Hotel Tropical
Publicado em: 20 de junho de 2013Encontros fortuitos nos quartos de um lugar imaginário
Um quarto de hotel carrega em si uma contradição evidente: é espaço privado que se compartilha. E que se compartilha com desconhecidos. Gente que já ocupou os lençóis, usou o banheiro, pendurou as roupas no armário, teve sonhos intranquilos na cama e anotou-os sobre a mesa de cabeceira. Por higiene física e mental, preferimos ignorar os rastros, visíveis ou não, dessa multidão de anônimos. Quando a porta é fechada, o quarto de hotel torna-se nosso.
Ou assim precisamos crer. Os melhores hotéis são justamente os que nos poupam desse esforço e conseguem construir a ilusão asséptica de que somos os visitantes primeiros daquele espaço, de que jamais alguém dormiu entre aquelas paredes. Não por acaso, usam lacres de papel nas privadas e técnicas marciais para fazer a cama – num bom hotel, é preciso ter força para meter-se no lençol antes de dormir. Pequenas inaugurações que os hotéis fotografados por João Castilho não nos oferecem.
Suas fotos afirmam que a exclusividade do quarto de hotel – de qualquer quarto de hotel – é falsa. Tão ilusória quanto a do corpo do amante que acreditamos ser nossa propriedade – que sempre foi ou será nosso, nas duas direções da linha do tempo. As maiores paixões fazem crer nessa mentira evidente.
Ao contrário do Quarto de hotel de Edward Hopper, as fotografias de João Castilho são antinarrativas. Se em Hopper tudo parece o prenúncio de uma ação ou a continuação do frame anterior – a mulher da pintura se levantará depois de ler a carta, fará as malas e partirá? o que está escrito no pedaço de papel? –, os quartos de hotel de João Castilho nos imobilizam numa cápsula de tempo congelado. O mistério das fotos é a ausência de mistério.
Nos últimos anos, Castilho retratou quartos de hotel no Mato Grosso, na Bahia, em Minas Gerais, em São Paulo, em Goiás, no Amazonas e no Mali. Na maioria das fotos, usou uma câmera digital com lente de 28 mm. Feito primeiro de maneira inconsciente e depois com mais método, o ensaio é formado por quatro grupos de fotos, cada um com uma cor predominante – azul, verde, vermelho e branco. Esses conjuntos assimétricos criam uma espécie de mosaico, que, segundo Castilho, lembra a planta dos hotéis onde as fotografias foram tiradas: “Essas construções têm a capacidade de desenvolver tentáculos, que se estendem para cima, para os lados, para baixo. Foi esse movimento que tentei passar para os blocos.” O trabalho ganhou forma final na composição das fotoinstalações, com fotos que se conectam como se fossem cômodos. Alguns dos corpos que vemos são o próprio fotógrafo, que, viajando sozinho, usava-se como modelo. Outros sobraram de encontros fortuitos, fugazes, com pessoas de passagem, como ele.
Esses quartos de hotel surgem como uma representação de nós mesmos: cheios de arestas, manchados, tocados por muitos. As paredes marcadas são os limites do corpo – somos todos um quarto de hotel. E cada vez mais expostos, com a privacidade rarefeita, franqueados à visita de desconhecidos, em tempos em que as imagens de nós mesmos espalham-se em círculos que não controlamos. As fotografias de João Castilho dizem isso, o tempo todo, para quem quiser ver. ///
João Castilho é fotógrafo e artista visual. Publicou Pulsão escópica (2012), Peso morto (2010) e Paisagem submersa (2008).
João Paulo Cuenca é autor dos romances Corpo presente (2002 e O único final feliz para uma história de amor é um acidente (2010), entre outros.
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