Máquinas ancestrais
Publicado em: 6 de maio de 2024
Sou o encontro de dois mundos, um mundo ancestral versus um mundo “civilizado”. Um encontro que claramente promove um embate e que termina enterrado pelas máquinas da tal civilização, onde humanos e máquinas se fundem em um só corpo. Onde os olhos são máquinas de desejo. Só desejamos o que vemos. Vemos o mundo pela perspectiva das máquinas. E os homens têm tido cada vez menos capacidade de ampliar a sua visão primária e imaginária, levando-os a aceitarem ou até mesmo desejarem uma visão domesticada por uma civilização robotizada.
O que é civilizado? Ser civilizado é ser atencioso? Agradável? Refinado? Respeitoso? Educado? Polido? Sociável?
Ei, você gosta mesmo de ser civilizado? De ter sido alfabetizado? E ser esclarecido, intelectualizado, doutrinado e preparado?
A nossa educação colonizada é realmente o que podemos chamar de civilizada? Será que chegamos ao fim? O fim existe?
O fim é o que nos tornamos, é uma passagem para começar de novo. Me pergunto: o que seremos capazes de enxergar daqui a 20 anos? Será que ainda teremos visões próprias?
Uma última pergunta: como é ser civilizado?
Zahy Tentehar, em Karaiw a’e wà (Os civilizados, 2022)
Lutar para existir é carregar consigo todas as histórias e vidas de uma consciência formada a partir do impacto das relações com o outro. O outro, aquele que é diferente – seja em cultura, civilização, nacionalidade, gênero, aparência, linguagem, crença, realidade –, é essencial para que as trocas possam se estabelecer. Só é possível se ver quando se enxerga os demais. Sem isso, estamos sós. O trabalho de Zahy Tentehar reconhece isso ao invocar, em movimento contínuo, sua perspectiva e seu corpo, ligado por pertencimento e identidade cultural ao povo Tentehar – conhecido como Guajajara –, e seus atravessamentos com o mundo urbano ocidental. Sua arte se apresenta como caminho para o enfeitiçar e o encantar. Não é um escambo de espelhos, mas um espelho da história, que, como um abismo, observa e é observada.
Com um currículo diversificado como atriz de cinema e de televisão, Tentehar interpretou uma das protagonistas na segunda temporada da série Cidade invisível (2023), da plataforma de streaming Netflix. São poucos, no entanto, os que conhecem sua trajetória como militante e multiartista. Nascida na aldeia Colônia, Terra Indígena Cana Brava, no Maranhão, em 1989, ela foi alfabetizada em Barra do Corda, no mesmo estado, onde atuou como agente de saúde, ajudando mulheres grávidas. Aos 18 anos, se mudou para o Rio de Janeiro e obteve destaque como ativista dos direitos indígenas. Foi também no Sudeste do país que pôde se descobrir como atriz e desenvolver ainda mais sua arte, produzindo obras poéticas, audiovisuais e musicais.
Em 2023, seu espetáculo autobiográfico Azira’i foi indicado ao 34º Prêmio Shell de Teatro, a mais tradicional premiação da cena teatral brasileira, nas categorias de Dramaturgia e Atriz. Com texto assinado por Tentehar e Duda Rios, e direção de Denise Stutz e Rios, esse solo inédito e surpreendente se concentra na relação da artista com sua mãe, Azira’i, a primeira mulher pajé de sua comunidade. Para contar sua história, Tentehar se confronta com o violento processo de transformação cultural vivido pela mãe, sua ancestral imediata, que lhe legou as tecnologias de cura das plantas, das mãos e dos cantos.
Ao mesmo tempo que defende a preservação das tradições ancestrais em suas obras, Tentehar amadurece múltiplos universos de sentidos e questiona a “civilização” que foi incapaz de respeitar outras formas de existência dos povos originários. “Nossa sociedade primeira foi jogada em uma educação civilizatória, quase como se nós, indígenas, não tivéssemos civilização antes dessa outra civilização que invadiu este país, estas terras. Tentaram nos re-civilizar, porque nos impuseram uma nova civilização. Eu questiono isso, ao invés de sublinhar. Em todos os meus trabalhos, busco causar um efeito em quem assiste, para que a pessoa também possa se perguntar coisas e buscar respostas”, comenta a artista em entrevista concedida especialmente para a ZUM.
A memória, para Tentehar, é um lugar de reflexão acessado por diferentes perspectivas e temporalidades. Familiares dela que têm deficiência visual e o diagnóstico do seu filho dentro do espectro autista (TEA) influenciam sua percepção do mundo, levando-a a investigar outras formas de linguagem e outros sentidos. Valendo-se da linguagem sensorial, de sua língua materna, ze’eng eté (“fala boa/verdadeira”, do tronco tupi-guarani), e do português, a artista mostra a existência das memórias ancestrais e de suas experiências – sua convivência com essas memórias. “São duas memórias”, observa. “Primeiro, tem a nossa memória genuína, a ancestralidade, que não é só o lugar de onde a gente vem, mas as pessoas que viveram até chegar na gente, suas histórias. E, depois, tem a memória atravessada por esse sistema no qual fomos jogados, onde é preciso aprender a reexistir, a criar um novo formato de vida para se adaptar e sobreviver.”
Em Aiku’è zepé (Ainda r-existo, 2021), Zahy manifesta suas inquietações como uma mulher Tentehar; seu corpo é a terra, a natureza, e a natureza é seu corpo. A lama gera o alimento, permitindo a esse corpo enterrado pela sociedade – que impõe o apagamento de sua identidade – se levantar do útero, da sua origem, onde descansa e desperta. Nele, vemos a representação da morte e do nascimento; renascer é nascer ou existir. O movimento desse corpo, respirando sob folhas secas, lembra as vidas e as histórias que, como a personagem, parecem secas, mas voltam para dentro da terra, nascendo de novo.
Em uma estrutura narrativa circular, o gesto da artista é acrescentar, desfazer e repor camadas de informações simbólicas sobre seu rosto. Ao erguer-se da terra, lava a lama com a água do rio e pinta em seu corpo grafismos que mostram sua identidade e evidenciam sua luta para não ser doutrinada pelo modus operandi e pelas estéticas ocidentais que censuram a todo momento as culturas e os modos de ser indígenas, forçando-os a uma integração. A seguir, Tentehar espalha o pigmento preto pela face – à maneira da manifestação de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte em 1987. Então, ela se lava de novo e aplica gloss, delineador, rímel e um curvex, que, ao ser usado, produz o som de uma tesoura. Sobre a maquiagem, reveste-se enfim de lama e folhas secas, tematizando a sobrevivência em meio às violações de direitos e ao rastro de caos deixado pelo homem civilizado, que cerceia os movimentos vitais na tentativa de colonizar os corpos nascidos livres, filhos da terra que continuamente os abraça e os gera.
Na narrativa que emerge da terra, o canto e o poder das palavras em ze’eng eté guiam o despertar ancestral como encantamento do corpo, em sua territorialidade e lembrança dos antepassados em toda a jornada coletiva de retorno à existência. Tentehar encena o encontro com a própria ancestralidade em transformação e o orgulho da identidade indígena como proteção aos ataques da civilização, que tenta ditar comandos. Em vez de permanecer presa ao passado, a ancestralidade em tudo se transforma e atualiza. Seu corpo é capaz de gerar também outras vidas, não apenas de ser gerado. Percebemos, apenas no final do vídeo, que ela está grávida. Vemos poder e protagonismo feminino na maternidade herdada da terra.
No curta-metragem Karaiw a’e wà (Os civilizados, 2022), desenvolvido como videoinstalação para a exposição Nakoada: estratégias para a arte moderna, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), mais uma vez Tentehar revela sua experiência. Sua voz em off comenta em português: “Sou o encontro de dois mundos: um mundo ancestral versus um mundo ‘civilizado’. Um encontro que claramente promove um embate e que termina enterrado pelas máquinas da tal civilização, onde humanos e máquinas se fundem em um só corpo.”
Karaiw, que dá título à obra, é o não indígena, ou civilizado, questionado por ter criado o imaginário da personagem indígena como bárbara e selvagem. O olhar sobre o mundo é construído da perspectiva das máquinas, que geram desejo e incapacidade nesse ser “civilizado”, preso a uma visão domesticada. Esse espelho da essência que são os olhos, tão presentes no vídeo, observam e lançam flechas invisíveis a quem assiste, a cada pensamento que a protagonista elabora sobre a invenção dessa civilidade que robotiza todas as pessoas, não apenas as indígenas.
Esse corpo-máquina opera em um tempo não humano. A personagem desfila pela maquinaria com grafismos no rosto, trazendo mais uma vez a identidade cultural de um ser submerso na máquina. Enquanto o pensamento civilizado narcotiza os sentidos humanos e os instintos, vemos a higienização do espaço em sua roupa de proteção contra contaminações, nos arquivos que, como memórias ancestrais, estão guardados em caixas de papelão; e também nas prateleiras vazias, sobre as quais ela despeja restos industriais, usando uma máscara facial descartável e uma viseira de proteção. A personagem reage à robotização acendendo seu espírito e resgatando sua memória ancestral por meio do fogo. Saindo de dentro dela, as chamas aumentam assim que a personagem se retira dessa ambientação de tecnologia ocidental.
O interesse por tecnologia aparece também em Máquina ancestral: Ureipy (2023), uma continuação de Karaiw a’e wà. Nessa ousada videoperformance de ficção científica, Entidade Robótica, uma personagem que deseja tornar-se humana, percorre um espaço em ruínas, abandonado. Ela viaja para esse lugar em busca de sua identidade ancestral, que se perdeu com o tempo, e, em vez de apresentar uma reflexão pronta sobre essa questão, convida quem vê a experimentar sensações e gatilhos. A realidade construída pela artista opera de maneira semelhante a um metaverso, mostrando o humano versus a máquina e a tecnologia ancestral como ferramenta de sobrevivência. Ressignificação é uma forma de re-existência, é como viver dentro e fora de si, habitar diferentes lugares do pensar e do ser, sem abandonar aquilo que se é. É possível fazer trocas com o sistema, do qual não se foge, mas pelo qual se encanta; transformar o sistema em uma máquina ancestral é usá-lo a nosso favor.
Preocupada com o futuro, essa máquina de memórias dá novo sentido à ancestralidade, não mais congelada no passado. A tecnologia dos karaiw e ferramentas como livros, espetáculos teatrais e produções audiovisuais também servem a Tentehar para narrar histórias indígenas no presente. “Eu sou parte deste sistema, também me tornei uma máquina, mas uma máquina ancestral, todos que vieram antes de mim estão em mim, eles não morreram, eles continuam vivos através de mim”, observa a artista. Resgatar os saberes milenares é, afinal, salvar a humanidade da desumanização, da falência dos sentidos e do rompimento da conexão com suas cosmologias para existir hoje. ///
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Cenas dos filmes Aiku’è zepé (Ainda r-existo, 2021), Karaiw a’e wà (Os civilizados, 2022) e Máquina ancestral: Ureipy (2023)
Fichas técnicas:
Aiku’è zepé [Ainda r-existo] de 2021. Artista: Zahy Tentehar; Direção: Mariana Villas-Bôas; Criação e Roteiro: Zahy Tentehar e Mariana Villas Boas; Fotografia: Leandro Pagliaro. Montagem: Raquel Couto; Colorista: Juliana Muniz; Assistente de pós-produção: Ivan Ignacio.
Karaiw A’e Wà [Os civilizados] de 2022. Artista e criadora: Zahy Tentehar; Criação e direção: Zahy Tentehar, Daniel Wierman, Marcelo Hallit e Philipp Lavra; Direção de fotografia: Marcelo Hallit; Edição e cor: Breno BL; Desenho de som e trilha original: Pedro Zopelar; Texto e voz: Zahy Tentehar; Produção: Candombá.
Ureipy [Máquina Ancestral] de 2023. Criado por Zahy Tentehar; Filme de Zahy Tentehar e Candombá; Direção criativa: Zahy Tentehar e Candombá (Daniel Wierman, Marcelo Hallit e Philipp Lavra); Produtor executivo: Daniel Wierman; Efeitos visuais e cenografia: Modular Dreams (Priscilla Cesarino e Danilo Barros), Danilo Rosa e Marcelo Hallit; Primeira assistente de câmera e logger: Isadora Relvas; Operador de steadicam: Murillo Henrique, Breno BL; Trilha sonora e sonoplastia: Pedro Zopelar; Fotos de estilo: Philipp Lavra e Isadora Relvas; Gradação de cores: Isabela Moura; Figurinista: Rosina Lobosco; Maquiadora: Camila Machado; Direção de movimento: Elaine Erhardt Rollemberg; Produtor de cenário: Luiz Felipe Bianchini; Catering: Sandra Godoy; Produtora artística: Elaine Erhardt Rollemberg; Gaffer: Bruno Obara; Elétrica: Heitor Nogueira; Motorista: Marco Diogo. Agradecimentos especiais: Pedro Neves Marques, Marcela Petrus, Touts, The Paradise Rio, Ticiana Passos.
Renata Tupinambá (Niterói, RJ, 1989) é jornalista, poeta, roteirista, curadora e produtora. Criadora da Originárias Produções, é curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo. Foi cofundadora da Rádio Yandê e curadora do Escuta Festival no IMS Rio (2022 e 2023).
Zahy Tentehar (Colônia, território indígena Cana Brava, MA, 1989) é multiartista indígena, premiada como melhor atriz do RJ pelo Prêmio Shell (2024). Zahy é artista criadora dos filmes Aiku’é (2017), Exak wi (2022), Karaiw a’e wà (2022) e Ureipy (2023), expondo-os através de vídeos-instalações solo para o Canal Project-NY e SESC-BR. Em coletivo, expôs para New Museum-NY, MAM-BR, MAR-BR, MASP-BR e CasaFestival-UK. Atua na novela Rancho Fundo (2024 – Globo) do diretor Allan Fiterman, atuou na série Dois Irmãos (2017 – Globo) e O sono do homem branco (2022 – TV Cultura), do diretor Luís Fernando Carvalho. Protagonizou Cidade Invisível (2022 – Netflix), por Carlos Saldanha. No Cinema, fez Uýra: a retomada da floresta (2022) de Juliana Curi, Zahy: uma fábula do Maracanã (2012) e Não Devore Meu Coração (2017), com direção de Felipe Bragança, com quem tem nova parceria como co-diretora e atriz para uma releitura de Macunaíma para o cinema em breve.