítio,
de Walter Firmo, feita em 1977, ainda sob a ditadura militar, os policiais correm pelas ruas de um bairro
da periferia do Rio de Janeiro, tendo ao fundo as sombras dos moradores, em sua maioria crianças
e jovens. Seriam todos negros? Qualquer brasileiro habituado a ler os sinais distintivos de classe e de
raça responderia que sim. As silhuetas pertencem a um segmento da população que permanece à sombra, não apenas em função das condições sociais em que vivem, mas também porque raramente ocupam o papel de protagonista na história nacional.
Não houve sombra mais célebre na história política brasileira que Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do ex-presidente Getúlio Vargas, apelidado de Anjo Negro pela imprensa. Filho de um ex-escravo, Fortunato acabou seus dias preso, acusado de tramar o atentado contra Carlos Lacerda, inimigo político de Vargas. Sua celebridade, porém, não advinha de algum eventual protagonismo. Durante o segundo governo de Vargas (1951-54), os fotógrafos buscavam sempre incluí-lo nas imagens porque sua imensa figura negra valia, para a imprensa de oposição, como evidência do lado oculto e corrupto do poder do presidente.
Penso que não exista imagem mais significativa do caráter sombrio da ausência de protagonismo político da população negra brasileira do que uma fotografia de Evandro Teixeira tirada durante as manifestações estudantis contra a ditadura militar no Rio de Janeiro, em 1968. Indiferente aos estudantes, vigiados a distância por um militar armado de fuzil e baioneta, um trabalhador dos jardins públicos da cidade descansa após o almoço.
Getúlio Vargas e o guarda-costas Gregório Fortunato /Acervo Jornal Estado de Minas /Revista O Cruzeiro, Década de 1950 |
Movimento estudantil, 1968, Evandro Teixeira |
Há uma fração submersa da senzala, um resto que não se deixou consumir inteiramente no fogo da mercadoria. Um resíduo deixado pelo excesso de horror, pelo inominável horror que as paredes da senzala não logravam ocultar. Na fotografia, esse aspecto residual costuma se manifestar como ironia (Evandro Teixeira), comicidade (Rogério Reis) ou alegoria (Marcel Gautherot). Mas, às vezes, o recalcado retorna de forma violenta: a sombra da escravidão vem à luz, provocando escândalo e consternação. Ainda que provoquem comoções mais ou menos passageiras, essas imagens ficam impressas de forma duradoura na memória coletiva. Foi o caso da fotografia vencedora do prêmio Esso, em 1983.
Luiz Morier acompanhava a ação da polícia em uma favela do Rio. Naquele dia, o número de prisões foi tão grande que faltaram algemas. Um policial conseguiu uma corda, e os presos foram conduzidos amarrados uns aos outros. Morier deu à foto o título de Todos negros, e não houve quem não relacionasse a ação dos policiais aos capitães do mato, agentes que no tempo da colônia eram encarregados de recapturar os escravos fugidos. Tal semelhança foi, claro, o motivo do prêmio. Uma imagem adormecida, latente, que se materializa, em igual medida, no gesto dos policiais, nas lentes do fotógrafo e na memória dos leitores do jornal. À primeira vista, a indignação do público parece motivada pela brutalidade policial, mas é a naturalidade da ação que verdadeiramente choca. Isto é, o modo como “naturalmente” coloca-se em ato no presente as imagens que a história nos acostumou a ver como passadas. Que os presos sejam tratados com desrespeito é menos motivo de revolta, creio eu, que a ação dos policiais ao reencarnar em corpos vivos a imagem morta.
Todos negros, 1983, Luiz Morier
Recentemente, em fevereiro de 2014, uma fotografia similar invadiu a mídia. Um adolescente, suspeito de furtos, foi capturado e espancado por um grupo de moradores em um bairro de classe média do Rio de Janeiro. Depois, foi deixado preso a um poste com uma tranca de bicicleta em torno do pescoço. A associação foi imediata: a nudez e os ferros que o prendiam a um poste numa via pública atualizavam os castigos corporais a que eram submetidos os escravos fujões e desobedientes. Essa fotografia, de modo ainda mais evidente que a anterior, já existia muito antes de ter sido feita.
Estranho destino, o da senzala. Sua imagem, desaparecida da capa do livro, parece ter se dissolvido no tempo. Mas, na verdade, foi deglutida pelas fantasias da casa-grande: transformou-se nesse lugar imaginário onde é possível realizar nossos desejos, na morada de nossas ilusões senhoriais. Quem ainda se surpreenderia com a inauguração de um Senzala Shopping? No entanto, quanto mais a casa-grande que habita em nós der livre curso à onipotência imaginária de seus desejos – desejos que, afinal, jamais serão plenamente satisfeitos –, mais real e violento será o retorno das imagens de sofrimento que fomos coniventes em soterrar. Violência real de imagens perdidas em busca de novos corpos para reencarnar.
A imagem da escravidão foi banida da capa da última edição do livro de Gilberto Freyre porque o restaurante e o motel são as novas faces da senzala. Onde antes havia dualidade e tensão, agora há unidade e promessa de gozo. Da senzala histórica, restaram apenas assombrações. Almas desabrigadas, fantasmas sem teto que voltarão sempre a nos assediar, dramática e dolorosamente, como um menino nu acorrentado a um poste. ///
Mauricio Lissovsky é historiador, doutor em comunicação, redator e roteirista de cinema e TV. É professor de roteiro e teoria da imagem na Escola de Comunicação da UFRJ. Publicou Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. (1988), A máquina de esperar (2008), Refúgio do olhar (2013) e Pausas do destino (2014).
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