Revista ZUM 15

Um homem amazônico

Daniela Labra & Éder Oliveira Publicado em: 3 de janeiro de 2019

Série Pixel, de Éder Oliveira, 2018.

O jovem de olhos escuros da pintura parece exausto. Mestiço, também chamado caboclo, tem o olhar e a postura endurecidos em um corpo de constituição mirrada. Esses sujeitos, de tipo físico semelhante e identidade não revelada, vistos pela sociedade como marginais, são os protagonistas das pinturas de Éder Oliveira.

Nascido em Timboteua, no nordeste do Pará, longe de um ambiente cultural erudito, Oliveira ingressou na licenciatura em educação artística da Universidade Federal do Pará em 2004, e graduou-se em 2007. Durante a faculdade, trabalhou no Sesc da capital, onde permaneceu até 2014. Ali, teve o primeiro contato com produção de exposições e de eventos culturais, experiência fundamental em sua formação. Morador de Belém, participou da   31a Bienal de São Paulo, em 2014, chamando a atenção do meio artístico elitista concentrado na região Sudeste. Dois anos mais tarde, recebeu o prêmio de arte Lingener, na Alemanha, onde expôs na mesma ocasião.

Série Cenas singulares, de Éder Oliveira, 2016.

Série Cenas singulares, de Éder Oliveira, 2016.

 

Sua obra inclui aquarelas, pinturas urbanas, site-specifics, objetos e óleos sobre tela. Esse universo pictórico, contudo, é atravessado pela fotografia, pela imprensa e pelas técnicas de reprodução. A fotografia produzida no Pará, principalmente aquela vinculada à associação cultural Fotoativa, é referência para o pintor. Há anos, esses artistas participam de exposições nacionais e internacionais, e atuam como fotojornalistas nos tabloides de notícias populares. Esse trânsito enriquece a cultura visual da região, que, por sua vez, alimenta o trabalho de fotógrafos conhecidos, como Wagner Almeida e Alberto Bitar.

Oliveira se dedica com obstinação a retratar pessoas comuns, de traços negros e indígenas, cuja imagem é veiculada em matérias sensacionalistas sobre crimes ainda não investigados. Em seu processo criativo, ele se debruça diariamente sobre pilhas de jornais e tabloides de Belém sem, contudo, ler as notícias de onde extrai suas imagens, nem se aprofundar nas notas biográficas dos modelos, muitas vezes fotografados de surpresa, em situações constrangedoras. A quase ausência de figuras femininas no trabalho chama a atenção. Para o pintor, isso se deve ao fato de a presença das mulheres ser menor tanto nas estatísticas criminais como na mídia que cobre os crimes.

Série Paridade, de Éder Oliveira, 2018.

Série Paridade, de Éder Oliveira, 2018.

As pinturas de Oliveira têm um aspecto chapado, decorrente, em parte, da operação de transposição da fotografia de jornal para a tela, sem contato com os retratados. Esse distanciamento gera uma relação platônica entre criador e objeto. O mergulho do artista nessa realidade cortante é apaixonado, verdadeiro e doloroso – algo que ele não dissimula ao falar de sua pesquisa visual. Por meio dela, denuncia a maneira como os mecanismos perversos de exclusão social, que marcam a vida de jovens pobres, banaliza identidades. E também destrinça com sensibilidade as relações entre imagem, cor da pele, identidade e marginalização.

A obra de Oliveira põe em evidência a produção e a circulação de fotografias de pessoas consideradas criminosas a priori, ao mesmo tempo que recontextualiza involuntariamente as imagens originais – retiradas dos cadernos policiais; as fotografias usadas pelo artista se transformam em pinturas que  serão novamente publicadas em jornais quando expostas em galerias de arte.

Série Das formas possíveis de se esconder #2, de Éder Oliveira, 2018.

Série Das formas possíveis de se esconder #2, de Éder Oliveira, 2018.

Nessas pinturas, as figuras são executadas com traço duro, contorno marcado e muito contraste, sendo notável a presença das tonalidades ocre, marrom-avermelhada e violeta-azulada. Em geral, a variação cromática das obras é reduzida e destaca matizes singulares, criados pelo pintor para ter mais domínio de cores vermelhas e verdes. O artista, que é também professor de pintura, sofre de daltonismo, o que cria dificuldade para distinguir essas cores – paradoxo que o levou a desenvolver um método próprio, produzindo pigmentos e inventando códigos para definir os tons em uma paleta de oito a dez cores. As limitações impostas pelo daltonismo se tornaram elementos distintivos das pinturas.

Nas telas monocromáticas de Páginas vermelhas (2015), por exemplo, a repetição da cor mal-apreendida por um daltônico aproxima os tipos físicos retratados e aumenta a voltagem política do trabalho. O vermelho faz referência aos partidos de esquerda, às lutas sociais e ao genocídio anual de 60 mil brasileiros – jovens negros e mestiços, policiais, bandidos declarados, indivíduos lgbtq, ativistas, líderes populares, indígenas, mulheres e crianças pobres.

No projeto Alistamento (2015), em que a cor verde predomina, Oliveira optou pela abordagem etnográfica e afixou cartazes próximo de quartéis da cidade de Belém para convocar jovens militares a participar do trabalho, que incluía um questionário e uma sessão fotográfica. Foram feitas duas perguntas parecidas com as dos censos decenais do ibge: “Como você se vê?” e “Como você vê o homem amazônico?”. Os dois grupos de respostas mostravam a diferença de percepção dos militares em relação a si mesmos e aos outros, apesar da semelhança, sobretudo física, entre aqueles que se consideravam representantes da pátria e os demais. As fotografias dos soldados com roupa de camuflagem serviram de base para pinturas de grande  formato  em  madeira, que foram expostas nas ruas da cidade.

Série Pixel, de Éder Oliveira, 2018.

Série Pixel, de Éder Oliveira, 2018.

Nos projetos de arte urbana, Oliveira confronta as comunidades de Belém com pinturas de rostos agigantados e anônimos em muros de vias com grande fluxo de pedestres. São rostos, que não costumam ganhar destaque, não são de alguém em especial, mas de filhos, irmãos, sobrinhos, netos, vizinhos.

A estrutura da obra lembra a pintura de cavalete e, ao mesmo tempo, uma colagem de jornal cujo fundo foi recortado. A escala monumental integra a obra ao espaço público e interage com os passantes e com a profusão de grafites, mensagens políticas, religiosas e comerciais, entre outros elementos do contexto urbano heterogêneo. Nas ruas, a arte é efêmera, e o registro fotográfico será, mais uma vez, um aliado importante para que a obra circule, enfrentando a escassez de espaços expositivos locais e a preferência por conteúdos mais nobres, o que faz com que o trabalho de Oliveira seja pouco visto na cidade onde mora.

Paradoxalmente, a crítica social da obra se materializa no gênero retrato, cuja origem histórica remonta a caprichos aristocráticos, servindo para imortalizar figuras proeminentes da sociedade ou do círculo de artistas burgueses. Oliveira discute essa estrutura ao retratar homens menosprezados pelas classes privilegiadas e transformá-los em capital simbólico no circuito da arte contemporânea.

Embora sejam o principal objeto de interesse do artista, os rostos nem sempre estão à mostra em seus trabalhos. Algumas telas retratam o ocultamento que os próprios modelos haviam promovido no momento em que foram fotografados; em outras, Oliveira suprime uma fração da figura ou cria texturas sobre a imagem. Em séries recentes, o artista cobre o rosto dos retratados com filtros digitais de pixels, como os aplicados em vídeos e fotos a fim de preservar a sociedade ou o indivíduo da exploração indevida da fisionomia de terceiros ou de si. A geometria do pixel aproxima as diferentes faces, de modo que a paleta de cor passa a ser importante na particularização da obra.

Em Monocromos (2016), por exemplo, uma fração mínima da face dos acusados é recortada da fotografia do jornal e convertida em pixel, dando origem a telas monocromáticas que representam os distintos tons de pele do amálgama brasileiro. Essas telas trazem, ainda, em relevo, as iniciais do retratado, o mês e ano da publicação da foto no jornal. Mesmo sem uma figura humana ou um texto claro, a obra enfatiza a naturalidade com que aceitamos o extermínio ou a condenação sumária de dezenas de desconhecidos. A maioria dessas pinturas não tem título nem rostos, o que ressalta o apagamento de certos grupos de cidadãos. São desretratos.

Série Pixel, de Éder Oliveira, 2018.

Oliveira se esmera na fatura de seus trabalhos para representar o “caboclo” – esse coletivo de excluídos sociais cujo futuro foi usurpado pelo Estado – em toda a sua complexidade. Ainda que não revele a identidade de seus retratados e sequer os tenha conhecido pessoalmente, o artista se compromete a zelar pela imagem de alguém que não teve direito a uma vida digna, muito menos a um retrato. Suas pinturas não apontam culpados, mas humanizam rostos destinados a virar estatísticas e, quiçá, uma foto descartável. ///

 

Éder Oliveira (1983) é artista paraense. Recebeu o prêmio de arte Lingener, da Alemanha, em 2016, e o prêmio Pipa de Voto Popular em 2017.

Daniela Labra (1974) é curadora de artes visuais e crítica de arte.

 

 

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