Revista ZUM 28

Estar lá

The Anonymous Project, Omar Victor Diop & Taous Dahmani Publicado em: 11 de setembro de 2025















Incômodo e subversão

Rir é uma maneira de situar ou de deslocar a abjeção.
Julia Kristeva, Poderes do horror: ensaio sobre a abjeção (1984)

Ao longo das páginas deste ensaio, vemos imagens familiares, ao menos para o observador ocidental. Essas fotografias, que antigamente preenchiam álbuns de família, mostram personagens de nossa intimidade: pais, filhos, avós, amigos e colegas. Entre eles, um fotógrafo amador sempre parece pensar que a ocasião merece ser imortalizada. Então, com ajuda de sua câmera, ele registra nossos momentos prosaicos: as férias na neve ou na praia, o passeio de barco, a visita ao zoológico e o mergulho na água, assim como o pescador orgulhoso, o carro novo e o bolo de aniversário. As pequenas coisas da vida, que gostamos de revisitar em nome da nostalgia, pois, temos de concordar, os álbuns de família são mentiras espetaculares que retratam uma vida pacífica e alegre, repleta de ingenuidade.

Esses instantâneos capturam a intimidade, mas, por definição, omitem o contexto: o pano de fundo da sociedade na qual a família radiante se insere. A familiaridade que emana deles não é inocente; ela é normativa, não perturba a ordem nem o sistema, e respeita as regras e as regulamentações da unidade familiar. Porém, assim que se sopraram as velas, delicadamente posicionadas sobre o bolo, teve início uma briga entre os pais, que estavam à beira do divórcio, e ninguém sonhou imortalizar a desavença. Por isso, devemos nos perguntar o que esses pequenos retângulos coloridos camuflam e escondem. Devemos “ler nas entrelinhas” da representação tradicional da “família padrão” dos Estados Unidos dos anos 1950.

É por esse silêncio constrangedor que Lee Shulman, curador do Projeto Anônimo (The Anonymous Project), e Omar Victor Diop se interessaram: retirar os objetos abandonados de seu ambiente doméstico e reinscrevê-los em seu contexto socio-político. Essa prática não é convencional. Com base no enquadramento delimitado desses instantâneos desprezados, os artistas chamam a atenção, por meio da presença contemporânea, para uma ausência histórica. Shulman dirige o fotógrafo e autorretratista Diop nas pequenas cenas, compondo novas imagens que perturbam – mas não rompem – o fluxo e a coesão desse álbum de família reinventado.

As fotografias são anônimas; sabemos que datam dos anos 1950 e 1960 e que foram feitas na América do Norte. Pertencem à era dos presidentes Harry Truman (1945-53) e Dwight Eisenhower (1953-61), da Guerra da Coreia (1950-53) e do início da Guerra Fria (1945-91). Os Estados Unidos viviam as consequências do New Deal, de Franklin D. Roosevelt, programa de recuperação econômica que buscava combater os efeitos da Crise de 1929 nas populações mais vulneráveis do país. A narrativa nacional é retratada em particular pelo pintor e ilustrador Norman Rockwell, mas os Estados Unidos da América de que falamos está longe de ser perfeito: é um país segregacionista, no qual parte da população, em virtude da cor da pele, é privada de liberdades e direitos fundamentais.

No entanto, os anos 1950 são também os anos de Rosa Parks, que, em 1o de dezembro de 1955, se recusou a ceder o lugar a uma pessoa branca em um ônibus em Montgomery, Alabama; da resistência dos Nove de Little Rock, alunos afro-americanos impedidos de entrar no colégio pelo governador de Arkansas, em 4 de setembro de 1957, apesar da inconstitucionalidade da segregação escolar; e da Lei dos Direitos Civis, promulgada em 9 de setembro de 1957, que constitui a primeira etapa do processo de encerramento da segregação na sociedade estadunidense. É por isso que, em 2018, o artista afro-americano Hank Willis Thomas, em colaboração com a fotógrafa Emily Shur, reelabora a série As quatro liberdades (1943), de Rockwell, encenando situações que chamam a atenção para a inclusão e a diversidade, em um país ainda marcado por sua história segregacionista.

Shulman e Diop, por outro lado, buscam respeitar a estética dos instantâneos originais, a ponto de reproduzir a textura da superfície das fotografias e a granulação exata das imagens. Para isso, inspiram-se nos tons da Kodak, já que, naquela época, quase todos os filmes coloridos utilizados nos Estados Unidos eram dessa marca. Mas tal empreitada funciona, ela também, como uma forma de segregação, com um viés fotográfico: até os anos 1990, o Cartão Shirley, utilizado pelos laboratórios Kodak para calibrar os tons, as sombras e a luz no processo de revelação, usava como referência uma modelo branca chamada Shirley. O branco é considerado o “normal”: ele é a norma. Na verdade, se pessoas negras estivessem ao lado de pessoas brancas em uma mesma imagem, elas seriam parcialmente subexpostas ou superexpostas – a pele negra não era restituída na impressão com as mesmas nuances que a pele branca. Ao contrário: os álbuns de famílias afro-americanas existem, mas se mantêm fora do padrão – como mostra a fotógrafa e curadora Deborah Willis no livro Família, história, memória: gravando a vida afro-americana (2005).

Tendo isso em mente, adivinha-se um possível gesto subversivo da dupla: harmonizar tecnicamente a pele das personagens encarnadas por Diop com a das famílias WASP [sigla em inglês para protestante, branco e anglo-saxão] que preenchem estas páginas. Apropriada e manipulada por Shulman e Diop, essa coleção de imagens integra, na classificação, o gênero “vernacular”, por pertencer a uma comunidade específica, da qual é oriunda: as fotografias são informais e domésticas; são cotidianas e banais para as famílias brancas da América do Norte, em sua maioria protestantes, às vezes católicas. Cumprindo uma função e, ao mesmo tempo, repletas de afeto, elas registram rituais sociais efêmeros, mas cíclicos. Ao tratar de imagens vernaculares, o historiador da fotografia australiano Geoffrey Batchen afirma que elas são “entediantes”, principalmente, por “evidenciarem o conformismo, mais que a inovação ou a subversão”, como ele escreve no ensaio “Instantâneos: a história da arte e a virada etnográfica” (2008).

Esse tradicionalismo traz em si também uma forma de conservadorismo – se compreendido formal e politicamente. Nem um pouco neutras, essas fotografias são objetos ativos do aparelho ideológico do Estado, materializando as estruturas de opressão – ela está na cozinha, ele, ao volante do carro –, mas também, e mais especificamente, veiculando a ideia de um país uniforme e universalmente branco. O instantâneo inocente e o álbum ingênuo produzem modelos poderosos de imagem social, segundo os quais as principais divisões de etnia, raça, classe e gênero são apresentadas como “naturais”. A autora afro-americana Tina Campt pergunta, no ensaio “Retrato problemático: retratos fotográficos e o arquivo das sombras” (2020): “O que acontece quando o retrato de família captura uma configuração familiar que não goza dos privilégios da classe média, da heterossexualidade e da soberania branca?”. Com esse projeto, Shulman e Diop narram o privilégio do banal, a assimetria no acesso ao prosaico.

Shulman e Diop fazem uso dessa oscilação entre o trivial e o extraordinário, que permite comentar e questionar a história. Eles criam roteiros de ficção que reescrevem a história e constroem uma narrativa do passado. O filósofo francês Henri Lefebvre escreveu, em Crítica da vida cotidiana (1958): “Uma das últimas formas de crítica à vida cotidiana, nos dias atuais, foi a crítica do real pelo surreal”. Esse surrealismo contemporâneo é acionado pelo poder transformador da performance: a pose se torna uma intervenção que denuncia as aparências e explicita a história. O jogo de camadas revela o isolamento do outro; o corpo se torna índice de uma resistência à conformidade e às regulações políticas e sociais. O outsider se impõe em um “interior” antes inacessível graças à homogeneidade do ambiente.

Vale dizer que, desde o século 19, os abolicionistas Frederick Douglass e Sojourner Truth reivindicam o direito dos negros estadunidenses à representação frequentando estúdios de retratos, como se observa nos livros Retratando Frederick Douglass: uma biografia ilustrada do americano mais fotografado do século XIX (2015), organizado por John Stauffer, Zoe Trodd e Celeste-Marie Bernier, e Verdades duradouras: sombras e essência de Sojourner (2015), de Darcy Grimaldo Grigsby. Aqui se entende a potência perturbadora da presença de Diop nessas imagens.

A presença não combina, é surpreendente e, por isso, chega a provocar um sorriso: um imprevisto em uma previsibilidade rígida. Na verdade, trata-se de não subestimar o poder do humor para falar de coisas sérias. O gracejo que a performance provoca funciona como um revelador, ao menos nas primeiras imagens, pois o acúmulo – o ensaio original tem quase 50 fotos – provoca outra sensação, mais assustadora do que cômica. Depois de algumas páginas, instalam-se sentimentos de mal-estar e de desconforto, e então passamos a recear pela integridade dos personagens interpretados por Diop. Como no filme de terror de Jordan Peele, Corra! (2017), tememos por esse homem negro que passeia pelo dia a dia dos habitantes da América branca. Seria ele uma ameaça à estabilidade normativa representada, ou seriam eles uma ameaça a esse homem?

A pergunta permanece em aberto. O certo é que, por meio desse gesto colaborativo, Shulman e Diop propõem uma nova maneira de fazer imagens que agitam a mente, mirando questões de representação e as suposições – estereótipos? – que as cercam. Não é nada confortável a decisão de falar de diferença e de racismo, e esse projeto demonstra isso; no entanto, também afirma que o desconforto não é motivo para que o silêncio tome seu lugar. Não nos enganemos: a leveza do tom não impede Estar lá de ser uma crítica social feroz, uma sátira sem receio nem medo. ///

Tradução do francês de Mariana Defini. Imagens: © Lee Shulman & Omar Victor Diop.

Publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #28, disponível na loja virtual do IMS.


Lee Shulman (Londres, Inglaterra, 1973) é cineasta. Criou o Anonymous Project, pelo qual publicou Déjà View (Hoxton, 2021), com Martin Parr, Being There (Textuel, 2023), com Omar Victor Diop, e Midcentury Memories (Taschen, 2023).

Omar Victor Diop (Dakar, Senegal, 1980) é fotógrafo. Sua série Fashion 2112, le futur du beau foi exposta na 9a edição da Bienal de Fotografia Pan-Africana Encontros de Bamako (2011). Autor das obras The Studio of Vanities (2012), Diaspora (2014), Liberty (2016) e Allegoria (2021).

Taous Dahmani (Paris, França, 1990) é historiadora de arte, escritora e curadora de nacionalidade francesa, britânica e algeriana. Editora da revista The Eyes e curadora do Festival Photo Oxford, é professora associada da Universidade de Artes de Londres desde 2023.

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Being There, de Omar Victor Diop & The Anonymous Project (Textuel, 2023)

Family History Memory: Recording African American Life, de Deborah Willis (Hylas, 2005) “Troubling Portraiture: Photographic Portraits and the Shadow Archive”, de Tina M. Campt, em Imagining Everyday Life: Engagements with Vernacular Photography, de Tina M. Campt, Marianne Hirsch, Gil Hochberg e Brian Wallis (orgs.) (Steidl/ The Walther Collection, 2020)



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