Arapuca
Publicado em: 4 de maio de 2023
As interdições da pessoa humana que difere da norma branca têm sido atualizadas de forma a garantir às estruturas de controle do corpo uma suposta lisura atribuída à ciência e às tecnologias de monitoramento e de segurança. A captura da presença, seja pelo visual, pelo audiovisual, pela mensuração de temperatura, pela detecção de movimentos, dentre outros sistemas de identificação e de registro, nos é imposta como inescapável.
Os meios tecnológicos que permitem essas diversas formas de vigilância e de classificação de tipos humanos e de seus trânsitos não são uma novidade, e se fundamentam na diferença e na variedade de fenótipos das pessoas como um sinalizador de perigo. As pseudociências, como a frenologia, desenvolvida pelo médico alemão Franz Joseph Gall, no fim do século 18, cujo maior expoente é o médico italiano Cesare Lombroso, são deterministas ao afirmar que, a partir de características biológicas que se expressam no fenótipo, se pode aferir uma série de informações sobre os indivíduos, do temperamento ao caráter e à personalidade, ou mesmo à propensão à criminalidade.
O estadunidense L. A. Vaught publicou, em 1902, um manual ilustrado detalhado apontando como as particularidades físicas estavam relacionadas às características psicológicas, emocionais e de juízo, segundo essa doutrina moral e ideológica. O livro de 254 páginas é uma grande ficção sobre a sinalização da diferença como ameaça à ordem política, social e familiar.
Com a presença de populações não brancas na Europa e nos territórios invadidos pelas nações europeias, essas mesmas teorias propagaram-se como ferramenta de regulação social. Das condições de natalidade, passando pela formação educacional até as possibilidades profissionais, muitos aspectos da vida moderna eram orientados por critérios como origem, etnia, cor e cultura. As variantes estéticas de narizes, testas e bocas, entre outros marcadores, passaram a ser consideradas uma questão menor para essas falsas ciências, se comparadas à etnia, à cor e à cultura.
A possibilidade de futuro próspero passou a ser filtrada pela imagem, determinando as pessoas que teriam, ou não, as características aspiradas para viverem esse futuro. No decorrer do século 20, são inúmeras as interdições dirigidas por meio da análise da configuração fenotípica dos seres humanos, estratificando-nos em tipos desejáveis e indesejáveis, capazes e incapazes, com o propósito de selecionar os aspirantes a essa sociedade sonhada. Para isso, foram sistematizadas tecnologias da exceção que, na verdade, sempre estiveram orientadas pelo olho humano.
No caso dos sistemas de segurança por reconhecimento facial, o olho que desenvolve e realiza a testagem dos programas é falho diante de uma ampla amostragem de pessoas. A parca presença de determinados grupos humanos em alguns territórios não justifica que softwares comercializados para o mundo todo – com ênfase no ocidente – sejam imprecisos na distinção e identificação de mulheres, em sua gama de mulheridades, e de pessoas não brancas, de forma geral.
A falta de aprimoramento intencional dos algoritmos que guiam essas tecnologias tem o propósito de atualizar e incorporar, de forma perversa e anacrônica, as divergências de formas humanas que já foram estudadas como deformidades físicas, psicológicas, emocionais e morais incontornáveis, e que, consequentemente, precisavam ser retidas ou eliminadas.
As insurreições populares e coletivas contra a necropolítica da gestão oligárquica e estatal, empreendidas por movimentos de maiorias populacionais – embora minorias políticas –, revelam que entendemos bem o que nos é gritado por meio do controle e da opressão maquinados como segurança e bem-estar social. Assim, a imagem, em movimento ou não, declina como índice documental, de evidência criminal irrefutável, para os órgãos de segurança pública, porque está condicionada, mais uma vez, a finalidades torpes.
A falência do projeto ocidental de sociedade se projeta na inaptidão de coexistirmos com a ideia de que todas as pessoas possam transitar e erigir, ou mesmo sonhar, outros mundos, a partir da autoridade natural e singular de suas morfologias. ///
Legendas e créditos dos fragmentos usados nas colagens aqui.
Renata Felinto (São Paulo, SP, 1978) é artista visual, pesquisadora e professora, bacharel, mestra e doutora em artes visuais pelo Instituto de Artes/Unesp. Especialista em curadoria e educação em museus de arte pelo MAC USP. Vencedora do 3o Prêmio Select de Arte e Educação e do Prêmio PIPA 2020.
Publicado originalmente na Revista ZUM #24, abril de 2023