Revista ZUM 7

Nota sobre Vilém Flusser

Márcio Seligmann-Silva Publicado em: 12 de maio de 2015

Vilém Flusser foi um dos filósofos mais oginais da segunda metade do século 20. E só agora começamos a compreender muito do que ele escreveu nos anos 1980.

Nascido em 1920, em Praga, refugiou-se na Inglaterra em 1939. No ano seguinte, emigrou para o Brasil, onde viveu até 1972. Embora seu primeiro livro, Língua e realidade, de 1963, já apresente traços da força de seu pensamento, foi sobretudo com sua teoria da fotografia e das imagens técnicas que se destacou como poderoso intelectual. Em debate com os pensadores de seu tempo, pode ser considerado o herdeiro da teoria da fotografia de Walter Benjamin.

Em “A fotografia como objeto pós-industrial” (1985), suma do trabalho como teórico das mídias, Flusser descreve com precisão o mundo da web antes de sua criação. Os dilemas desse universo, que oscila entre a sujeição ao controle da tecnocracia administrativa e a promessa de uma utopia da comunicação, ainda são um desafio.

Benjamin, um dos grandes críticos do historicismo – o triunfo da visão moderna segundo a qual tudo deve ser historicizado –, percebeu que a era da reprodução técnica é um momento pós-tradição, em que rompemos com o passado. Na era da fotografia, não faz mais sentido a diferença entre cópia e original, tampouco o conceito de autenticidade. Flusser, por sua vez, notou que o historicismo era o resultado de uma luta milenar entre escrita e imagens, e que o homem pós-histórico, depois do fim do pensamento conceitual e da crítica, seria fruto do novo triunfo das imagens sobre a escritura. Na fotografia, ele viu, acima de tudo, um dispositivo, um aparelho que funciona como uma caixa preta (Filosofia da caixa preta, 1983). O mais importante – e que Benjamin não notara – é que, para dominá-la, não precisamos saber como ela funciona. A fotografia abre a era pós-deciframento; com ela passamos a lidar com o mundo mediante uma “capacidade imaginativa de segunda ordem”: os aparelhos imaginam por nós.  Sua importância equivaleria à invenção da escrita e à liberação do uso das mãos, decorrente da passagem da postura quadrúpede à ereta. As imagens técnicas teriam como tarefa reunificar o pensamento e libertá-lo do império do conceitual.

O caminho que Flusser identifica na revolução aberta pelas imagens técnicas só poderá ser trilhado se praticarmos uma crítica radical dessas imagens, hoje nas mãos de programadores que impõem suas mensagens.  A  imagem  técnica  nasce,  por  assim dizer, fascista – e o fascismo histórico seria o auge desse culto das imagens. Na sua filosofia da caixa preta, Flusser concluía que caberia a nós a desconstrução de uma sociedade dominada por aparelhos. Para ele, a crítica da fotografia coincide com a crítica do funcionalismo – que permanece na ordem do dia.

Já no livro O universo das imagens técnicas, de 1985, a fotografia aparece como uma espécie de pioneira das imagens técnicas, ainda anterior às imagens eletrônicas, que agora assumem o primeiro plano das reflexões. Nessa obra, Flusser aprofunda sua crítica da sociedade moderna ao mesmo tempo que apresenta uma nova sociedade, dialógica e telemática, composta por criadores de imagens e colecionadores de imagens. Essa sociedade da informação seria comandada pela ludicidade, e não pelo trabalho – uma utopia, portanto, com tons baudelairianos e benjaminianos. Se em Filosofia da caixa preta o modelo crítico de Flusser tendia para uma distopia, ele assume agora um caráter mais próximo da utopia.

Como em Benjamin, vemos nessa filosofia da tecnologia e da mídia um entrecruzamento com a filosofia da história, da linguagem e da tradução. Flusser continua no encalço de seu projeto, pensando a circulação entre línguas e linguagens, e entre passado, presente e futuro. Sua visão de um tempo fora do tempo, de uma não história capitaneada pela era das imagens técnicas é tão vertiginosa quanto a de Benjamin, que também apontava para um momento em que passado, presente e futuro se encontrariam sob a égide de uma sociedade sem exploração e sem violência. Em Flusser – como em Benjamin –, essa utopia nasce da sensação conhecida em alemão como Bodenlosigkeit (ausência de chão sob os pés). ///

 

Márcio Seligmann-Silva (1964) é ensaísta, crítico literário e professor de teoria literária e literatura comparada na Unicamp.

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