Etnografia branca
Publicado em: 26 de outubro de 2023A ambiguidade do círculo
No começo, era o Caos; havia Tudo, e também o Nada. Na mitologia egípcia, em um tempo imemorial, o deus criador kemético Atum-Rá, emanação cósmica feminina e masculina, criou o Universo na forma de um ovo. O termo “Egito” significa “terra abaixo do Egeu”, segundo os povos helênicos que conquistaram esses territórios. A civilização originária do Egito se autodenominava “Kemet”: “terra dos homens pretos” ou “terra negra”. Entretanto, essa é uma história de epistemicídio. A fabulação de uma Europa como centro universal da história do conhecimento, oriunda da civilização greco-romana, deu-se durante o período romântico alemão, no final do século 18.
Para os povos de língua iorubá, Olodumarê, o Onipotente, criou o Universo por meio do entrelaçamento de sete serpentes, formando a cabaça da existência. O Céu. A Terra. As águas. Nascia o Mundo e a ciclicidade da Vida. A humanidade é gerada pelo ato primordial de dar forma à materialidade moldável do barro.
Assim como irúnmolè Oxumaré, a grande serpente que envolve a Terra, devora a própria cauda, em um processo ininterrupto de transformação da existência, os gestos que conduzem a investigação do artista Paulo Nazareth se traduzem em uma contraetnografia.
Nêgo Bispo, poeta e ativista piauiense do Quilombo do Saco-Curtume, aborda a noção de contracolonização como um movimento de resistência às violências sistêmicas da colonização europeia sofridas por povos africanos e pindorâmicos, que não se deixaram dominar no Brasil. Na série Etnografia branca (2019-22), Nazareth se apropria de arquivos etnográficos de diferentes instituições, que, por meio de fotografias, classificam pessoas subalternizadas em suas dinâmicas sociais e culturais – uma metodologia colonial, com tecnologias específicas, de inventariar o Outro. Os círculos brancos sobre as fotos, feitos com efum (giz africano), remetem à figura da galinha-d’angola e afugentam a morte representada pela produção documental etnográfica, que funciona em uma lógica de embate entre a memória e o esquecimento.
Homem velho nascido no território indígena de Borun Nak, em Governador Valadares (MG), Nazareth retoma, em seus primeiros trabalhos, a história violenta de ocupação colonial dessa região do Vale do Rio Doce, território original de povos Borun.
“Tudo isso eh meu lugar de nascimento em diferentes tempos, gosto de pensar que uma parte de mim nasceu com minha maN’e lah no inicio dos anos 1944 y outra parte com a maN’e de minha maN’e no inicio dos anos 1910.”
Nesse ínterim, aconteceu um golpe de Estado, a Revolução de 1930, com a participação de líderes políticos de Minas Gerais, da Paraíba e do Rio Grande do Sul. A Era Vargas perdurou por 15 anos. Após a decretação de uma nova Constituição, em 1937, governadores foram destituídos de seus cargos e substituídos por interventores federais. Um desses interventores foi o advogado Benedito Valadares Ribeiro (1937-45). Em meio a articulações de alianças políticas, o médico Juscelino Kubitschek foi nomeado prefeito de Belo Horizonte (1940-45). Durante sua gestão, convidou o arquiteto carioca Oscar Niemeyer para elaborar o projeto do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, que visava à modernização da cidade, e que foi inaugurado em 1943. Quando JK tornou-se presidente, em 1956, chamou Niemeyer para dar continuidade ao projeto modernista, com a construção de diversos edifícios na capital Brasília, inaugurada em 1960.
Ana, a mãe de Nazareth, deslocou-se de Borun Nak com a família, nos anos 1980, para trabalhar em uma residência no bairro nobre das Mangabeiras, próximo ao antigo palácio onde residiam os governadores do estado, na região centro-sul de Belo Horizonte.
“No poraN’o da casa nobre, os quartos dos empregados ficavam no nível baixo da casa, exatamente no subsolo, um nível abaixo do canil, da janela dos dormitórios, víamos as pernas dos caN’es y sentíamos o cheiro das fezes y urina canina.”
Após um mês, a família se transferiu para a roça, na cidade de Curvelo e, depois, para Vila Cafezal, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. Por fim, mudaram-se para o Conjunto Palmital, antiga fazenda com mão de obra escravizada, construído pela Companhia de Habitação de Minas Gerais, em Santa Luzia. Foram morar em uma pequena casa geminada no setor 7, apelidado de Caldeirão do Inferno, “o lugar mais afastado do conjunto habitacional y bem próximo a uma das antigas sedes da fazenda”.
Esse contexto histórico e essa trajetória pessoal se projetam nos panfletos Qué ficar bunito (2005) e Important Public Notice (2006). A partir da residência artística no Museu de Arte da Pampulha – antigo cassino projetado por Oscar Niemeyer –, em 2004 e 2005, Nazareth investigou a relação entre modernismo e arquitetura na cidade de Belo Horizonte, assim como os impactos do discurso modernista em seu próprio “futuro próspero”.
Sua exposição no museu, em 2006-07, estabeleceu novas relações conceituais para o “círculo branco” da modernidade: o círculo branco dos artistas, curadores, críticos, arquitetos; o círculo branco canônico da história da arte, com seu universalismo; das narrativas tornadas oficiais; do Concretismo – o Geometrismo na arte. Em contraposição a tudo isso, surge a pinta branca sobre o corpo negro da galinha-d’angola (etù): o círculo branco como gesto primordial de Obatalá (Rei Vestido de Branco), para afugentar a morte (ikù).
A galinha-d’Angola
“…..a gente do lugar andava desesperada com tantos mortos a enterrar…………….. pra morte não importava se levava homem, mulher, jovem, velho, doente ou são… então Oxala interviu, depois das preces de quem andava vivo, …… polvilhou galinha preta com farinha de maniva …… polvilhou galinha preta com cal e gesso……… polvilhou galinha preta com efum …. no mercado soltou galinha preta polvilhada de efum…… e a morte assustada com o canto de cascata de galinha preta polvilhada de efum – coisa que nunca viu – foi-se embora de ahi……………… ”
O texto transcrito pertence ao projecto: deixar que galinhas de angola invadam o terreiro do museu do crime [antropologia do negro/antropologia do cangaço] cidade de salvador/BA, de 2014. O panfleto apresentava o surgimento da galinha-d’angola, quando Obatalá (Rei Vestido de Branco), ou Oxalá (Grande Orixá), que criou toda forma de vida humana, assoprou em uma galinha preta o pó de efum – sangue branco vegetal subtraído do calcário, com função ritualística. Esse gesto afugenta a morte e reestabelece o equilíbrio no mundo. Assim, a galinha-d’angola é associada à iniciação e compreende a oposição entre a vida e a morte, o início e o fim, o branco e o preto.
Na exposição Sobre o deslocamento de coisas e gente (2008), realizada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Nazareth refletiu sobre os processos de migração em Borun Nak, iniciados durante as reformas da Estrada de Ferro Vitória a Minas, em 1942, e após os anos 1970. No dia da abertura, o artista levou três etùs clandestinamente ao espaço expositivo. A galinha-d’angola (considerada “sujeito de arte” por Nazareth) tem natureza arredia e emite um canto com efeito cascata: quando uma soa, as outras acompanham, cantando e andando irrequietas em círculos pela galeria.
As galinhas-d’angola eram trazidas da África nos navios negreiros para disfarçar a carga humana, como estratégia para burlar a lei após a proibição do tráfico negreiro, em 1831. (Porto de Galinhas, em Pernambuco, tem esse nome por ter sido um importante porto para a comercialização ilegal de escravizados.)
No vídeo Galinha da Angola (2017), Nazareth percorre as ruas comerciais de Joanesburgo, maior cidade da África do Sul, usando um cocar feito de penas de etù. Joanesburgo era considerada território não branco durante a política do apartheid, de 1948 a 1994. Sua pluralidade cultural é formada pela coexistência de diferentes grupos étnicos, como Zulu, Soto, Tsuana, Xhosa, Tsonga, Suázi, Venda e Ndebele. A África do Sul tem 11 línguas oficiais. As políticas de invisibilidade de corpos negros nesse país se assemelham ao contexto brasileiro, embora aqui a segregação tenha ocorrido de modo não oficial. Mas foram igualmente sistematizadas em um projeto político e educacional que ainda reproduz assimetrias.
Na performance, Nazareth caminha em direção ao futuro em sintonia com outros corpos negros, referência de uma África não mitológica e complexa. A figura da galinha-d’angola adquire simbologia ainda mais intrincada com as penas ornando um cocar indígena sobre uma cabeça afro, de cabelos crespos. Galinha da Angola consiste em um entrecruzamento de tempos emaranhados, em um embolamento de histórias carregadas de violências sistêmicas entre os dois continentes: a metáfora do filho da diáspora que procura incessantemente desatar os nós cegos da colonialidade no reencontro com sua Mãe Ancestral África.
Etnografia branca
No início dos anos 2000, Nazareth já pintava círculos brancos com pó de efum e tinta látex sobre os cartazes promocionais de eventos esportivos e musicais, de grupos de pagode, de funk e de rap, fixados nos muros de munícipios nos arredores de Belo Horizonte. O artista ampliou a pesquisa utilizando como fonte documental a revista Raça Brasil, além de outras publicações estadunidenses, canadenses e europeias. A partir de então, o círculo branco, feito de calcário aglutinado com corretivo líquido à base de óxido de titânio e solúvel em água, afugentaria as diferentes instâncias de morte: a colonialidade, o mito da meritocracia e da democracia racial, o capitalismo neoliberal.
Nazareth adquiriu sua primeira máquina fotográfica em 1994. Era uma câmera com defeito, que costumava velar os filmes pelo excesso de incidência de luz. O modo como a luz operava nessas imagens criava interferências e uma espécie de apagamento das dimensões de tempo e de espaço da imagem. Esse ruído no testemunho do real influenciaria a série Etnografia branca.
A antropologia científica tem como marco histórico a metade do século 19, e sua base teórica era o evolucionismo. A fotografia, também surgida nesse período, atuou como suporte de estudos referentes à evolução: a catalogação e a fabulação sobre o Outro cultural com base em sua produção material e imaterial. A antropometria, como pseudociência, confirmaria a condição subalternizada desses corpos, fundamentando teorias raciais. Acreditava-se que diferentes povos passavam pelos mesmos estágios de desenvolvimento, da selvageria à barbárie e, então, à civilização. Nessa crença, nem todos os povos possuíam ritmos de evolução semelhantes. Os critérios para um povo ser considerado atrasado ou não civilizado sedimentavam-se em um campo teórico atravessado por uma perspectiva ocidental.
O etnógrafo era aquele indivíduo conduzido pela alteridade, que inventariava as formas culturais de determinado grupo étnico em relação a outro grupo em uma região específica. Metodologicamente, essa análise verticalizada e generalizante implica a catalogação de civilizações não brancas com base em aspectos biológicos, linguísticos, técnicas de trabalho e organização social, política e econômica, para fins de manutenção do poder.
Os arquivos etnográficos reafirmavam-se em dinâmicas extrativistas de poder na África colonial, entre meados do século 19 e início do século 20. Os registros fotográficos do trabalho de campo serviam como leitura genérica da organização cultural de determinada etnia, visando à ocidentalização das práticas culturais, sociais, políticas e econômicas. Já as fotografias produzidas em estúdio eram uma forma de controle de narrativas – por exemplo, as caças esportiva e comercial tinham como justificativa fornecer peles, plumas e marfim aos mercados industriais do Ocidente e parte do Oriente (o mercado de caça de animais silvestres também era de interesse de instituições científicas de países europeus e norte-americanos). Esses arquivos são fundamentais à produção da História, pois representariam uma verdade sem a agência do homem, por seu aspecto documental e descritivo. E essa ideologia transcende a antropologia, servindo às disciplinas ligadas à museologia, arquivologia e história.
A série Etnografia branca apresenta uma cartografia colonial desses registros, marcados pelo discurso cientificista que dá fundamentação teórica para a manutenção do poder eurocêntrico. O artista acessa diferentes arquivos públicos e captura, com sua câmera digital, as “evidências documentais” da etnografia branca. Então, aplica o pó de efum sobre as fotografias. O branco representa a luz captada pela câmera, mas, ao mesmo tempo, significa o método de narração das histórias ditas oficiais.
Em sua apropriação desses registros, Nazareth visa a reconectar-se à luz que foi anteriormente emitida pelos corpos subalternizados. São imagens que se esvaem, em um embate entre os acontecimentos que se deseja eternizar e aquilo que não é considerado importante guardar sobre as potências criativas, filosóficas e tecnológicas do Outro.
A máquina fotográfica, para Nazareth, aprisiona as almas (eégún) que vagueiam pelo mundo. Sua contraetnografia consiste em apreender a luz que um dia foi emanada desses eégún, restituindo-lhes outras potências narrativas. O artista retoma o gesto primordial da criação ao traçar círculos brancos com o giz africano sobre a fotografia impressa em papel de algodão, finalizando com o uso de fixador para desenho a carvão. Esses círculos dão corpo às imagens, criando uma relação de planos e uma dinâmica de movimento.
Ao mesmo tempo, os círculos apresentam-se como velaturas, entrecruzando o passado e o presente: a materialidade do algodão nas fotografias impressas evoca a história da economia algodoeira no Nordeste e a implantação de indústrias têxteis com mão de obra escravizada entre os séculos 18 e 19.
A questão da memória permeia as estratégias de registro desses materiais etnográficos pelo artista.
“— o que uso eh uma máquina fotográfica digital simples com um filtro improvisado feito com fundo de garrafa ou outras partes da mesma, além de outros vidros y materiais translúcidos. – Algumas vezes, quando necessário, uso celulares emprestados para registros específicos. – no entanto eh evidente que as imagens inseridas no circuito expositivo de arte acabam retornando à rede digital/internet, mas dessa vez com uma capa/camada do poh de efun.”
Ao dar substância a extensos arquivos digitais, Etnografia branca coloca também a questão da preservação da memória em uma cultura digital, da temporalidade das imagens em redes sociais como Orkut (2004-14), Facebook (2004), Flickr (2004), Tumblr (2007) e Instagram (2010), assombradas por uma ameaça constante de fenecimento. Os vestígios dessas imagens efêmeras são como fantasmas para o artista:
“Às vezes, o que a gente tem é apenas essa luz. A minha mãe não gosta dessa palavra em alguns lugares. Mas, que aqui seja. Estas imagens passam a ser fantasmas porque deixam de existir pelo menos para as famílias […]. Então esse desejo de imprimir.”
O filme As estátuas também morrem (1953), de Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet, aborda os processos de musealização e colonialidade a partir das coleções de arte tradicional africana do Museu Britânico, no Reino Unido, do Museu Real da África Central (antigo Museu do Congo Belga), na Bélgica, e do Museu do Homem, na França. Um dos mecanismos da colonialidade é a morte, como afirma, na narração em off, o ator e diretor francês Jean Négroni: “Essa botânica da morte é o que nós chamamos de cultura. […] Um objeto está morto quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu. E quando desaparecermos, nossos objetos irão para lá onde enviamos os objetos dos negros, para o museu.”
Paralelamente, Nazareth compreende a noção de morte como um movimento cíclico e de transformação que remete ao irúnmolè Oxumaré, a grande serpente que, ao engolir a própria cauda, recobra o princípio da criação de Tudo. O artista atualiza o gesto primordial de Obatalá ao afastar ikú, entrelaçando diferentes temporalidades em uma criação perene, que aspira à imortalidade como promessa de um futuro mais auspicioso. ///
Paulo Nazareth (Governador Valadares, MG, 1977) é artista visual. Participou da 34a Bienal de São Paulo. Sua exposição mais recente no Brasil é Vuadora (2022), no Pivô Arte e Pesquisa, em São Paulo, SP. Publicou Paulo Nazareth: arte contemporânea/LTDA. (Cobogó, 2012), entre outros.
Janaina Barros Silva Viana (São Paulo, SP, 1979) é artista visual, pesquisadora e crítica de arte. É professora adjunta no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas-Artes da UFMG.
Imagens: © Paulo Nazareth. Cortesia PNAC/LTDA, Galeria Mendes Wood DM, São Paulo, Bruxelas, Nova York, e Galeria Stevenson, Amsterdã, Cidade do Cabo, Joanesburgo.
Tags: decolonialismo, Etnografia, Revista ZUM 25