Sangue de bairro
Publicado em: 21 de dezembro de 2022Quando minha família se mudou para Contagem, em 1973, tratava-se de uma cidade-dormitório onde foi possível ter a sonhada casa própria. Vivi ali dos seis aos 19 anos e depois por mais alguns meses espaçados, antes de migrar para São Paulo, aos 22. Lembro do sacrifício que meus pais fizeram para que eu continuasse estudando na escola em Santa Efigênia, bairro de Belo Horizonte, mais estruturado e próximo do centro. Estava na primeira série. Era setembro, não aceitavam transferências escolares naquela altura do ano e, embora minhas notas fossem excelentes, havia uma carga horária mínima a cumprir.
Meus pais nunca cogitaram a possibilidade de me deixar sem estudar ou de que eu fosse reprovada por frequência. A solução era me levar para a escola todos os dias. Tratava-se de deslocamento longo, mais de uma hora, feito em transporte precário que passava de 50 em 50 minutos em Contagem, mais um ônibus que levava 15 minutos do centro de Belo Horizonte até a escola no bairro. Essa foi a primeira experiência do que seria viver em Contagem.
No ano seguinte, ingressei na escola do novo bairro na segunda série, e já nas primeiras semanas de aula fui transferida para a sala do “segundo repetente”, pois, segundo a professora que pediu a mudança, “eu sabia tudo” e por isso atrapalhava o ritmo da turma. No grupo novo de estudantes, todo mundo era mais velho do que eu (tinham mais de dez anos, eu tinha oito), contudo, existia uma diferença mais marcante em relação à primeira sala: havia muitos negros, meninas principalmente, e todas elas trabalhavam à tarde em “casas de família”, às vezes das próprias professoras da escola. Se era mesmo verdade que eu dominava todos os conteúdos da segunda série, seria lógico me promover à terceira, não? Não, essa lógica não era válida para uma menina negra, compreendi anos depois. Esse foi o segundo marco inesquecível da vida na cidade nova.
Do lado de fora da escola, os trabalhadores da indústria de cimento de Contagem, cidadãos não sindicalizados, e alguns políticos se manifestavam para que as indústrias instalassem filtros. A cada manhã, a poluição deixava o telhado das casas branco por causa do pó de cimento que vazava das chaminés das fábricas durante a noite. O único hospital de que se tinha notícia estava sempre cheio de pessoas com problemas respiratórios, principalmente crianças.
Um fato inusitado é que as galinhas criadas nos quintais das casas morriam sem motivo aparente. Todas tinham em comum os olhos vidrados e coriza com grânulos de cimento. Como ninguém ali tinha dinheiro para consultar veterinário, um vizinho com espírito de cientista resolveu investigar o interior das galinhas mortas e descobriu bolinhas de cimento nas artérias e vísceras dos galináceos. A descoberta virou notícia, e embora não concorrêssemos com Cubatão no quesito destaque na mídia, também experimentávamos níveis altíssimos de poluição, com consequências funestas para nossa saúde e humor.
Naquele ambiente pouco criativo e estimulante para pessoas que tinham sede de vida, lembro-me vivamente das minhas tentativas e de amigos, no fim da adolescência, entre os 15 e 17 anos, de dar sentido para nossa existência, antes do portal aberto pela entrada na universidade pública. A ideia era produzir arte e cultura naquelas condições precárias.
Existiam apenas três equipamentos culturais em todo o perímetro administrativo da cidade: um cinema e um teatro, ambos fechados, e uma casa de cultura que não dialogava com a população, só fazia um ou outro evento folclorizante da Comunidade Negra dos Arturos (que, a partir da década de 1990, passou a compreender a si mesma como uma comunidade quilombola). Recordo que um grupo cultural em que atuei realizou um show histórico com o cantor Rubinho do Vale no teatro de Contagem, que vivia fechado. A atividade aconteceu por iniciativa de jovens mulheres negras da sociedade civil que descobriram meios de colocá-lo para funcionar a partir de negociação direta com a Secretaria de Cultura, onde uma delas trabalhava.
Essa é a Contagem de minhas recordações, um lugar que minha mãe amava, por conta da já mencionada casa própria, a ponto de ter deixado expresso um único desejo pós-morte: ela queria ser enterrada na cidade. Não construí esse amor pelo território que, para mim, sempre foi mesmo um dormitório; lugar que tentei modificar, sem sucesso, enquanto vivi por lá, embora tenha me mantido em movimento – como é da minha natureza.
A série fotográfica Sangue de bairro (2008-2021), que Affonso Uchôa e Desali realizaram no bairro Nacional, me remete a essa vida que vivi. São imagens cruas da simplicidade e também da precariedade, mas sem pieguismo, sem autocomiseração ou pretensos exercícios de empatia. São expressões de uma periferia do Brasil por sua própria voz – nada sobre as pessoas das periferias sem elas; nós por nós, nós sobre nós. A quebrada vista desde dentro. Nós para nós.
O bairro Nacional está localizado na periferia do lugar periférico que é a cidade de Contagem no contexto da Grande Belo Horizonte. Sangue de bairro é um convite para que o olhar de fora olhe com olhos de ver.
É esse exercício que farei a partir de agora, destacando o que algumas dessas fotografias evocaram em mim a partir do meu pertencimento claudicante ao grande território de “Contagem das Abóboras”. Cumpre alertar que morei no bairro Santa Cruz, local que acompanhou a urbanização do bairro mais estruturado da região, o Eldorado – notem a simbologia do nome. Lá onde ficava o banco Mercantil do Brasil, única agência bancária durante muitos anos, com suas filas quilométricas para recebimento de salários e pagamento de contas de água, luz e telefone, esta última no caso das famílias mais aquinhoadas (até o final dos anos 1980, o acesso a telefone fixo – não conhecíamos celulares – era algo muito restrito na casa das pessoas pobres). Foi no Eldorado também que inauguraram o primeiro shopping da região, símbolo de modernidade do consumo, inclusive de arte, representada pelas salas de cinema dedicadas a filmes blockbuster.
Selecionei algumas fotografias da série para comentá-las, salientando suas reverberações em mim. Um grupo de fotos trata da casa, do lugar onde as pessoas vivem, visto por dentro e por fora, com destaque para a presença do cimento, elemento nobre da construção civil nos contextos de pobreza.
O primeiro impacto se dá pela visão das paredes interiores de um cômodo pintadas com tinta rala, provavelmente resultado daqueles pozinhos coloridos dissolvidos em água, e uma janela de vidro fechada no centro de uma das paredes. O espaço parece estar vazio, sem móveis; vazio encerrado nele mesmo pela janela fechada, numa hora do dia em que nem sequer há vestígios de sol. Essa imagem alberga símbolos da falta de perspectivas que adoece muita gente nas periferias do país. É um esforço amazônico sobreviver em meio ao descaso, à ausência de políticas públicas, à falta de oportunidades generalizada.
Noutra fotografia, notei uma família negra com três pessoas. A mulher trajando chinelo de dedos e meias azuis, shorts e agasalho de frio. Chinelo e meias, aliás, constituem uma estética das favelas antes ridicularizada, agora marca hipster nos pés de frequentadores de casas de cultura e arte badaladas durante eventos diurnos. O homem veste uma jaqueta marrom, cujo tecido imita o couro, calça jeans (não vemos seus pés) e chapéu preto; uma criança de cerca de dois anos, bem agasalhada, está escorada em sua perna direita. Ele parece um homem negro do sul dos Estados Unidos nos anos 1950 ou 1960. Ao fundo, uma pilastra de cimento, uma parede sem reboco e um pedaço visível do alicerce da casa, mais cimento, talvez para sustentar as paredes de outra habitação vertical que poderá ser construída sobre aquela, chegando a dois ou três andares.
Me perguntei se aquele recorte seria a parte externa das paredes pintadas por dentro vistas na primeira foto. E se fosse? A família preferiu ser imortalizada pelos fotógrafos do lado de fora da casa, ao ar livre? É notório que a família olha para a câmera, posta-se para a foto. A gente quer aparecer bonita e estilosa, pois, como alertava o carnavalesco Joãosinho Trinta nos revolucionários carnavais da Beija-Flor dos anos 1970, “quem gosta de miséria é intelectual”.
As características da casa compõem uma paisagem corriqueira nas periferias do Brasil, uma construção lenta e inacabada, que vai se fazendo ao longo de anos com economias do 13o salário e bicos, serviços sazonais que fornecem alguns caraminguás extras aos assalariados ou pessoas subempregadas. Aquelas que não têm sequer subemprego talvez nem tenham casa para ser fotografada e provavelmente estejam vivendo nas ruas.
Em outro grupo de fotos, uma mulher negra e jovem sorri com o corpo inteiro. Às suas costas, há três homens negros dentro de um bar, onde ela também parece estar. Qual será o motivo de tamanha alegria?
Os homens, ocupantes frequentes dos bares e outros espaços públicos, nos quais parecem reinar (a rua é espaço patriarcalmente compreendido como masculino), nesta fotografia são pano de fundo desimportante, por trás da alegria exuberante daquela mulher. Importa pouco por que ela sorri, importa que ela seja senhora plena do próprio sorriso e o exiba ao mundo de maneira altiva e soberana.
A seguir, captura minha atenção um desenho numa parede cinza de cimento cru. O cimento à mostra nas construções é um valor nas periferias, pois indica a qualidade do material utilizado e o investimento feito na obra. Na imagem, dois bonecos: uma representação de menino e menina de mãos dadas ao lado de um coração flechado, dentro dele as iniciais “D” e “M” – quem nunca? O amor grafado na dureza improvável, povoando o mundo de humanidade. É assim o amor no instante de vida granjeado pelos fotógrafos no bairro Nacional de Contagem.
Outra imagem me cativa, algo divergente dos binarismos: seria uma travesti negra em pose sensual sobre uma gigantesca máquina de videogame? Que homens se relacionariam com ela? Meninos? Adolescentes? Homens feitos? Como? Onde? Quais seriam os aspectos afetivos dessas possíveis relações? Haveria alguma chance de ser uma travesti que se exibe para homens e, na intimidade de suas escolhas, se relacionar afetivamente com mulheres?
Num último grupo de fotos, um jovem negro de olhar triste e envelhecido está sentado na mesinha solitária de um bar, pernas cruzadas (posição pouco usual para um homem da quebrada) e cigarro aceso. Ele veste camiseta com a estampa de uma marca de roupas masculina. A propaganda usa letras bem grandes e o símbolo da marca. É bastante comum que a vestimenta-propaganda de produtos diversos seja o que se tem para vestir, diante do dinheiro que mal dá para se alimentar. Me perguntei se aquele homem estaria triste, amargurado. Com sono? Alcoolizado? Teria chorado? Acima da cabeça dele, uma melancólica lista de preços preenchida à mão e colada na parede: seis sanduíches com preços que variam entre dez e 3,50 reais e nos ofertam referência dos padrões de consumo da região.
Outro homem negro, com mais de 55 anos, rosto severo, braços fortes à mostra num colete aberto, bermuda, relógio grande e vistoso, óculos escuros, assentado em um sofá com capa de pano para não sujar, para aumentar a durabilidade do móvel. Seria um aposentado? Um desempregado? Um homem flagrado num momento de introspecção? Um tiozão garboso posando para a posteridade?
Por fim, uma imagem enigmática: uma carteira de trabalho fechada sobre a página direita de uma Bíblia aberta; do lado esquerdo, a foto de um jovem negro, quiçá um adolescente. Teríamos ali uma cena de oração para aquele garoto conseguir emprego? Ele estaria vivo? Teria sido morto, confundido com bandidos num país em que estar em conflito com a lei é álibi para o genocídio da juventude negra? Um jovem que o colorismo classifica como pardo, pele clara, tinta fraca, mas que a polícia sabe se tratar de um homem negro, cujo destino possível são os gavetões do IML. Muita treta e memória no cimento e na presença da gente negra nessas fotos de Sangue de bairro. ///
Affonso Uchôa (Contagem-MG, 1984) é fotógrafo e cineasta. Diretor dos filmes Mulher à tarde (2010), A vizinhança do tigre (2014) e Sete anos em maio (2019) e codiretor de Arábia (2017). Seus filmes foram exibidos no Festival de Toronto, no Canadá, Visions du Réel, na Suíça, e Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, entre outros.
Cidinha da Silva (Belo Horizonte-MG, 1967) tem 19 livros publicados, entre eles: Um exu em Nova York (Pallas, 2018) – Prêmio Literário Biblioteca Nacional (2019) e PNLD Literário (2021) – e O mar de Manu (Yellowfante, 2021) – Prêmio APCA de Melhor Livro Infantil (2021). Organizou as obras Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras (Selo Negro, 2003) e Africanidades e relações raciais (Fundação Cultural Palmares, 2014).
Desali (Warley de Assis Rodrigues, Contagem-MG, 1983) é formado em artes plásticas pela Escola Guignard (UEMG). Participou das exposições Enciclopédia negra, na Pinacoteca de São Paulo, em 2021, e Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles (IMS), em 2021-2022, entre outras. Criador do coletivo Piolho Nababo.
Publicado originalmente na Revista ZUM #23, outubro de 2022