Paisagens epidérmicas
Publicado em: 28 de novembro de 2024Vera Chaves Barcellos é figura crucial na arte contemporânea brasileira, com longa trajetória de experimentação e exploração dos limites da linguagem fotográfica e da imagem reprodutível. Um dos trabalhos mais paradigmáticos de sua carreira é a série Epidermic Scapes, desenvolvida entre 1977 e 1982 – período em que a artista gaúcha participava do grupo Nervo Óptico (1976-78), reunião informal de artistas interessados na exploração da linguagem fotográfica de modo crítico e irônico.
Em 1975, Barcellos recebeu uma bolsa do British Council para pesquisar gravura e fotografia no Croydon College, em Londres. Essa experiência foi central para o desenvolvimento de sua obra, que, a partir de então, passou a ter na imagem fotográfica seu principal meio de expressão. O potencial desse suporte para a reprodução e a manipulação ofereceu à artista uma ferramenta para investigar a natureza das imagens e expandir suas possibilidades criativas.
Em Epidermic Scapes, Barcellos transforma o corpo humano em um campo de experimentação artística. Ela aplica tinta preta à própria pele e à de outras pessoas e imprime o corpo contra um pequeno pedaço de papel vegetal, depois usado como um negativo em um ampliador fotográfico. A fotografia resultante revela uma imagem quase abstrata do corpo. Nas primeiras obras da série, Barcellos utilizou um papel especial com fundo prateado, proveniente da Espanha, conferindo às fotografias um efeito metálico que embaralha seu caráter realista e as aproxima de imagens técnicas e científicas. Esse fundo prateado, ao imprimir os detalhes da pele, cria uma sensação de profundidade e escala que faz o corpo se assemelhar a uma paisagem.
Barcellos atribuiu à série um título provocativo, sem resistir ao jogo de palavras em que a pele toma o lugar da topografia. Para a artista, as paisagens epidérmicas dizem respeito àquilo que está na superfície. Ela não está interessada em questões de intimidade e subjetividade, em símbolos ou projeções psicológicas; o que importa é investigar uma maneira nova de olhar e documentar a infinita variedade do corpo humano, sua materialidade, suas marcas e vistas potenciais.
A obra representa um ponto de virada na exploração da identidade e da corporeidade na arte, expandindo a definição de paisagem para incluir a pele humana como um território, uma topografia e um universo em si mesma. Epidermic Scapes pode ser comparada à obra do artista Hudinilson Jr., especialmente a série Exercício de me ver (1980-84). Hudinilson Jr. também explora a corporeidade, mas sua abordagem é por meio da introspecção e da autoimagem; a fotografia e a fotocópia estimulam uma reflexão sobre a identidade e a percepção pessoal, com base no autoerotismo. Em contraste, a prática de Barcellos concentra-se na transformação do corpo como objeto íntimo, biográfico, em acidente geográfico, universal, dissolvendo a fronteira entre a introspecção do eu e a extroversão do cosmos.
Essas fotografias oferecem uma nova perspectiva sobre a relação entre o corpo e o ambiente. A pele, um elemento tão íntimo e individual, se transforma em um vasto relevo, como uma vista aérea tomada de grande distância. Assim como as fotos da Terra captadas do espaço podem parecer estruturas epidérmicas e microscópicas, as impressões da pele recortadas e ampliadas, sem a referência da escala humana, assumem uma qualidade topográfica, em que se imaginam os contornos da hidrosfera, da biosfera e da litosfera.
Na transição da escala pessoal para a escala cósmica, a derme revela padrões e texturas que podem ser associadas à superfície do planeta, evocando correspondente sensação de grandeza. Essa ambivalência desafia a percepção do corpo como um espaço íntimo e convida o espectador a considerar, a partir da própria pele, a relação entre o micro e o macrocosmo, o pessoal e o universal, o pontual e o infinito. ///
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O estranho desaparecimento de Vera Chaves Barcellos (Fundação Iberê, 2023)
Vera Chaves Barcellos: obras incompletas, de François Soulages (Zouk, 2009)
Vera Chaves Barcellos (Porto Alegre, RS, 1938) é artista, desenhista e professora. Expôs na 37a Bienal de Veneza e na 14a Bienal de São Paulo, em 1976, e no 3o Salão Paulista de Arte Contemporânea (1985). Fundadora do grupo Nervo Óptico (1976-1978) e da galeria Obra Aberta (1999-2002).
Fernanda Pitta (Curitiba, PR, 1973) é curadora e pesquisadora. Professora do MAC-USP. Foi curadora das exposições: Trabalho de artista: imagem e autoimagem (1826-1929) (Pinacoteca de São Paulo, 2018) e Eleonore Koch: espaço aberto (MAR, 2022), entre outras.