A cura
Publicado em: 9 de outubro de 2025Fosso deu-se conta de que a fotografia podia ser muito mais do que uma maneira de ganhar a vida. Podia ser uma forma poderosa de autoexpressão, um jeito de contar histórias, de superar traumas pessoais.
Planejar a imagem final, posicionar a câmera, ajustar a distância focal, a abertura e a velocidade, acionar o autodisparador e, finalmente – desenvolto, apressado –, posicionar-se diante da lente e posar, assumindo a atitude planejada. Mais ainda: atuando.
O que Fosso faz é demonstrar sua capacidade de nos arrastar – a nós, o público – em sua jornada para uma espécie de cura, uma espécie de redenção.
A cura pode ser feita com o uso meticuloso de ervas, raízes e a prática de certos rituais. Ela também pode ser feita com a performance corporificada do fotógrafo, atuando as experiências vividas diante da câmera.
Em poucas palavras, Samuel Fosso é um fenômeno. Personalidade extremamente intuitiva, sensível e criativa, começou seu trabalho muito cedo e até hoje tem uma força enorme – apesar de provações e tropeços de todo tipo. Parcialmente paralítico de nascença, não recebeu alívio nenhum da medicina moderna. Por fim, quem conseguiu curar sua paralisia foi o avô, curandeiro e chefe da aldeia. Pouco depois, a mãe morreu. Fosso se mudou da Nigéria para Camarões e, depois, para Bangui, na República Centro-Africana, onde se tornou pupilo de um fotógrafo de estúdio. Aprendeu o ofício com entusiasmo e, muito jovem, seguiu seu rumo sozinho.
Um pequeno espaço comercial rudimentar: seu estúdio e, depois do expediente, lugar para encenar e representar papéis juvenis, em poses e atitudes que refletem o zeitgeist da África Ocidental e da África Central no início da década de 1970. A euforia dos festejos da independência do início da década de 1960 havia ficado para trás, bem antes. Sucederam-se golpes de Estado, a derrubada de ícones políticos, a selvageria de guerras civis. Uma nova ordenação se revelava gradualmente na década que tinha início.
Na confinada República Centro-Africana, sem saída para o mar, o jovem Samuel Fosso concebeu um precário ritual cotidiano. Os clientes se dirigiam ao estúdio para serem fotografados e se posicionavam diante de panos de fundo coloridos, depois obedeciam a instruções e incentivos do jovem fotógrafo, no comando da câmera e dos refletores. As imagens resultantes eram uma espécie de confirmação dos retratados, fotografias que comprovavam sua importância social, que expunham o mero fato de sua existência, de sua importância visual.
Essas fotos muitas vezes iam parar em álbuns de família, cerimoniosamente apresentados sempre que houvesse visitas, para que elas os folheassem e apreciassem as poses e os fundos, vendo parentes e amigos em cenas imaginárias em preto e branco.
Contudo, Fosso ia muito além de sua carga diária de trabalho. O jovem também fazia autorretratos em que aparecia sozinho, no silêncio da noite e do pequeno espaço do estúdio, então deserto. É muito interessante tentar entender qual seria a motivação do fotógrafo ao fazer – construir – aquelas imagens. De acordo com ele, algumas delas foram feitas para ser enviadas a sua querida avó, na Nigéria, que sofria muito por estar separada do neto e com quem Fosso tinha uma relação de muita proximidade. As fotos teriam o objetivo de mostrar que ele estava bem, com sucesso comercial crescente na distante Bangui.
Muitas das imagens, porém, eram feitas sobretudo para ele mesmo, jovem como era e impossibilitado de frequentar bares e boates à noite. Assim, em seu espaço noturno privado, ele se vestia segundo a moda de então, com camisas de golas amplas, calças ajustadas nos quadris, elegantes jaquetas estampadas, óculos escuros… e a paixão da época: sapatos de plataforma. As imagens são extraordinárias e mostram uma tendência para a experimentação, para ultrapassar os limites visuais, para despir-se diante da bateria de luzes que iluminavam o cenário. Tudo isso no lapso de dez segundos do autodisparador. Planejar a imagem final, posicionar a câmera, ajustar a distância focal, a abertura e a velocidade, acionar o autodisparador e, finalmente – desenvolto, apressado –, posicionar-se diante da lente e posar, assumindo a atitude planejada. Mais ainda: atuando.
Essa última parte – a atuação – manifesta a profundidade da trajetória de Fosso. Já naquela época, embora relativamente jovem, ele tinha consciência das vicissitudes a que todos estão sujeitos na vida. Criança, vivenciara a fome e as privações de Biafra, devastada pela guerra. Os primeiros meses em Bangui haviam sido difíceis, com um volume acachapante de trabalho, tanto doméstico como laboral. Foi dele a decisão de começar a trabalhar como aprendiz de fotógrafo. Dele também, a decisão de produzir aquelas imagens no meio da noite, secretamente, silenciosamente, sem mostrá-las a praticamente ninguém.
Inspirado em parte pelas revistas de moda e estilo que via numa livraria da vizinhança e por outras que os soldados do Corpo da Paz estadunidense levavam consigo para o país, Fosso também posou para si mesmo, quase nu ou usando roupa de baixo colada ao corpo, ostentando e reproduzindo os gestos e maneirismos de ícones populares e, especialmente, de cantores negros. Do cantor de soul James Brown, por exemplo. De Nico Mbarga, cantor muito popular de highlife. Aquelas eram imagens destinadas unicamente ao consumo pessoal; eram uma peça, uma performance para um público de uma só pessoa. Depois de examinadas com cuidado, elas eram armazenadas, escondidas numa caixa que continha muitas outras do mesmo tipo.
Fosso conhecia intimamente o espaço do estúdio, seus requisitos, a iluminação, a câmera. Conhecia também o efeito que obtinha movendo a câmera para mais perto, quando queria fotos em close; conhecia bem o cortinado do plano de fundo, o piso quadriculado – condições específicas dentro das quais a performance podia emanar, ganhar existência. Estava perfeitamente ciente de que seu público era de uma só pessoa – ele mesmo –, além de, ocasionalmente, sua avó distante.
Hoje, em novas publicações, a série de imagens denominada Estilo de vida década de 1970 (1975-78) mistura os registros pessoais de Fosso, feitos à noite, com retratos dos clientes que passavam pelo estúdio no decorrer do dia. Essa combinação oferece um insight precioso das condições de trabalho a que o fotógrafo estava submetido e do modo como ele incorporava as poses e as atitudes dos clientes a seu repertório pessoal. Inversamente, vemos como ele transferia suas manifestações corpóreas a seus clientes.
Em retrospectiva, é fácil interpretar de modo errado o que ficou no passado, dar-lhe uma tonalidade romântica, esquecer determinadas anomalias, determinados momentos perturbadores. As imagens pessoais de Fosso eram apenas isso: pessoais. Ele fazia as fotos e as construía a partir de uma necessidade interna de atuar, de representar, na solidão noturna de seu estúdio. Ele fazia as fotos e as revelava, tal como fazia com as que produzia por ofício; examinava-as, e aquelas que aprovava guardava com cuidado.
Os anos foram passando, e o cenário gradualmente se alterou. Na década de 1980, a fotografia em cores se tornou popular, assim como a disseminação de câmeras automáticas fáceis de usar. Qualquer um estava habilitado a fazer uma foto, criar uma imagem, preencher as páginas dos álbuns de família – que continuavam populares. Multiplicaram-se os laboratórios de fotografia em cor, que revelavam rapidamente filmes coloridos analógicos, com as cópias saltando de máquinas que eram minilaboratórios automatizados. Fosso perdeu sua clientela e se adaptou, passando a vender em seu estúdio filmes e equipamento fotográfico oriundos da Nigéria.
Só a partir de 1993, quando o fotógrafo francês Bernard Descamps apareceu na cidade em busca de fotografias para a primeiríssima Bienal dos Encontros de Bamako, que aconteceria um ano mais tarde, no Mali, os dois homens revisitaram as caixas repletas de imagens pessoais de Fosso. E foi em Bamako, em 1994, que Fosso se deu conta de modo contundente do que havia empreendido durante todos aqueles anos, na cadência tranquila das noites em seu estúdio.
Autorretratos feitos em isolamento quase absoluto, buscando, questionando, testando limites. O país passava por um período de agitação política, econômica e social. O infame demagogo Bokassa fora se tornando incrivelmente irracional à medida que os anos 1970 avançavam. No fim da década, ele foi derrubado, mas não houve grande melhora na situação, e, em 2004, o país afundou num conflito civil debilitante e altamente destrutivo, que acabou se metamorfoseando e se expandindo até se transformar numa guerra civil declarada.
Naqueles anos de profunda incerteza, Fosso tomou plena consciência de sua capacidade artística. Seus autorretratos, extremamente privados, eram na verdade um esforço de autocura, uma tentativa de superar os anos de vida precária, quando era tão jovem e tão solitário na florescente Bangui, e também a fome extrema da infância e as provações do conflito interminável em Biafra.
Sozinho no estúdio, ele podia imaginar a liberdade, vestir as roupas que quisesse, usar óculos escuros e encenar seu próprio enredo – para si mesmo. Em 1994, em Bamako, sua performatividade no autorretrato foi plenamente reconhecida e aceita pelos pares e colegas fotógrafos. Pela primeira vez, Fosso deu-se conta de que a fotografia podia ser muito mais do que uma maneira de ganhar a vida. Podia ser uma forma poderosa de autoexpressão, um jeito de contar histórias, de superar traumas pessoais.
Ele também se deu conta da existência de fotógrafos que pensavam de maneira semelhante à dele, vindos de todo o continente, trabalhando em gêneros diferentes, mas com o mesmo objetivo apaixonado de conquistar status internacional e de levar adiante suas criações. Num período relativamente curto, ele também passou a fazer parte daquele movimento, trabalhando e expondo na Europa, ampliando continuamente sua compreensão e apreciação do que a fotografia é capaz de dizer, do que a fotografia é capaz de conjurar no público.
Duas décadas depois, em 2014, Fosso já era um artista/fotógrafo internacional reconhecido, ainda baseado em Bangui, mas viajando frequentemente para o exterior. Naquele ano, a agitação no país atingiu um nível perigoso, com saques e atrocidades sendo cometidos em diferentes cidades. O estúdio de Fosso foi pilhado, seu equipamento, roubado, seu arquivo, disperso pela rua. Por sorte, ele estava em viagem na ocasião. Por sorte, também, seu arquivo foi recuperado por dois fotojornalistas estrangeiros e um ativista de direitos humanos, que reconheceram a qualidade e o valor dos negativos e das cópias esparramados. Depois de acondicionados em três caixas, negativos e cópias foram despachados para o fotógrafo, em Paris.
Pouco depois, Fosso deu início à série de autorretratos lancinantes que intitulou SEISSEISSEIS (2015). Closes de seu rosto, com baixa iluminação, feitos ao longo de meses. Seiscentos e sessenta e seis ao todo, fotos nas quais praticamente não há alteração de uma imagem para outra, embora, na sequência, a dor e o trauma de suas provações e experiências pessoais emerjam de forma devastadora.
O número bíblico aparece no Novo Testamento, no Livro das Revelações, e é frequentemente considerado um sinal de má sorte ou do demônio, remetendo a uma época de sofrimento e desespero. Ao mesmo tempo, o título pode ser visto sob uma luz positiva, como busca e anseio por equilíbrio espiritual. É o que sentimos ao ver a sucessão cumulativa de 666 imagens do rosto de Fosso.
Cada foto é praticamente um close frontal da cabeça, com um pedaço da parte superior do torso – pescoço e clavículas levemente protuberantes. Ele sorri, faz cara séria, de vez em quando ri, ocasionalmente faz careta. É como se quisesse encenar todo o repertório das reações faciais humanas, utilizando até os olhos para enfatizar uma emoção particular. É insistente, consistente, performático. Trabalhando com a ajuda de uma pequena equipe no exíguo estúdio parisiense, o artista assume, com o passar dos meses um compromisso sério com a performance, com os meros fatos visuais de seu rosto. Os olhos, os lábios, o nariz, a forma oval da cabeça, o cabelo ralo, as orelhas por vezes visíveis, a forma do queixo, a testa renitente, a parte superior do torso, igualmente recalcitrante, o pescoço, as clavículas altas.
Seiscentos e sessenta e seis confrontos. Luz escassa. O jogo das bordas do contorno – bordas de polaroide. Enquadramento, concentrando o olhar daquele que olha a imagem.
Fosso não é uma manifestação de algum tipo de demônio ou força do mal: as expressões faciais são variadas demais; as informações codificadas na performance, muito inconclusivas. O que ele faz é demonstrar sua capacidade de nos arrastar – a nós, o público – em sua jornada para uma espécie de cura, uma espécie de redenção. A despeito dos anos de provação e dos tempos difíceis, e também dos anos de sucesso e reconhecimento, no fim o que importa é o longo prazo, o acúmulo de experiências e intuições profundamente enraizadas. Em seu peso acumulado, elas curam, proporcionam uma compreensão mais aprofundada, dão lugar a um trajeto mais iluminado, mais positivo.
Quem curou sua paralisia da infância foi o avô materno; foi o avô também quem incentivou o neto a ir em busca da meta de tornar-se um curador. Embora as circunstâncias tenham levado Fosso a outros caminhos muito distantes da aldeia dos avós, ele regressou anos depois e reconheceu em imagens o ritual que o avô realizara para curá-lo. A cura pode ser feita com o uso meticuloso de ervas, raízes e a prática de certos rituais. Ela também pode ser feita com a performance corporificada do fotógrafo, atuando as experiências vividas diante da câmera. ///
Tradução do inglês de Heloisa Jahn
Fotos da série Estilo de vida década de 1970 (1975-1978) © Samuel Fosso, Cortesia Jean Marc Patras/Paris.
Publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #22, disponível na loja virtual do IMS.
Assista no canal da ZUM no Youtube: Autorretrato e resistência, conversa entre Samuel Fosso e Renata Bittencourt que aconteceu no Festival ZUM 2022.
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Studio Photo Nationale, de Samuel Fosso (Sébastien Girard/MEP, 2021) Autoportrait, de Samuel Fosso (Steidl/The Walther Collection, 2020) SIXSIXSIX, de Samuel Fosso (Steidl, 2020)
Samuel Fosso (Camarões, 1962) é fotógrafo, retratista e performer. Filho de pais nigerianos, precisou mudar-se para a República Centro-Africana, fugindo da Guerra Civil. Seus trabalhos integram as coleções do Museu de Arte Moderna de Nova York, do Museu de Belas-Artes de Houston, da Galeria Purdy Hicks e do museu Tate, em Londres.
Akinbode Akinbiyi (Reino Unido, 1946) é fotógrafo e bacharel em inglês e literatura na Nigéria, Inglaterra e Alemanha, onde vive hoje. Em 1993, cofundou o UMZANSI Centro Cultural em Durban, África do Sul, e participou das exposições Africa Remix, montada em Dusseldorf, Londres, Paris, Tóquio, Estocolmo e Joanesburgo, entre 2004 e 2007, e Three Photographers/Six Cities, no Museu de Arte de Filadélfia, em 2016. É coautor do livro Just Ask! (Kerber Verlag, 2015), sobre fotografia africana e diaspórica.























