Revista ZUM 17

Anatomia de uma paixão

Eduardo Solon & Inácio Araujo Publicado em: 21 de agosto de 2025

ÁLBUM 1 – Fotogramas de O mágico de Oz (1939), vários diretores, Os brutos também amam (1953), de George Stevens, e Jesse James contra os Daltons (1954), de William Castle
Fotogramas de Tudo o que tenho é teu (1952), de Robert Z. Leonard, O cantor de jazz (1952), de Michael Curtiz, e Ticonderoga: o forte da vingança (1953), de William Castle
ÁLBUM 2 – Fotogramas de Anjo escarlate (1952), de Sidney Salkow, O valente de Nebraska (1953), de Fred F. Sears, A vida íntima de Adão e Eva (1960), de Mickey Rooney e Albert Zugsmith, As mil e umas noites (1942), de John Rawlins, e Palavras ao vento (1956), de Douglas Sirk
Fotogramas de A mais bela mulher do mundo (1955), de Robert Z. Leonard, O vale dos reis (1954), de Robert Pirosh, O homem que vendeu a alma (1955), de Claude Autant-Lara, Minha vontade é a lei (1959), de Edward Dmytryk, e Os covardes não vivem (1952), de Stuart Gilmore
ÁLBUM 3 – Fotogramas de Carta de uma desconhecida (1948), de Max Ophüls, Sua única saída (1947), de Raoul Walsh, e Cidade sem compaixão (1961), de Gottfried Reinhardt
ÁLBUM 4 – Fotogramas de Casablanca (1942), de Michael Curtiz, A infame (1954), de Miguel Zacarías, O homem das calamidades (1950), de Jack Donohue, e Beau geste (1939), de William A. Wellman
ÁLBUM 5 – Fotogramas de O cangaceiro (1953), de Lima Barreto
ÁLBUM 6 – Fotogramas de E o sangue semeou a terra (1952), de Anthony Mann, e Entre o crime e a lei (1951), de Ray Nazarro


Sem conhecer Eduardo Solon, é impossível imaginar o que o levou a constituir sua fantástica coleção de 30 mil fotogramas retirados de cópias de filmes produzidos entre as décadas de 1920 e 1960. Desse conjunto, o colecionador catalogou e inseriu 6 mil fotogramas em meia dúzia de álbuns cuidadosamente montados.

O que pretendia? A pergunta pode ser insidiosa. A princípio, desejava reter os filmes que viu e amou. Mas por que transformar a experiência em objeto concreto, fixo, destituído das fragilidades da memória?

Solon começou sua coleção em 1936, aos 11 anos, depois de ver Tarzan, o filho das selvas (1932), na cidade cearense de Sobral, onde vivia. A partir de então, passou a frequentar o cinema munido de um caderninho para anotar suas cenas preferidas. Terminado o filme, dirigia-se à cabine a fim de pedir ao projecionista que cortasse um fragmento de determinada cena. A obsessão custava caro, pois era necessário pagar pelo corte, e prosseguiu quando se mudou para o Crato.

Adulto, morando em Fortaleza, ampliou sua rede de colaboradores, projecionistas em sua maioria, além de donos de cinemas da cidade e região, dispostos a mutilar as cópias de filmes e enviar as preciosas imagens pelo correio. Não era propriamente uma grande transgressão, pois na época as cópias eram destruídas, por lei, ao fim de cinco anos. Paradoxalmente, os catadores de fotogramas trabalhavam para preservar a memória dos filmes e da exibição cinematográfica no interior do Brasil, e do Ceará em especial. A contravenção de Solon e seus asseclas transformava um objeto de exploração comercial em objeto de culto e memória.

No entanto, por que apenas um quinto dos fotogramas foi organizado? Por falta de tempo, ou teria Solon perdido o interesse pela coleção, como perdeu pelo cinema, cuja produção a partir de certo momento passa a desgostá-lo? Na década de 1960, ele encerrou a coleção iniciada quase trinta anos antes. No fim da vida já não costumava se aproximar das imagens ou falar muito do assunto.

Não havia mais filmes ou bons artistas, pensava. No entanto, vários atores catalogados, como Burt Lancaster, Vittorio Gassman, Grande Otelo continuavam trabalhando. Será que ele não se deslumbraria com Marlon Brando em A face oculta (1961), com Liz Taylor em Cleópatra ou com Claudia Cardinale em O leopardo, ambos de 1963?

Esse tipo de conjectura, ainda que inevitável, não nos afasta do essencial: a coleção. Toda coleção comporta um desvio de finalidade, um deslocamento da função dos objetos. “As locomotivas e os vagões reunidos num museu ferroviário não transportam nem viajantes nem mercadorias”, escreveu o filósofo polonês Krzysztof Pomian. “As chaves já não fecham porta alguma, os relógios [não marcam] a hora exata.” O que era fragmento mínimo de um filme (cada fotograma é um quadro de 1/24 de segundo) torna-se a memória do colecionador, de que seus sonhos existiram, de que sua paixão foi real.

Se no primeiro momento essa matéria é prova de memória, com o tempo ela se transforma em herança. Muitos pais não se conformam em deixar apenas bens de valor aos filhos. O que os perpetua são os gestos, as ideias, a paixão clubística. E por que não fotogramas? Mas, se fotogramas não são bandejas em que se pode servir o jantar nem estatuetas para decorar a sala, qual seria então o seu uso?

A coleção que produz memória e depois herança serve mais tarde também à história; transita do individual ao coletivo, do acúmulo à preservação. Ela permite que se leia não apenas o gesto individual do colecionador, como também sua paixão: é possível se demorar em cada página, em busca de distinguir os filmes que conhecemos dos que não conhecemos.

No conjunto de Solon, filmes B pouco conhecidos misturam-se a clássicos como E o vento levou e O mágico de Oz (ambos de 1939). Ao mesmo tempo, a atividade do colecionador, que em algum momento foi um gesto de ordenação, hoje se oferece ao cinéfilo como puro fascínio. São traços de uma arte popular, aberta aos olhos e ao entendimento de todos. Uma arte que já não existe mais, disse o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard: hoje o que existe são ilhas.

Isso torna mais intenso o encanto: Solon nos chama a ver, em alguns fotogramas, o que era cada um desses filmes, e atiça uma curiosidade que, na maior parte dos casos, já não pode ser satisfeita.

Discriminamos suas preferências: Tarzan, claro, e faroestes, aventuras, melodramas (mexicanos, em particular). Na coleção, Carta de uma desconhecida (1948), do alemão Max Ophüls, não vale mais do que O derradeiro assalto (1954), do americano Richard Carlson.

A raridade ou banalidade de cada imagem é irrelevante, assim como o valor que o futuro atribuiu ou não a tais filmes. Essa é a diferença entre a filatelia e, digamos, a fotogramia. Da primeira, ainda hoje encontramos sinais nas feiras de antiguidades, onde alguém pode buscar um selo raro. Sua aventura, porém, termina aí. Atrás do selo, não existe nada. Valor de troca, talvez, mas nada a ser visto.

Os fotogramas compilados, ao contrário, não contêm tudo. Seu poder evocativo consiste em nos levar, através da imagem isolada, ao mundo de cada um desses filmes, a uma era irrevogavelmente encerrada. O fascínio vem de cada fotograma, mas, sobretudo, daquilo que podemos ver além dele: filmes, sonhos, ideias, memória, história.

A fotografia é semelhante à pintura no que diz respeito a sua natureza centrípeta. É como se todo o universo necessário fosse convocado para o interior do quadro no instante decisivo do clique. Já a relação primordial do fotograma cinematográfico não é com o instante, mas com a duração. A imagem do cinema, afirma o crítico francês André Bazin, é centrífuga, ela nos leva para além do quadro, e a visão que nos oferece é sempre parcial.

Talvez não seja exagero dizer que o essencial da imagem cinematográfica é o que está fora de campo: por exemplo, se a heroína, em primeiro plano, abre a gaveta onde esconde um objeto secreto e alguém chega inesperadamente, sem que ela tenha tempo de escondê-lo, tudo o que vemos é seu rosto apreensivo. Ou quando a vítima, em um filme de terror, percorre um corredor sombrio, podemos sentir o medo em sua expressão, mas não vemos aquele que a espreita e se prepara para atacá-la.

No ensaio A câmara clara (1980), Roland Barthes escreve que “se define a foto como uma imagem imóvel, isso não quer dizer apenas que os personagens que ela representa não se mexem; isso quer dizer que eles não saem: estão anestesiados e fincados, como borboletas”. Nesse sentido, a coleção de Solon nega o cinema ou ao menos o retorce em busca de uma segunda natureza: a imobilidade no interior do movimento.

É o caso da imagem de Lauren Bacall em Palavras ao vento (1956), presa naquele fragmento de 1/24 de segundo do filme. Olhar esse fotograma é como enfrentar um abismo: o tempo se imobiliza. Ao ver o filme, não é essa a sensação que experimentamos; o que nos intriga é o destino da personagem de Bacall. O fotograma imóvel na página evoca o destino da atriz: os filmes que fez antes ou depois, seus casos amorosos etc.

Desse filme de momentos tão dramáticos, Solon colheu um fotograma genérico. Não é um acaso. As imagens que ele prefere, que ocupam quatro dos seis álbuns concluídos, são invariavelmente os primeiros planos dos artistas. Quando observamos o elenco de Palavras ao vento (talvez com exceção do rosto de Robert Stack) e da maioria dos filmes catalogados, a semelhança é enorme: são quase sempre imagens neutras, em que sentimento ou expressividade contam pouco. Quase não há felicidade, dor ou apreensão neles. Aliás, parte considerável dos fotogramas provém dos letreiros de abertura e se faz acompanhar de seus nomes.

Aquilo que no cinema é fugidio, o movimento, a sensação, o perigo etc., parece não interessar ao colecionador: são coisas que fazem parte do correr do tempo. O movimento é suprimido, substituído por um instante que originalmente não existia como instante, pois não era fotográfico. O que entusiasma Solon é a imobilidade: retratos de atores e atrizes, captados como esculturas, nos quais o fundo importa pouco. Existe uma instabilidade nessas figuras, que as torna únicas: como se o ator ou a atriz pudesse fugir dali a qualquer momento. São eles o real objeto de culto da coleção, para sempre capturados pela memória.

Solon gostava de ir ao cinema sozinho, sem a noiva, para não se distrair. Cinema era lugar de namorar, mas não para ele. A sessão de cinema era similar ao ato religioso, que não admite dispersão. E os atores e as atrizes são as expressões maiores do olimpo cinematográfico, como os santos do catolicismo. Uma devoção bem caracterizada nos álbuns.

Porém, assim como na imagem dos santos, existe algo além da própria imagem. O invisível ali está representado. Por trás da imagem do santo existem milagres, martírios, nossos pedidos de intervenção para deuses maiores.

Hoje, podemos ver na coleção aspectos da distribuição cinematográfica no interior do país, em particular nos anos 1950, período de que faz parte a maioria dos filmes catalogados, e a presença forte, maior do que atualmente, de produções não americanas. Os filmes da mexicana Pelmex eram acompanhados com o mesmo cuidado dedicado aos de Gina Lollobrigida, uma das favoritas de Solon – repare na página de A mulher mais linda do mundo (1955), com a atriz detalhada em várias vestimentas! Convivem filmes e atores italianos, franceses, mexicanos e brasileiros. Isso fora do eixo Rio-São Paulo.

Pode-se até deduzir que as quatro páginas e quase cem fotogramas dedicados a O cangaceiro (1953) derivem de algum orgulho nacionalista diante do sucesso mundial do filme. É um dos casos em que se pode ver na imagem um fundo mais delineado, como quando, atrás do ator Milton Ribeiro, surge um magnífico céu à mexicana. As chanchadas, no entanto, também aparecem com destaque.

E por que, com os anos, Solon se desinteressou de vê-los, de catalogá-los? Por que não gostava nem mesmo de falar do assunto? Talvez por ter constatado que a lembrança dos filmes fugira por alguma fenda daqueles fotogramas. É provável que restassem deles não mais do que imagens mortas. Tendo essa era do cinema sido revolvida, talvez ele nem tivesse mais com quem conversar sobre Libertad Lamarque ou George Montgomery. Ou suspeitasse que eles não existiam mais… Pior: que nunca tivessem existido de fato.

Há, porém, outra explicação possível para o desgosto de Solon. Toda coleção é uma maneira de deter o tempo – o tempo que nos conduz à morte inevitável. É bem possível que, chegando a certa idade, ele tenha notado a inutilidade de seu gesto: o tempo não se detém, o cinema se transforma, seus velhos heróis são esquecidos.

Para nós, no entanto, o sentido é diverso: diante desses fotogramas travamos contato com seres reais. Para nós, eles constituem a realidade irreal dos filmes, das ficções, dos fantasmas que habitaram a tela. São história, é certo. História parcial de uma arte, de um modo de difusão e da era clássica do cinema, mas também de um homem e de sua paixão. Assim como da fé quase religiosa que esses atores puderam suscitar um dia e que, de algum modo, ressuscita nessa estranha coleção. Se ela não perenizou seus santos, produziu uma forma de eternidade para seu criador. ///

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Publicado originalmente na revista ZUM #17 de novembro de 2019. À venda na loja virtual do IMS.

Coleção de Arte Contemporânea / Acervo IMS



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