Revista ZUM 22

Como quem consulta um oráculo

Stephanie Borges & Fernanda Liberti Publicado em: 8 de agosto de 2022

Fernanda,

Nas últimas semanas passei um bom tempo olhando suas fotos e colagens, tentando encontrar o tom da escrita e uma estrutura para organizar minhas impressões sobre o seu trabalho. Depois de algumas tentativas que me deixaram insatisfeita, achei que a simplicidade de uma carta seria a opção mais feliz. Essa leitura das suas imagens se dá a partir das minhas inquietações poéticas ligadas ao corpo e à linguagem.

No seu trabalho, há uma relação com as cores, a alegria, um contraste entre a natureza e o artifício, que observo a partir de referências estéticas trazidas da minha vivência no subúrbio carioca. Então, acho necessário pontuar que minhas reflexões são atravessadas pelas minhas experiências de mulher negra, tradutora, nascida e criada da Zona Norte do Rio de Janeiro. Escrevo a partir das encruzilhadas.

Olho para o seu trabalho pensando em como a fotografia e a poesia despertam perguntas. Imagino que vários leitores e espectadores ainda se sentem desconfortáveis com o fato de que a arte está aí para levantar questões sem oferecer respostas. No entanto, acredito que a incerteza – especialmente diante de um poema ou de uma obra de arte – pode nos ajudar a conviver com múltiplos significados e possibilidades na vida.

Comecemos pelas pessoas, pelas imagens desses corpos que não correspondem aos padrões de beleza magros, brancos, ideais inalcançáveis construídos a partir de exercícios físicos, dietas e cuidados estéticos. As pessoas nas suas fotos têm corpos relativamente comuns para quem vive perto do mar e se vê na praia, para quem freqüenta lugares onde há espaço para a diferença e o encontro – como as escolas de samba, onde há gente de diferentes estilos, idades, classes sociais –, corpos que vemos o tempo todo por aí, mas ainda encontramos pouco na moda, na TV, nos filmes, nos streamings. Corpos chamados dissidentes por não se conformarem a uma performance de gênero binária, avessa a indefinições e fluxos.

Suas fotografias me fazem pensar em bell hooks. Em Olhares negros: raça e representação, a autora analisa a importância de artistas, diretores de cinema, escritores, parte das chamadas minorias, criarem imagens que desafiem os estereótipos racistas e machistas, propondo narrativas que desconstruam a ideia do diferente como o outro, o exótico, o ameaçador.

Suas imagens me trazem alegria quando percebo que os modelos são vistos sem esse viés de exotismo. Há uma irreverência, uma descontração nas fotos que transmitem a sensação de que, posando ou apenas se deixando fotografar, as pessoas se sentem à vontade diante das suas lentes, confortáveis em seu corpo, em sua nudez, em sua intimidade.

A questão não é apenas a possibilidade de nós, pessoas fora do padrão, nos vermos retratadas nas artes, na cultura pop, na literatura, mas de nos vermos de perspectivas que não nos objetificam, que não naturalizam nosso sofrimento nem repetem narrativas coloniais. Quando se vive num mundo em que somos lembradas constantemente de que não pertencemos a ele, é acolhedor ver imagens de pessoas como nós, vivendo momentos simples, se expondo ao sol, mergulhando, se divertindo, comendo, e perceber que há arte nesses registros.

Há uma beleza alcançada na composição, na luz, no enquadramento, mas, para além dos aspectos técnicos, a beleza emerge do encontro entre modelo e fotógrafa, de um diálogo possível que sabe a importância de ver e ser vista sem um vocabulário restrito, uma imaginação limitada.

Penso em como certos discursos sobre representatividade muitas vezes se atêm à presença da diversidade, mas não consideram a necessidade de complexidade da representação. É claro que precisamos ver mais pessoas negras, lgbts, pessoas gordas, pessoas com deficiência em todos os espaços; no entanto, é importante que essa maior visibilidade também tensione e desafie os preconceitos da nossa sociedade. Suas imagens me remetem à audácia e ao humor, uma vez que esses corpos fora do padrão parecem se divertir ou até mesmo ignorar a câmera enquanto são fotografados. Suas imagens me lembram as reflexões de Jota Mombaça sobre a recusa. Rejeitar as associações entre o corpo fora do padrão e patologias, subalternidade, desleixo e também se recusar a uma performance que se conforma ao que é considerado desejável pela gramática heteronormativa e patriarcal. É a elaboração de uma outra linguagem da beleza e do desejo sem reproduzir os mecanismos criados para nos excluir.

No artigo “Os usos do erótico: o erótico como poder”, Audre Lorde define o erótico como um “sentimento íntimo de satisfação” que surge do grau de atenção e dedicação com que desempenhamos nossas atividades. Seja nos projetos criativos, no trabalho doméstico, no autocuidado, “o erótico não diz respeito apenas ao que fazemos; ele diz respeito à intensidade e à completude do que sentimos no fazer”. A sensualidade que encontro nas suas imagens não me parece algo elaborado com a intenção de mostrar como corpos gordos, negros, dissidentes ou comuns são desejáveis, mas transparece justamente porque as pessoas estão tranquilas, confiantes, à vontade. A intensidade do momento em que a foto é feita transparece nas imagens.

Um outro aspecto que me impressionou é a presença de várias texturas nas fotografias. Estamos diante de algo apreendido pela visão, mas que parece tentar extrapolar a primazia do olhar e provocar outros sentidos. Pedras, areia, tecidos, cabelos, água, roupas provocam o tato. As plantas e as flores acionam a memória olfativa.

Passei bastante tempo olhando duas fotografias – uma da modelo de frente usando um espartilho preto adamascado com os seios de fora; outra de uma mulher de costas envolta em plástico filme. Parece haver uma conversa entre essas imagens, que me despertaram um estranhamento inicial, por causa da contenção. Fiquei pensando em como me aproximar delas sem recair numa associação fácil e rápida com a ideia de opressão e desconforto, mas também tentando não repetir discursos de positividade corporal – desconfio de uma grande onda de positividade compulsória em várias esferas da vida contemporânea.

Enquanto observo os seios da modelo sobre um espartilho bem cinturado, penso no conceito de opacidade de Édouard Glissant, “a subsistência em uma singularidade não redutível”. A idéia de não reduzir a singularidade de alguém contrasta com a compressão da lingerie e do plástico, mas me faz admitir minha ignorância em relação às vivências de um corpo gordo. Desconheço as melhores estratégias para desmontar discursos gordofóbicos e propor outros modos de ver. Reparo, faço perguntas.

Deixo os olhos se demorarem no adamascado do espartilho, nas estrias, na marca do biquíni e na pele sensível dos mamilos. Reparo nas dobras da pele sob o plástico e no efeito da luz refletida no PVC. As cinturas bem marcadas me fazem pensar em como é estranho que a palavra “sinuoso” tenha os significados de curvilíneo e tortuoso. Tortuoso para quem? Que ardis se escondem nas curvas de um corpo? Entretanto, logo me dou conta de que as imagens parecem conversar entre si, porque há nelas esse contraste entre a pele e o tecido, a pele e o plástico. O orgânico e outros materiais. Quando abandono as primeiras ideias fáceis, o que me vem à mente é o tato – a sensação do corpo fotografado contra o tecido e o plástico. O apelo para além da visão rapidamente evoca a memória corporal de espartilhos, corpetes, de estar envolta em filme de PVC. Quem já se tatuou, conhece bem.

Embora os espartilhos fossem usados para conter o corpo das mulheres, limitar seus movimentos ou ainda criar a ilusão de uma silhueta considerada bela de acordo com a moda de outras épocas, é possível saber disso, ser crítica ao patriarcado e, eventualmente, vesti-lo só porque é bonito.

Para a escritora e ativista basca Itziar Ziga, parodiar a feminilidade tradicional, associada à passividade, à delicadeza e à fragilidade, com brilhos, vestidos curtos, plumas, acessórios, saltos altos e outros símbolos do glamour, de acordo com uma lógica de excesso e deboche, é uma estratégia para mostrar como o que é entendido como feminino e masculino é socialmente construído e muito codificado. “Não há insubmissão maior do que o riso e o prazer. Eu me nego a ser uma guerreira de cenho eternamente franzido e pernas fechadas.”

Em um mundo que mal concebe corpos gordos se divertindo e gozando, existem várias possibilidades de desafiar o senso comum. Brincar com peças e acessórios. Entender que o brilho, a cor, o vinil, o poder e o glamour estão disponíveis para quem se permite. A ousadia é uma forma de convidar outras pessoas a se divertirem também.

No processo de escrita dos poemas que compõem Talvez precisemos de um nome para isso, pesquisei sobre como escritoras negras falavam de si e descreviam suas personagens sem repetir expressões que se referiam a nós como rebeldes, selvagens, barulhentas, agressivas. Ao longo daqueles meses, percebi como dou importância ao espaço da ambiguidade e da contradição. Não correspondo aos estereótipos racistas, mas também não me reconheço na delicadeza da feminilidade tradicional. Entendi que há momentos em que não quero escolher entre a gentileza e a sagacidade (a visão ocidental não me atribui nenhuma das duas), então reivindico as duas, sem conflito. Suas imagens me parecem ter espaço para esse tipo de multiplicidade.

É importante ressaltar que, embora me interesse especialmente pelas possibilidades de questionar ou perturbar as percepções preconceituosas, entendo que o trabalho artístico de mulheres, pessoas negras, lgbts, gordas, dissidentes não se limita a respostas à falta de representações que nos façam justiça. Você sabe disso tão bem quanto eu, Fernanda, mas sinto que é importante tocar nesse assunto, porque até hoje boa parte da recepção ainda procura colocar os desafios aos padrões num campo combativo, e nem sempre é o caso. Há muitas estratégias disponíveis. Esse tipo de leitura da arte como reação desconsidera a inteligência, a curiosidade e a criatividade de artistas que são apaixonados pelas linguagens com as quais trabalham. Tornar uma forma de arte ainda mais diversa é possibilitar que ela conte mais histórias, incorpore outras referências e mais pontos de vista. Isso me parece um gesto amoroso.

Quando penso em como suas colagens e fotografias nos oferecem inúmeros elementos para prestarmos atenção e exercitarmos nossa imaginação, me volta o pensamento de Glissant, “opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes”. Seus modelos são singularidades não redutíveis, que não são legíveis de acordo com o desejo do observador, com um olhar colonial consumidor; as plantas, os fungos, a água, a areia, as pedras não são decorativos. A textura da trama das suas imagens é formada na convivência de várias formas de vida, humanas e não humanas.

A beleza também está nessa mistura.

Abraço,

Stephanie

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Veja no canal do Youtube da revista ZUM a conversa entre Fernanda Liberti e Igi Lola Ayedun que marcou o lançamento da ZUM #22.

Fernanda Liberti (Rio de Janeiro, RJ) é fotógrafa, videomaker e editora. Trabalha em Londres, São Paulo e Rio de Janeiro. Participou da exposição A grande volta do manto tupinambá (Kwá yapé turusú yuriri assojaba tupinambá), organizada em 2021 pela Funarte em Brasília e Porto Seguro (BA). Contribuiu com diversas publicações nacionais e internacionais, como a Vogue, i-D Magazine e M-Journal.

Stephanie Borges é jornalista, tradutora e poeta. Seu livro Talvez precisemos de um nome para isso (Cepe, 2019) venceu o 4° Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduziu prosa e poesia de autoras como bell hooks, Audre Lorde, Claudia Rankine e Margaret Atwood.

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