Estética sapatão
Publicado em: 8 de agosto de 2025
Em São Paulo, bem perto do centro da cidade, existiu um bar conhecido como Ferro’s. No final dos anos 1960, o espaço começou a ser frequentado por lésbicas. Era um dos únicos (ou talvez o único) lugar público onde mulheres que amavam mulheres podiam conviver com alguma liberdade.
Ao lado dele, a boate Dinossauros também viraria reduto sapatão, mas era um ambiente mais escuro e mais clandestino, o que mantinha o caráter sigiloso e proibitivo dos encontros. Já o Ferro’s Bar dava à lésbica a sensação de que aquele modo de vida era legítimo. Mesas, cerveja, conversas, abraços, paixões, amores. Um bar, enfim.
Em 1978, a fotógrafa Rosa Gauditano, então com 23 anos, recebeu a missão jornalística de ir até o Ferro’s e fotografar as frequentadoras. A pauta foi ideia de alguém da revista Veja, um dos principais veículos de imprensa na época. Mergulhado em uma ditadura, o Brasil proibia o lesbianismo a ponto de prender, torturar e até matar mulheres que ousassem exercer sua sexualidade.
A violência policial e judicial demonstra a dimensão heroica dessas frequentadoras do Ferro’s. E, embora a matéria encomendada a Gauditano nunca tenha sido publicada – por motivos que parecem óbvios, dado que vivíamos em um estado de vigilância e exceção –, os registros acabariam ganhando outra vida.
É curioso pensar que um acontecimento pode ser medido não por seu resultado imediato, mas pelas possibilidades que inscreve no tempo, como ensina o professor Vladimir Safatle. A pauta rejeitada, mesmo depois de encomendada, não era, desde o princípio, apenas uma pauta. Era, sabemos hoje, a fresta que precisava ser aberta na estrutura perversa de uma sociedade heteropatriarcal, baseada no regime violento da discriminação sexual.
As imagens em branco e preto revelam a estética de um movimento de amor e resistência. Os abraços, os olhares, os cigarros, os jogos de sinuca, a linguagem corporal que evocava liberdade enquanto comunicava petulância e confiança: está tudo ali, no trabalho histórico de Gauditano.
Em uma das fotografias, uma mulher está levemente inclinada sobre a mesa de bilhar, no que parece ser a iminência de uma tacada. A mão direita segura firme a parte mais larga do taco, enquanto a esquerda busca equilibrá-lo sobre a borda de madeira da mesa. Um movimento banal para quem joga, que, na imagem de Gauditano, ganha a exuberância que só a liberdade ousa revelar. Camisa social por dentro da calça, o olhar perdido em um ponto enigmático, a protagonista é alguém que, provavelmente, só naquele bar se permitia se revelar.
Por dois meses, Gauditano voltou ao Ferro’s. Por dois meses, ela se misturou às mulheres que entravam ali para encontrar a si mesmas e registrou esses momentos de emancipação, de encontros e de alegrias.
Observar as lésbicas das décadas de 1960, 1970 e 1980 é compreender a importância da coragem que elas tiveram. Não estaríamos aqui, hoje, ocupando outros lugares e outros bares, se essas mulheres não tivessem ousado peitar todo um sistema opressor e repressor. E, se ainda falta muito para que conquistemos alguma ordem de igualdade e visibilidade, é certo que faltaria ainda mais sem as frequentadoras do Ferro’s Bar.
No dia 19 de agosto de 1983, quando a ditadura dava sinais de que sairia de cena, o Ferro’s foi palco de uma manifestação contra a discriminação no Brasil, a primeira desse tipo. O Grupo Ação Lésbica Feminista invadiu o bar, fechou as portas, e suas fundadoras começaram a discursar. O ato foi motivado pela proibição determinada pelo proprietário do estabelecimento de que se distribuísse lá dentro o boletim Chanacomchana. O grupo então organizou o protesto e invadiu o Ferro’s.
Esse evento é considerado o “Stonewall lésbico brasileiro”. Stonewall Inn é o nome de um bar em Nova York em que a comunidade gay realizou um levante contra a polícia, que reprimia, prendia e torturava a comunidade LGBTQIAP+. A Rebelião de Stonewall aconteceu em 28 de junho de 1969, e é mundialmente famosa. O levante lésbico brasileiro só mereceu reconhecimento oficial em 2008, quando a Assembleia Legislativa Paulista (Alesp) aprovou o Dia do Orgulho Lésbico no estado de São Paulo.
Eu cresci lésbica nos anos 1980, sem conhecer a história do Ferro’s, sem conhecer o rosto das mulheres que abriram portas para que eu pudesse existir, sem ter a chance de me orgulhar da pessoa que eu estava me tornando.
O apartamento onde me entendi sapatão – e onde passei minha adolescência – ficava a menos de quatro quilômetros do Ferro’s. O cursinho onde me preparei para o vestibular, em 1983, ficava ao lado, e, ainda assim, eu não sabia que havia em São Paulo um lugar para pessoas como eu. Era uma época em que eu tinha certeza de que precisaria me esconder para sempre se um dia tivesse coragem de dar vazão ao que sentia por mulheres.
As imagens das frequentadoras do Ferro’s me levam de volta a essa época. Estávamos bem perto umas das outras, mas ainda em um mundo que nos dizia que éramos equívocos, aberrações, patologias sociais.
Os registros de Gauditano congelam no tempo algumas noites nas quais amar era permitido. Nas quais mulheres podiam se reunir em volta de uma mesa de bar ou de sinuca e exercer seu direito à liberdade. Da porta do Ferro’s para fora, a sociedade continuava operando com os métodos opressores e repressores de sempre, reproduzindo dia após dia o regime da discriminação sexual. Da porta para dentro, havia um horizonte perdido e encontrado. Novas formas de amar, de viver e de ser. Um mundo no qual mulheres que amavam mulheres podiam relaxar, olhar umas às outras e compreender que faziam parte de uma comunidade, que não existiam isoladamente, que pertenciam a ela.
Em uma das fotografias que Gauditano fez no Ferro’s, podemos ver cinco amigas em volta de uma mesa, coberta de garrafas de cerveja e copos meio cheios, enquanto o grupo, abraçado, sorri e gargalha. É a captura de um momento de pura liberdade e exaltação. Uma cena que seria apenas corriqueira em outros bares da cidade frequentados por homens, mas que, por todas as circunstâncias que envolviam a clandestinidade, ganha no Ferro’s a dimensão de um monumento. As lésbicas ali reunidas podiam fazer o que, do lado de fora, seria proibido: comportar-se como só era permitido aos homens, esbanjar a alegria dos homens, beber em público como só aos homens era moralmente aceitável.
O trabalho artístico de Gauditano no Ferro’s trouxe legitimidade a formas de existir e de amar que eram interditadas, humanizando aquele grupo coisificado e fulanizado de pessoas: o das lésbicas.
Quais outros grupos de pessoas terão de ser coisificados para que nos percebamos, enfim, como uma mesma espécie habitante deste planeta perdido no Cosmo, vagando pelo infinito, flutuando sem rumo pela vastidão do escuro desconhecido? Quantos entre nós ainda terão de morrer pelo abandono, pela discriminação e pela exclusão, para que passemos a apoiar uns aos outros a enfrentar a complexa experiência de existir, sabendo que um dia acabaremos e que, antes de acabarmos, perderemos amores e relações?
Nossas histórias são as dos seres humanos que lutaram por emancipação. São as histórias das pessoas que, sozinhas, enfrentaram o inimaginável, sabendo que não venceriam aquela batalha, mas abririam caminhos para que ganhássemos a guerra. Existe uma Palestina no interior de cada grupo social marginalizado, assim como existe uma dimensão do Holocausto dentro de cada um daqueles que abandonamos, torturamos, sufocamos e matamos apenas por considerarmos que pertencem a grupos diferentes de nós.
Aquele que amarra as cordas está tão preso quanto aquele ao redor do qual as cordas foram amarradas, escreve Paul Preciado, filósofo trans. O regime da diferença sexual limita nossa percepção – diz Preciado –, nossa forma de sentir e, portanto, de amar. Limita também o campo do que conseguimos enxergar e nossa linguagem.
Para os que foram capazes de enxergar as amarras que nos oprimem, a pergunta passa a ser: mas como a gente se emancipa? Qual é o caminho? As imagens das mulheres no Ferro’s Bar oferecem uma pista.
Na história das civilizações, há relatos de sociedades de todos os tipos: igualitárias, socialistas, híbridas – autoritárias no inverno e igualitárias no restante do ano –, matrilineares etc. Não existe, como muitos acreditam, um momento da história universal em que o homem caça e a mulher cuida da casa. Esse foi um dos muitos arranjos possíveis, e, mesmo nele, há variáveis (homens e mulheres caçam e avós cuidam, por exemplo).
Nas cartas dos jesuítas que chegaram ao Brasil com os primeiros colonizadores portugueses, há relatos de sociedades que criavam os filhos sem saber a que pais as crianças pertenciam. Abordado por um jesuíta que considerava esse método uma aberração, um habitante originário responde: que importa saber quem é o pai? Todos são nossos filhos e devem ser criados pela comunidade.
Entre os muitos trabalhos violentos executados pelos jesuítas colonizadores, estava a doutrinação do que era ser homem. Não demorou para que algumas sociedades começassem a registrar casos de violência contra mulheres e crianças, que passaram a ser disciplinadas de acordo com as novas ideologias coloniais.
As ideias vigentes do que é ser homem e do que é ser mulher surgem com a noção de propriedade e se aprofundam com o colonialismo e a industrialização, que, não coincidentemente, dão origem ao capitalismo.
Mas neste ponto precisamos fazer um recorte de raça: quando o regime binário da diferença sexual estava sendo instalado – não por acaso, na mesma época em que o colonialismo fincava suas garras no mundo –, ele se aplicava às mulheres europeias. Enquanto a mulher escravizada era tomada por sexualmente pervertida, forte, resistente à dor e cheia de energia, a mulher branca era considerada passiva, frágil, recatada e honrada. As características de gênero mudam conforme a necessidade do opressor. Essa distinção faz com que o feminismo negro, até hoje, tenha que lutar pelo direito de receber doses decentes de anestesia em procedimentos cirúrgicos, por exemplo.
Assim, um feminismo que desconsidera essas dimensões da luta não pode ser chamado, de fato, de feminismo. Um feminismo que não leva em conta a discriminação da mulher muçulmana na Europa, que não luta ao lado das travestis e que ignora os direitos das mulheres trans não vai resolver coisa alguma para nenhuma de nós.
É preciso observar com muita atenção as fotografias eternizadas pelas lentes de Gauditano no Ferro’s Bar. Investir tempo olhando aquelas mulheres, seus gestos, seus sorrisos, suas posturas, suas atitudes, seus olhares.
Assim como é preciso parar e fitar o olhar das mães palestinas em meio aos escombros, o olhar das mulheres e das crianças nas filas em Auschwitz, o olhar das mulheres deslocadas pela guerra no Congo e o olhar das mães e de seus filhos e filhas durante o apartheid sul-africano, o olhar das mães negras periféricas que, todos os dias, enterram seus filhos nesta terra chamada Brasil.
Pessoas alienadas de uma vida, forçadas a se esconder, a se calar. Olhar com atenção cada rosto e cada expressão. Essa é a beleza do registro fotográfico jornalístico. Com o tempo, a gente entende perfeitamente o que está vendo: nós mesmos. ///
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Publicado originalmente na revista ZUM #26, disponível na loja virtual do IMS.
Leia também no site da ZUM:
As fotografias de Rosa Gauditano e as greves do ABC no final dos anos 1970, por Erika Zerwes & Rosa Gauditano
Rosa Gauditano e as lésbicas do Ferro’s bar e da boate Dinossauros, por Luana Navarro & Rosa Gauditano
Debate no Festival ZUM 2023 – Autoritarismo na mira, com Gabriela Biló e Rosa Gauditano
Rosa Gauditano (São Paulo, SP, 1955) é fotógrafa, graduada em vídeo digital pela Universidade Paulista. Trabalhou para a Folha de S. Paulo e para a Veja. Diretora do Studio R, é fundadora da Agência Fotograma. Em 2023, participou da 35a Bienal de São Paulo.
Milly Lacombe (Rio de Janeiro, RJ, 1967) é jornalista, escritora e roteirista. É colunista na revista TPM e no UOL. Foi colaboradora da Folha de S. Paulo em Los Angeles, EUA, e atuou como comentarista esportiva no SporTV e na Rede Record.