Revista ZUM 24

Desde aquele beijo

Eliana Alves Cruz Publicado em: 29 de setembro de 2023

Olhei para você pelo canto do olho caminhando pela casa. Era gostoso acompanhar teus passos sem que você percebesse. O jeito de abrir o livro e molhar o dedo médio com a língua antes de folhear a página. A maneira como descalçava os chinelos para cruzar as pernas longas sobre o sofá. Os dedos que passava entre os cabelos grisalhos, ainda fartos… Eu olhava, e você não notava minha admiração secreta por cada contorno seu, mesmo passados todos esses anos desde aquele beijo.

Nem sei por que comecei a te seguir com o olho dentro deste nosso apartamento pequeno, simples, mas nosso, e de frente para a praia, como tanto sonhamos desde sempre. A nossa praia… Talvez porque reste pouco tempo, e quando ele – o tempo – escoa, tudo ganha lente de aumento. É urgente reter nas retinas as imagens da beleza. É urgente não deixar esquecer, não deixar perder, não deixar passar, não deixar… de me embriagar com o cheiro que vem de você assim, numa manhã qualquer de um dia comum de nossas vidas comuns.

Acho que foi a luz desta manhã que me levou de volta ao domingo em que saímos do subúrbio para ver o mar. Era Dia dos Namorados, lembra? Você odiava essa data! E eu, tão mergulhado em mim, não conseguia entender o motivo mais profundo. Ficava apegado àquela verdade absoluta que somos obrigados a comprar desde sempre, de que uma mulher quer mesmo é namorar, noivar e casar. Final dos anos 1970, na periferia da periferia. A gente lá pensava sobre essas coisas da forma como pensamos hoje? Bem, eu não pensava.

Na verdade, nem você sabia dizer o que tanto te irritava. Foi preciso pisar na areia daquela praia, depois de umas horas atravessando a cidade num ônibus cheio de outros corpos sedentos por água salgada e diversão, para que a compreensão viesse.

Estou aqui, no canto da mesa mexendo a xícara de café, alternando meu olhar entre você e a paisagem da janela, reparando como sua mãe está toda refletida na sua imagem hoje. Como você foi se tornando tão semelhante a ela na aparência, mas tão diferente em outros aspectos. Então, mesmo que seja por oposição, vejo de certa forma sua mãe em você. Ela, que não perdia a chance de desconfiar de mim, de se confrontar com o amor que eu dizia sentir por você e de afirmar que nunca mais acreditaria nesse sentimento.

Um dia perguntei a ela o porquê de tanto rancor. Ela apenas me fitou com olhos frios e disse a frase que ecoa em minha mente a cada data que considero importante para nós ou para você.

– Nunca recebi flores… e nunca fui beijada.

Fiquei muito intrigado. Como assim, nunca foi beijada? Até aquele dia, nunca tinha pensado sobre a falta que faz um jardim na vida de alguém. Não um jardim qualquer, mas um que fosse ofertado, ainda que representado por uma única flor. Sua mãe me olhava com a secura dos desertos que se tornaram inférteis pela ação humana, muito diferentes dos formados pelo trabalho dos milênios.

O domingo do Dias dos Namorados daquele ano amanheceu ensolarado. Olhei para cima e pensei: “Vai dar praia!”. Cheguei na sua casa animado, e minha empolgação contrastava com o silêncio de um café da manhã nada ruidoso, nada regado a beijos ou a nenhuma dessas manifestações de afeto um tanto cafonas, mas que muita gente quer. Sua mãe, depois eu vi, queria.

Você me convidou para sentar e, mesmo sem jeito, me sentei. Aos poucos aquele clima estranho foi dando lugar a conversas amenas, a gente contando a grana do transporte e embrulhando uns sanduíches para a viagem, pois sim, ir à praia naquele tempo, saindo do nosso bairro, era uma viagem! Estávamos mais relaxados e sorrindo quando ela abaixou a cabeça na mesa e começou a chorar. As lágrimas foram se avolumando, e ela foi terminar de desaguar longe de nós, que tentamos desajeitadamente saber o que aconteceu, mas ela praticamente nos expulsou de casa. Queria ficar sozinha.

Ganhamos a rua como quem sai de uma câmera de gás, lembra? Uma sensação de que algo muito opressor libertou nossas vias respiratórias. Caminhávamos lado a lado, mas sem nos tocar, ainda degustando o alívio, quando um homem passou por nós apressado e parou em frente ao seu portão. Estancamos na esquina para ver o que ele iria fazer. Ele bateu à porta, sua mãe atendeu e ele entrou. Corremos, colamos os ouvidos na madeira. Corações acelerados. O que nos inibiu? Afinal, por que não entramos?!

Um silêncio estranho baixou. Igual a esse nosso agora, enquanto olho a xícara acabada de café e você se espreguiça lentamente como um gato no sofá. Um vazio de som que prenuncia algo. E foi como uma explosão o grito de sua mãe que saiu de dentro da casa, antes do barulho de vidro quebrando.

– A minha boca é o corpo todo, está ouvindo bem?!

Lembrar disso me faz mergulhar em sentimentos antigos. Veja! A praia está enchendo. Olhando aqui do alto, não vejo muita diferença entre o pessoal que atravessa a rua em direção à praia hoje e a turma que lotou a areia naquele dia. Todo mundo tão jovem e rico daquele dinheiro precioso chamado tempo.

Consigo ver como se fosse hoje você me puxando pela mão e correndo. Não queria ficar para ouvir o bate-boca. Eu me espantei.

– Mas sua mãe pode precisar de ajuda! A gente precisa ficar e… – já estávamos quase na esquina outra vez até que estancamos.

 – Vamos para a praia, está bem? Não vai acontecer nada, ou melhor, vai acontecer o de sempre…

E mais não disse. Subimos no ônibus, e estava lotado. Uma massa de gente com trajes de banho por baixo da roupa… Pouca roupa. Sacolejamos um bom tempo até que a orla do Rio de Janeiro se mostrou para nós. Linda, exuberante, rica e branca nos prédios, completamente preta na areia da praia do Flamengo. Fico me perguntando se você finalmente sente que a praia é sua. Acho que sim, pois é com jeito de mar que você está no mundo, em ondas.

Chegamos à praia, e eu, metódico, estendi a esteira na areia um tanto admirado, pois o dia estava lindo, mas a praia não estava ainda lotada. Você saiu correndo, girando, rindo… Estava linda.

– Me beija! – Você ordenou.

– Mas assim… Aqui…?

Qual era a trava? Qual era o problema? Nenhum e todos. Naquela época não era comum demonstrações de amor explícito assim, entre pessoas como nós. Sim, você merecia o amor assumido, sem esconderijos. Quantas gerações tiveram que praticar o esporte de viver o amor no refúgio? “Escondidinho é melhor.” Sei que já disse isso…

– Qual o problema? Qual o seu problema?! Você não toca em mim na frente das pessoas, nem na minha mão pega… Eu sou a sua namorada no escuro, apenas dentro e nunca fora. Me beija! Prova que minha mãe está errada. Prova que você não será uma repetição…

Deitamos na areia e demos um longo beijo. Tão longo que chamamos a atenção de um turista. Tão longo que mereceu a eternidade, décadas de esquecimento dentro de algum rolo de filme de viagem. Como teria ficado aquela foto?

Subitamente entendi sua mãe. Um beijo é mais que o unir de bocas. Na volta te dei uma margarida e prometi que, desde aquele beijo, jamais passaria outra data importante sem um jardim, ainda que representado por uma única flor.

Voltamos para casa quando já escurecia. A tensão foi aumentando a cada passo na direção da sua casa. Chegamos ao portão. Perguntei se você queria que eu entrasse, e você disse que não.

– Foi lindo o nosso dia…

Nos assustamos, pois sua mãe girou a maçaneta, escancarando a porta para sair correndo em direção à rua. O homem que havia chegado mais cedo veio atrás, mas ficou parado na entrada da casa. Ela no meio da rua em postura desafiadora.

– Sabe o que é revolução?! É beijar sua preta em praça pública!

Ele desceu calmamente e a abraçou com ternura e calor. Ficaram ali unidos, reconciliando alguns muitos anos. Envolveu seus ombros e a reconduziu para dentro de casa.

– Minha boca é o corpo inteiro – disse ele.

Agora estamos velhos. Deixei a xícara vazia na mesa e saí do meu posto de observador distante. Para sua surpresa, me aninhei a você no sofá. Você afagou meu rosto.

– Vamos à praia? Agora que ela está tão perto nunca mais fomos.

– Sim, afinal, é a nossa praia.

Descemos e te beijei sem que você precisasse pedir. Te ofereci uma margarida, e você me abraçou forte. Acho que se emocionou, pois pensei ter visto seus olhos úmidos.

– Minha boca é o corpo inteiro – você falou antes de deitarmos aproveitando o sol, finalmente, em paz.

Onde será que está aquela foto? ///

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Nota sobre o acervo

Estas imagens foram feitas no fim dos anos 1970 nas praias de Botafogo e do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, e ficaram guardadas no porão da casa do professor Peter Lucas, no bairro do Brooklyn, em Nova York, por mais de uma década. Lucas garimpou esse material na feira da Praça XV, no centro do Rio, por volta de 2007, e me entregou o arquivo numa visita que lhe fiz nos Estados Unidos, em 2022, para que o trouxesse de volta ao Brasil.

O acervo é composto de 530 diapositivos coloridos. Cerca de 30 fotografias estavam montadas em monóculos; o restante, armazenado em seis ou sete caixinhas de filmes. Em algumas delas, pequenos arranjos de papel separam as pessoas retratadas pelo nome. Quase 80% dos cromos estão inteiros; alguns foram cortados, talvez para que fossem montados em outro tipo de moldura, o que explica a diferença de formatos.

A repetição do cenário, do enquadramento e o fato de que o acervo foi encontrado reunido permitem supor que todas as fotografias foram feitas por um único fotógrafo desconhecido, provavelmente com uma câmera Olympus Pen EES-2, que usava metade do quadro, fazendo até 80 exposições em um rolo de 36 poses.

As 16 fotografias neste portfólio não estavam identificadas.

Rafael Cosme

Eliana Alves Cruz (Rio de Janeiro, RJ, 1966) é escritora, roteirista e jornalista. É autora de Nada digo de ti, que em ti não veja (Pallas, 2020, prêmio da União Brasileira de Escritores), Solitária (Companhia das Letras, 2022) e A vestida (Malê, 2022, prêmio Jabuti, categoria Contos).

Rafael Cosme (Rio de Janeiro, RJ, 1984) é jornalista e pesquisador. Atualmente se dedica a investigar a vida urbana e social do Rio de Janeiro no século 20 a partir de fragmentos visuais e documentais.

Publicado originalmente na Revista ZUM #24, abril de 2023