O clique único de Assis Horta
Publicado em: 22 de dezembro de 2014Na edição de 5 de maio de 1916, a revista ilustrada A Cigarra, quinzenal, publicada numa São Paulo que começava a viver profundas mudanças urbanas, trazia um breve ensaio intitulado “O retrato: usos e funções”. Assinado por Luís Carlos, de quem nunca mais se ouviu falar, o texto abordava um tema borbulhante na época: a permanência do retrato fotográfico, sua função como registro factual.
“A invenção da fotografia trai um duplo anseio de fundo inconfessável do homem: vaidade e eternização”, anunciava o ensaio, reproduzido na Antologia Brasil, 1890-1930: pensamento crítico em fotografia (2013), de Ricardo Mendes. Na visão do autor, “um retrato antigo sempre desperta […] toda a época afastada a que se remonta como se ele fosse um mudo gemido do passado […]. A despeito do esmaecimento da obra, a expressão do momento evolutivo do homem que ele fixou ganha longevidade, que já é uma forma aproximada da imortalização. E o intuito vaidoso fica justificado.”
O miúdo Assis Horta, até hoje chamado de Assizinho pelos amigos de geração, não leu nada disso. Até por ter nascido só dois anos depois, em 1918, na Diamantina de garimpeiros e de Juscelino Kubitschek, da lendária escrava Chica da Silva e do futuro clássico Minha vida de menina, de Helena Morley.
Mas tanto as revistas ilustradas das primeiras décadas do século 20 como as lentes de Assis Horta construíram o retrato desse Brasil mutante. Com uma diferença capital, porém: enquanto A Cigarra e suas congêneres disseminavam a imagem do status e do convívio social das elites, o mineiro de Diamantina deu rosto, identidade e visibilidade fotográfica ao trabalhador. Alforriou-o do anonimato, revelando-o como classe e como indivíduo na história visual do país.
E como se não fosse pouco, com grande arte.
A sorte bate à porta
É fácil reconhecer o Assis Horta de hoje num domingão ensolarado de agosto, flanando entre os frequentadores da praça da Liberdade, marco republicano de Belo Horizonte. Seu figurino começa pelo chapéu, sem o qual se consideraria nu. Veste um cardigã de lã azul-marinho sobre uma camisa listrada, e uma agulha de época lhe garante a posição da gravata quadriculada, bordô. Não solta uma afidalgada bengala de madeira talhada – “trabalho de satisfação”, elogia o dono.
Observado de longe, ele poderia ser um típico senhorzinho de antanho que, aos 96 anos, ainda encara uma passeggiatina em família. Basta perguntar-lhe algo de seu interesse, contudo, para seu Assis, como é chamado pelos não íntimos, revelar sua curiosidade juvenil pelo novo, mostrar-se informado sobre o presente e exercitar uma memória ainda valiosa de vivências do passado.
O caminho mais certeiro para ativar seu jeito traquino de contar causos é perguntar pela família. Nem a fotografia, ofício que moldou sua vida e lhe garante um lugar permanente na cultura nacional, consegue torná-lo tão tagarela quanto a lembrança de Maria, a companheira com quem partilhou tudo ao longo de 71 anos.
Até a morte da esposa, no ano passado, o casal circulava pela vida de mãos dadas – inclusive em casa. O nome dos dez filhos foi escolhido de caso pensado para que as iniciais formassem os acrósticos MARIA ASSIS. Conforme nasciam eram batizados de Marluce, Assis, Rosiléia, Isnard, Aglaé, Argel, Sérgio, Sílvia, Izabel e Sávio. “Mas nunca fiz retrato de Maria de barriga”, orgulha-se o marido fotógrafo, apreciador de um recato. “Também nunca tirei foto de mulher nua. Nem no Moulin Rouge de Paris – aliás, passei mal quando o casal de amigos com quem viajei me pediu para fotografar lá dentro.”
Órfão de pai aos cinco anos, Assizinho morou n’O Grande Hotel da rua da Quitanda, administrado pela mãe, até ele se casar com Maria, a “primeira namorada de conversar”. Começou a fazer pequenos serviços a partir dos nove anos sem ter concluído o curso primário – nada atípico na Diamantina dos anos 1930, onde boa parte dos garotos entre dez e 18 anos trabalhava em comércio, agricultura, pecuária, indústria extrativa ou fábricas.
Pelo Grande Hotel costumavam transitar desde forasteiros com grandes negócios nas minas de diamante da região, sempre à procura de mais mão de obra, até hóspedes locais. Assizinho teve sorte: ainda adolescente, foi empurrado pela mãe para as asas do advogado, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade, que procurava um prestador de serviços gerais com noções de fotografia para ajudá-lo a fazer o levantamento fotográfico de Diamantina.
Conhecido na cidade como “dr.” Rodrigo, o fundador e presidente por três décadas do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (precursor do IPHAN), criado em 1937, tinha um projeto. Apenas 20 anos mais velho do que Assizinho, o pai do futuro cineasta Joaquim Pedro de Andrade queria repetir em Diamantina o feito de Ouro Preto, oficializada como “monumento nacional” quatro anos antes. Conseguiu: o centro histórico de Diamantina foi tombado em nível federal em 1938.
Para isso era preciso mapear cada ruela, moradia, casa de comércio, igreja, órgão público da cidade e constituir um acervo de imagens destinado a alavancar o processo de tombamento de Diamantina. Pois Assis Horta revelou-se talhado para a empreitada, embora sua formação em fotografia fosse ancorada em experimentação e curiosidade, autodidatismo e sensibilidade, observação e zelo. Passou ao largo de qualquer academia, escola ou curso de técnica. Sua iniciação no métier, ainda rapazote de 14 anos, dera-se como ajudante de Celso Tavares Werneck Machado, comerciante, construtor e dono de um estúdio local. Foi em 1936, aos 18 anos de idade, que Assizinho teve a audácia de comprar o ateliê onde trabalhara como aprendiz, rebatizando o antigo Estúdio Werneck como Photo Assis – Materiaes Photográficos das Principais Marcas e Cinematográficos para Amadores e Collegios. Apesar de se equilibrar entre as duas ocupações – seu emprego no Sphan e o trabalho no estúdio –, passou a viajar com frequência até o Rio de Janeiro, de trem, para comprar material e equipamento escassos em Diamantina. Tem na ponta da língua o endereço do comércio do qual se tornou freguês: rua Dom Gerardo, 42, no Centro. Aproveitava as escapadas para caminhar da praça Mauá até as proximidades do mosteiro de São Bento.
De uma dessas expedições, voltou com uma câmera de madeira gravada com a marca “Marc Ferrez, 88, rua S. José, Rio de Janeiro”. De outra, trouxe o Annuaire Général de Photographie de 1899. Sensível e intuitivo, fazia o melhor uso possível dos manuais e materiais que lhe eram enviados por fornecedores da antiga capital do país.
Só que no Photo Assis daqueles primórdios não se discutia a obra de Ferrez, nem a de Militão Augusto de Azevedo, nem a de Augusto Malta. O nome mais reverenciado do retratismo em Diamantina era o de Francisco Augusto Alkmin, o Chichico (1886-1978), de uma geração anterior à de Assis. Filho de proprietários rurais e irmão de José Maria Alkmin, ministro da Fazenda de Juscelino Kubitschek e vice-presidente da república do marechal Castello Branco, fora Chichico o pioneiro da fotografia de estúdio na cidade e o primeiro cronista visual da Diamantina do início do século 20. Sua obra múltipla de quase cinco mil negativos em vidro constitui um registro único da vida cultural, política e social da época, de sua arquitetura, religiosidade e costumes.
O olhar fotográfico de Chichico Alkmin, alimentado essencialmente na escola francesa de retratistas e pintores do século 19, acabou produzindo um rico e aclamado material de “paisagens humanas e urbanas”, título da exposição realizada no ano passado no Memorial Minas Gerais Vale.
Coube ao autodidata do Photo Assis, instalado inicialmente na rua do Bonfim, esquina com rua do Contrato, abrir caminho próprio e sair da sombra do cultuado Chichico. Começou pelo básico, procurando freguesia em segmentos sociais pouco familiarizados com a experiência de ser retratados. Graças aos gringos de passagem pelo Grande Hotel, que apreciavam ouvir as espirituosas narrativas de causos feitas por Assizinho, foi contratado para documentar o trabalho de extração e fazer o registro fotográfico de diamantes famosos.
Data desse período a amizade com uma dupla de garimpeiros negros que moravam no bairro da Palha, periferia de Diamantina. Ficaram tão amigos que Assizinho ganhou de presente o ouro do qual foram feitas suas alianças de casamento. Muitas décadas depois, a foto ampliada de Dimas, um dos filhos do garimpeiro da dupla, esteve em exibição no Museu do Diamante da cidade como parte da mostra Diamantina 360° – Sob o olhar de Assis Horta. O já nonagenário seu Assis pôde assim testemunhar o espanto do igualmente idoso Dimas ao se reconhecer numa foto de 70 anos antes.
Um segundo filão de renda caiu no colo do fotógrafo em 1941, com a Segunda Guerra Mundial em plena expansão. Foi solicitado pelo comandante para retratar uma centena de soldados do 3º Batalhão da Polícia Militar do Estado de Minas, aquartelado na região desde 1890. De frente e de perfil. “A PM pagava bem”, relembra, traquino, o contratado.
Àquela altura da vida, Assis Horta já havia encontrado uma metodologia para contornar seu desvio precoce da escolaridade. De acordo com seu filho Isnard, “o pai desenvolveu uma estratégia própria para ler e escrever”. Isnard é o quarto da prole de dez e o único autorizado a frequentar o monumental acervo guardado no subsolo da atual residência de Assis Horta, em Belo Horizonte. Engenheiro e urbanista, Isnard admira no pai o gosto pela leitura. “Ele lê a seu modo, mas lê, decifra e cifra, fazendo anotações no próprio livro”, diz. “Quando o assunto interessa muito, como escritos e pesquisas sobre Diamantina, ele vai fazendo anotações à parte. À margem de um livro com informações sobre um personagem da cidade, por exemplo, ele acrescenta: ‘Tenho muitas fotos dele e de seus filhos’ ou ‘Tenho foto antiga da casa dele’.”
Minha vida de menina, da brasileira de ascendência inglesa Helena Morley (batizada Alice Caldeira Brant), que descreve a vida em Diamantina na virada do século, foi um dos livros que marcaram seu Assis logo que foi publicado pela primeira vez, em 1942. Uma das maiores satisfações de sua longa vida pontuada de alegrias é ter arrematado num leilão uma bolsa com fios de prata que pertencera à escritora. O adereço com o nome “Alice” gravado na divisória interna está até hoje guardado no cofre do orgulhoso dono.
O rosto do trabalhador
Assis Horta tinha apenas 25 anos de idade e mal completara um ano de casado quando um decreto de 1º de maio de 1943, 122º ano da Independência e 55º ano da República, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, revolucionou a legislação trabalhista no Brasil. “Fica aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho, que a este decreto-lei acompanha, com as alterações por ela introduzidas na legislação vigente”, anunciava o artigo 1º do histórico texto. Pela nova CLT, a Carteira de Trabalho e Previdência Social passava a ser obrigatória para o exercício de qualquer emprego, inclusive de natureza rural e ainda que em caráter temporário. A mesma norma passava a valer “para o exercício por conta própria de atividade profissional remunerada”. E, de acordo com o artigo 16, na nova carteira profissional era obrigatório constar, além do número, série e data de emissão, uma fotografia do portador, “com menção da data em que houver sido tirada”.
Para o cidadão Assizinho nada mudava, posto que ele já tinha carteira de trabalho desde os 17 anos. Já para o fotógrafo professional Assis Horta, dono do entrementes renomado estúdio Photo, em novo endereço, o decreto getulista foi decisivo: possibilitou que sua carreira desse um pinote e revelasse a dimensão histórico-documental de sua obra.
Foi por solicitação de um cunhado que administrava uma fábrica de fiação e tecidos em Biribiri, nas franjas de Diamantina, que Assis Horta frequentou durante alguns dias a tecelagem. Recebera a incumbência de fotografar as quase 300 operárias ali empregadas para a emissão das novas carteiras de trabalho. Era uma tarefa e tanto. Construída em 1876 pelo bispo d. João Antônio dos Santos para gerar empregos a ex-escravas, mulheres de lavradores e peões, e órfãs do Colégio Nossa Senhora das Dores, a Fábrica de Tecidos de Biribiri também provia alojamento para essa mão de obra feminina. Um ano antes, por sinal, Assis Horta e Maria haviam passado a lua de mel numa das 30 casas construídas anexas à fábrica. (Como vila, Biribiri chegou a abrigar 1.500 moradores no auge da produção fabril, em meados do século 20. Tinha escola para os filhos dos empregados, pensionatos, armazém e até um consultório odontológico. Hoje, as 30 moradias e tudo o mais está desativado e tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, em meio a uma paisagem idílica. Encontrou vocação nova como cenário para diretores de cinema, de TV e de seriados em busca de locações bucólicas.)
A primeira sessão de retratos em série na fábrica começou exatos 60 dias após a instituição da CLT. Assis Horta iniciava os trabalhos pouco antes do almoço e prosseguia a labuta logo após a pausa da refeição. Procurava interferir o mínimo possível na rotina do estabelecimento.
Ele chegava com a câmera que até hoje é seu xodó – uma Compur de fole, com lente original Voigtländer Braunschweig Heliar 1:45f, um tripé e um rebatedor. O formato de sua preferência sempre foi 9 × 12 centímetros. Conversava pouco com suas retratadas. Indicava-lhes a única cadeira da sala onde deveriam se sentar, solicitava que empunhassem uma plaqueta com data, exigência da CLT, e perguntava-lhes apenas o nome. Para identificar as pessoas, Assis passou a fazer uma pequena anotação numérica no canto inferior de cada plaqueta, complementando a metódica catalogação de seu valioso arquivo profissional.
Biribiri lhe consumiu cerca de quatro dias de trabalho e abriu as portas de outras fábricas têxteis, como a Cia. Industrial São Roberto, de mão de obra mista, desejosas de seguir ao pé da letra o decreto getulista. “Foi ótimo para mim, financeiramente”, relembra ainda hoje com satisfação juvenil. Cobrava três cruzeiros por foto 3×4 ou de tamanho postal. Instalava sua câmera sanfona num tripé, montava o rebatedor e só trabalhava com luz natural, em exposição lenta. Era um clique por foto – aliás, ele considera normal até hoje sempre ter feito apenas um clique por foto.
Nunca teve uma decepção ao ver as chapas de vidro reveladas? “Nunca. Ou dava certo, ou não dava; mas dava sempre”, garante, ajeitando um pouco a biografia. Acredita jamais ter queimado uma foto nem precisado jogar nenhuma no lixo. Só não gostava mesmo era de ver um retrato entortado, “por isso todas as minhas câmeras tinham nível de bolha”.
Para boa parte das trabalhadoras têxteis que se aprumaram, sérias, compenetradas e algo tensas na cadeira colocada à frente de Assis Horta, a sessão talvez tenha sido intimidante. “As moças se preparavam como podiam”, relembra o retratista. “Trabalhavam bem o cabelo e, embora estivessem no local de trabalho, revelavam esmero para a ocasião.” Guilherme Horta (o sobrenome é mera coincidência), pesquisador e curador da extraordinária exposição Assis Horta: a democratização do retrato fotográfico, montada no Palácio do Planalto em comemoração aos 70 anos da CLT, declara-se solidário com a tensão presumível das operárias. “Até eu, caramba, quando fui tirar minha carteira, fiz questão de botar terno e gravata. E olha que eu era da contracultura, roqueiro, rebelde do início dos anos 80”, admite hoje, aos 48 anos, o também professor, multiartista e dono do estúdio que imprimiu as imagens da exposição.
Em compensação, quando as operárias finalmente tiveram em mãos seu retrato 3×4, e ainda por cima levaram a cópia em papel para mostrar a quem quisessem, o impacto deve ter sido memorável. Para muitas daquelas mulheres, e homens também, aquele fora o primeiro retrato de toda a vida. E permanente, não mais só a imagem refletida em alguma superfície espelhada.
O estúdio fotográfico
Embora a fotografia tivesse sido desbravada na Europa mais de um século antes, e apesar de grandes ateliês e estúdios fotográficos já fazerem parte do cenário cultural brasileiro há décadas, foi a exigência de foto datada da CLT que desencadeou nos trabalhadores urbanos da região o gosto, o desejo e a corrida pela fotografia social.
Pioneiro na captação da imagem individual de uma classe até então quase invisível, como era a mão de obra fabril da região de Diamantina, Assis Horta conferiu-lhe identidade visual e forneceu uma ferramenta preciosa aos estudiosos da história social brasileira. Para os retratados, foi um deleite só. Embora os 3×4 se destinassem a meros registros profissionais, Assis Horta fotografou cada retratado com reverência absoluta, zelo na técnica e cuidados na luz.
Resultado: boa parte dessa clientela de ocasião queria mais e começou a se reapresentar para nova sessão. Só que dessa vez no estúdio do mestre, em grande estilo, sozinhos ou acompanhados de cônjuges, filhos, amigos. Antecipando a inevitável demanda por uma variedade maior de retratos, Assis Horta tomara algumas providências para atender a essa ávida clientela nova.
Logo na vitrine externa do ateliê, à vista de quem passasse pela rua, ele afixara amostras de vários tamanhos – do mero 3×4 a uma imponente cópia de 50 × 60 centímetros. E no interior do estúdio ele montou um guarda-roupa masculino básico para uso gratuito de clientes em apuros – camisa, paletó, chapéus, gravatas e lenços de bolso variados. As mulheres raras vezes careciam de ajuda – já se apresentavam com o garbo desejado. Um amplo painel de tecido pintado por três artistas locais servia de pano de fundo único. Um oportuno espelho portátil permanecia à disposição para tirar eventuais dúvidas. Como de hábito, Assis Horta só trabalhava com luz natural e um rebatedor.
Toda sessão começava com a mesma pergunta: “Como o senhor ou a senhora quer tirar retrato?”. Cabia a cada um decidir se preferia permanecer de pé, sentado ou fazendo pose. O fotógrafo só interferia na cena para corrigir algum colarinho imperfeito, acertar desníveis ou ajustar a composição. Como sempre, disparava um só clique por foto – mesmo que uma mosca pousasse na manga do paletó branco de um cliente, poluindo o visual, ou quando o sapato de uma criança caía do pé no momento-chave.
Setenta anos depois daquelas sessões no ateliê, Assis Horta guarda lembranças agudas de muitos retratados. A uma jovem que se apresentou num severo terninho escuro e com sapatos pouco femininos, ele ofereceu uma ensolarada flor natural para colocar na lapela. A retraída cliente ficou tão encantada com o resultado conferido no espelho que levou a flor para casa. Do cliente que optara por se sentar numa cadeira de braço para poder ostentar o anel que portava no dedo mínimo e considerava indispensável constar da foto, seu Assis não esquece: “O problema não era o anel, era o paletó de seis botões que o deixava todo travado. Paletó cruzado, só de quatro botões”, ensina, desolado.
A um professor de ginástica que desejava valorizar os músculos, o fotógrafo ordenou que tirasse a camisa. E a uma jovem de queixo caído por obra da natureza injusta sugeriu que o amparasse aproximando a mão do rosto – essa foto acabou resultando num dos retratos mais expressivos da série. Outra figura feminina, retratada de um ângulo oblíquo, evoca de forma desconcertante o quadro Menina, de Guignard.
De modo geral, todos os retratados no Assis Photo mantinham uma postura solene. Nem as crianças sorriam. “Eles levavam a sessão no estúdio muito a sério”, sustenta Assis Horta. Com a ligeira exceção de um marido que lhe pediu para mostrar o dente de ouro no retrato e por isso arriscou um meio sorriso.
A seu modo, os muitos brasileiros que passaram pelas lentes de Assis Horta acabaram dando razão a um comentário escrito pelo crítico e ex-curador do Masp José Teixeira Coelho, por ocasião da mostra Olhar e ser visto, há quatro anos: “O retrato tanto se entrega ao olhar do observador como o observa atentamente”.
O grande tour
Uma vez estabelecido na profissão, Assis Horta embarcou numa aventurosa viagem de três meses à Europa, no ano de 1954, a convite de dois casais amigos, de Diamantina, que, por abastados, bancaram toda a empreitada. De pouca desenvoltura social e escasso cosmopolitismo, os quatro receavam circular por terras estrangeiras sem a companhia de um amigo débrouillard – Assizinho, é claro. E foi com a bênção da esposa, Maria, que tinha toda uma prole para cuidar em Diamantina, que os cinco embarcaram no transatlântico Augustus no cais do Rio – um dos quase mil navios de passageiros que na época faziam o trajeto Europa-Brasil –, cruzaram o Atlântico e desembarcaram duas semanas mais tarde no porto de Gênova.
No passaporte que Assis Horta tem guardado numa “caixinha pessoal” e mostra para poucos, constam vistos de entrada na Itália, Suíça, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Bélgica, Inglaterra, Áustria e Holanda. Um giro e tanto para marinheiros de primeira viagem, mas tudo transcorreu sem percalços. Embora não falasse nenhum dos idiomas úteis naquelas paragens, Assizinho se fazia entender no essencial: conseguiu alugar uma Mercedes, e com ela percorreram o Velho Mundo. Conseguiu, sobretudo, localizar a fábrica da Rolleiflex em Berlim e comprou o kit completo da época, que incluía filtros de lente, cabeças de tripé variadas e até uma panorâmica. Guarda até hoje a nota fiscal da extravagância. Tampouco deixou de postar uma que fosse das 74 cartas que escreveu a Maria, de onde quer que se encontrasse. Hoje, ao narrar a aventura, reclamou apenas de uma banana que comprou na Holanda: “A mais cara que já comi”.
No retorno para Diamantina, passou a ninar a novíssima Rolleiflex como se fosse uma companheira. Data dessa época um de seus únicos autorretratos – está posicionado de perfil com a Rollei pronta para disparar na altura da cintura.
Data também dessa época uma notável panorâmica de 360 graus que Assis Horta conseguiu fazer do topo de uma das igrejas mais cultuadas de Diamantina, a Capela Imperial do Amparo. Para obter o resultado desejado, o fotógrafo aguardou o dia de céu mais limpo da temporada e mirou no horário do meio-dia, para evitar sombras e nuvens.
“O pai aproveitou uma das inúmeras reformas da igreja e se posicionou no andaime montado em volta do galo que encima a torre”, explica Isnard. A sucessão de chapas batidas com a cabeça panorâmica, em movimentos rotativos, resultou numa imagem de tirar o fôlego. Uma cópia monumental dessa panorâmica, medindo 6 metros, pode ser admirada no Museu do Diamante local.
Um porão de histórias
Somando-se sua notoriedade como retratista quase oficioso da cidade, sua longa e reconhecida atuação como servidor público do terceiro distrito do Sphan e a teimosa dedicação à preservação de bens tombados apreciada, foi inevitável: seu Assis também era chamado para resolver questões esdrúxulas. Único morador de Diamantina que sabia operar um aparelho de raios X, ele atendia a esses pedidos e ainda revelava as chapas clínicas no laboratório de casa. E não deixava de atender a chamadas de dentistas locais que precisavam do retrato da boca de algum paciente com revelação de qualidade garantida.
A mudança da família para Belo Horizonte, em 1967, deixando em Diamantina lembranças, afetos e uma rotina de trabalho consolidada, não foi fácil. A começar pelo desmonte, transporte e instalação em novo hábitat dos equipamentos fotográficos, acervo de décadas de trabalho e laboratório de Assis Horta – sem os quais ele se sentiria órfão. Um dos complicadores não foi resolvido até hoje: nem seus filhos, nem o pesquisador Guilherme Horta, nem o próprio fotógrafo sabem ao certo a extensão real do acervo acumulado. Só o número de chapas de vidro não processadas pode variar de 20 mil a 50 mil. Ou seriam mais? A sorte de futuros historiadores e curadores é que Assis Horta adquiriu o hábito de catalogar e anotar tudo desde seus tempos de inventariante fotográfico de Diamantina. E habituou-se a guardar cada negativo em envelope individual, com anotação da data, do local e da identificação do que havia fotografado.
A mudança para o bairro do Alto da Barroca exigiu uma adaptação e tanto. Ciumento de seu acervo, seu Assis se apossou do subsolo da casa da rua Rio Negro e ali instalou toda a sua produção fotográfica e o material de trabalho – com acesso proibido a terceiros. À exceção do filho Isnard e de um ou outro convidado, ninguém está autorizado a descer os 13 degraus da escada e entrar no valioso tugúrio. Os próprios filhos respeitam a regra com admiração pelo patriarca.
Convidado a consultar o acervo para preparar a mostra que deu vida ao concreto do Palácio do Planalto, o curador Guilherme Horta admirou-se com a existência de um laboratório completo, com banheiras, ampliadores e tanques de revelação. “É surreal, e impecável”, garante.
Nas câmeras de Assis Horta, naturalmente, ninguém toca. Só ele as limpa. Atualmente, sua coleção consiste em uma dúzia de câmeras antigas, além de uma variedade de outras da era pós-Rollei. Filmadoras 16 mm a corda e super-8 também não faltam. Há, ainda, meia dúzia de câmeras tipo caixotinho, que Assis Horta costumava alugar por dia nos tempos do Photo de Diamantina. Mas o carinho mais escrachado, depois da imbatível Compur de fole, vai para a “Marc Ferrez” e seu conjunto de lentes presas em bases intercambiáveis de madeira, comprada no Rio. “Linda!”, exclama o dono, exibindo-a para a reportagem.
Isnard e o pai estabeleceram um modus operandi seguido à risca para processar a obra do fotógrafo. “Ele tira os negativos das caixinhas, separa por temas em envelopes individuais e anota informações pertinentes”, explica Isnard. “Eu pego cada foto liberada por ele, classifico e jogo no computador com a identificação completa.” Até agora, foram catalogadas cerca de 5 mil fotografias, e digitalizadas apenas algumas centenas de negativos, uma parte ínfima do acervo.
Aos 96 anos, Assis Horta ainda desce toda manhã os 13 degraus da escada até o subsolo, e ali fica em companhia de sua obra e de suas lembranças. Reaparece para almoçar. Depois da sesta, volta a descer. “Lá, exercita a memória. No trajeto de ida e volta, exercita o coração”, resigna-se a família.
E o futuro desse material que liga Assis Horta umbilicalmente à vida presente e a seu rico passado? Só mesmo Isnard para lhe fazer essa pergunta. “É meu enquanto eu estiver aqui”, respondeu o pai. “Depois, você resolve.”
Em agosto passado, durante uma entrevista de quase três horas em sua casa, a ZUM ouviu dele comentários certeiros sobre cada foto que lhe era mostrada. Quando a memória faltava ou alguma data o confundia, não se impacientava. Tem plena consciência de que com o andar da vida nem tudo se resolve mais no primeiro clique.
Perguntado se carrega alguma foto sua in pectore, por considerá-la a mais bela, histórica, difícil ou única, Assis Horta não hesitou. Apontando para um porta-retrato em destaque na sala, foi enfático: “Aquela ali”. Era uma foto de seu casamento com Maria, ocorrido 72 anos antes. “Eu mesmo levei a máquina para o Chichico fazer o retrato.”
Pelo visto, o homem e o retratista renomado não brigam entre si. São poucos os grandes artistas tão despojados de vaidade inútil. A fotografia de que mais gosta não leva sua assinatura. Mas trouxe felicidade. ///
Assis Horta (1918) nasceu em Diamantina, onde manteve o estúdio Photo Assis. Vive em Belo Horizonte.
Dorrit Harazim (1943) é jornalista e colunista do site da ZUM.
Imagens © Assis Horta
A digitalização e o tratamento das imagens foram feitos pelo Studio Anta graças ao XII prêmio Marc Ferrez de fotografia da FUNARTE.
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