David Goldblatt: a arte de se indignar
Publicado em: 19 de outubro de 2018No início dos anos 2000, David Goldblatt (1930-2018) estava em casa com a mulher quando um grupo de criminosos surgiu. Foram horas de terror, que só terminaram quando os invasores saíram. Apesar das consequências pessoais do evento traumático, para o grande cronista do apartheid sul-africano, esse foi o ponto de partida de uma nova série fotográfica.
Ex-infratores na cena do crime (2008-16) abriu um caminho inédito para a obra de Goldblatt, àquela altura já consagrada. O artista propunha um retrato posado no local do crime pelo qual o retratado havia sido condenado à prisão. Um depoimento do infrator, exibido abaixo das ampliações fotográficas, servia como legenda. Escritos em terceira pessoa, esses textos, mais evocativos do que narrativos, reforçam a sensação provocada pelo olhar direto dos modelos para a lente da câmera.
Em uma das imagens mais impressionantes da série, no entanto, Sammy Matsebula evita a objetiva. Mirando o canto inferior direito do quadro, seu olhar escapa do nosso, enquanto sua mão abaixada faz um gesto tenso, unindo polegar e indicador. Seu corpo esguio preenche apenas metade da imagem, e um vazio enorme ocupa a outra metade, onde vemos a paisagem impessoal de um estacionamento, que nos faz pensar no caráter volátil do crime, capaz de, numa fração de segundo, deixar marcas perenes.
Parte da série foi exposta pela primeira vez na Bienal de Veneza de 2011, numa sala especial desenhada pela artista polonesa Monika Sosnowska. Apesar da força das imagens, não havia nelas nenhum sinal óbvio de redenção — mas, antes, um momento de contato, por meio da fotografia, entre artista, modelo e espectador.
Essas obras são ao mesmo tempo a manifestação da perplexidade do retratista diante da violência e um exercício de catarse para o retratado, que recebia um cachê módico para participar do projeto. Goldblatt doava o dinheiro da venda das fotos para instituições comprometidas com a reabilitação de ex-presidiários. Sem assumir o lugar de vítima dos crimes, o artista humanizava a situação com grande empatia. Em um texto sobre a série, ele afirma: “Tendo sido vítima, perguntei a mim mesmo: quem são as pessoas que cometem crimes? São monstros? São pessoas comuns? Poderiam ser meus filhos? São você e eu?”
Como para Goldblatt a fotografia é uma atividade política, podemos perguntar se, com Ex-infratores na cena do crime, ela não estaria sendo levada a outra dimensão, extrapolando noções clássicas de justiça (“aqui se faz, aqui se paga”) e de retrato (a separação entre retratista e retratado). Não se trata de dar um desfecho para os casos, mas de criar uma imagem que não é nem uma sentença nem uma pena.
Ainda que se filie a uma ampla tradição da fotografia forense e jornalística, que vai dos retratos de identificação policial conhecidos como mugshots às cenas de crime do americano Weegee, essas imagens não parecem ter um fim claro. “Eu não tenho ‘agenda’. Talvez seja por isso que muitas vezes os ex-infratores falam abertamente comigo”, escreveu Goldblatt. “Não sou magistrado, juiz, advogado, assistente social ou ativista. Acho que, para alguns, esta foi a primeira oportunidade de contar sua história sem serem julgados.” Numa sociedade em que as relações são cada vez mais mediadas pela Justiça, suspender essas categorias, mesmo que apenas pela duração de um clique, é um alívio.
Muitas das pessoas representadas nas imagens são negras, uma sequela visível do apartheid, na sua sobreposição perversa de diferença racial e desigualdade socioeconômica. As cicatrizes do regime brutal de segregação também aparecem nos crimes com motivação racial cometidos por brancos contra negros. Essas constatações nos fazem refletir se, dado o histórico de Goldblatt, não seria toda a África do Sul que está sempre diante de suas lentes. Se for possível falar de reparação nessas imagens, não seria da nação como um todo?
Os avós de Goldblatt imigraram da Lituânia para a África do Sul em 1892, escapando da perseguição aos judeus nos países bálticos. Seu pai se estabeleceu na cidade de Randfontein, a poucos quilômetros dos subúrbios dos South Western Townships, ou “Soweto”. O fotógrafo cresceu como filho de imigrantes numa família que prezava a tolerância e o antirracismo, valores que são a base de sua obra.
Numa entrevista ao curador nigeriano Okwui Enwezor, no catálogo de sua retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, em 2002, Goldblatt se recorda de ter tomado consciência do tratamento discriminatório aos africanos ainda muito jovem. “Me lembro que, de nossa casa em Randfontein, se via a delegacia de polícia no outro lado do veld [campo], e todos os dias os africanos detidos por infrações da ‘lei do passe’, ou por qualquer outra acusação, eram algemados e alinhados em filas de cinco ou seis, e depois eram obrigados a desfilar pela rua, da delegacia até o tribunal, situado no outro extremo da cidade. Havia algo profundamente humilhante; nenhum branco jamais teria que circular algemado e em fila pela rua. Seria impensável. Negros e brancos recebiam um tratamento muito distinto. Aquela situação me inquietava muito, e eu a associava ao antissemitismo, que experimentei em múltiplas ocasiões.”
No dia 27 de junho de 2012, Goldblatt me escreveu cedo de “Jo’burg”, perguntando se eu “gostaria de levar aquela conversa adiante”. Alguns meses antes, eu o havia convidado para vir ao Brasil fazer uma versão de Ex-infratores. Parecia uma oportunidade única trazê-lo para fotografar pela primeira vez em um país desconhecido (de fato, não conheço nenhuma obra feita por ele fora da África do Sul). Como curador, era estimulante imaginar um trabalho que capturasse questões tão próprias do Brasil por uma óptica externa. Pensava, sobretudo, nas marcas sociais do racismo legadas pela escravidão e no aumento vertiginoso da população carcerária. O país o fascinava justamente pelas semelhanças com seu contexto de origem. Infelizmente, por contingências diversas, acabamos não realizando o projeto.
Coincidentemente, cerca de dez dias depois viajei para a África do Sul e estive algumas horas com Goldblatt, a bordo de seu trailer, passeando por Soweto, o “gueto-dormitório dos africanos que trabalham em Joanesburgo”, como descreveu em um texto de 1972 sobre a série Cruzamentos de Jo’burg: Soweto. Parávamos em alguns pontos estratégicos, e ele me explicava como havia ficado horas por dia ali, durante décadas, fotografando as pessoas e a paisagem, sempre em busca daquilo que é mais comum e menos extraordinário e que, por isso mesmo, tem o poder de revelar as estruturas perversas do apartheid. As portas das casas, as calçadas, as ruas, o sentido de exclusão, tudo aquilo estava presente no trabalho de Goldblatt.
Falando sobre o Brasil, paramos no megatemplo da Igreja Universal, inaugurado em 2009, e vimos de longe o estádio Soccer City, um dos muitos reformados ou construídos para a Copa do Mundo de 2010. Goldblatt se revoltava com os recursos despendidos naquelas obras, segundo ele suficientes para resolver problemas enraizados na sociedade sul-africana, como o da educação — uma aberração que se repetiria na Copa do Mundo do Brasil, em 2014.
Naquela excursão memorável, Goldblatt me disse uma frase que nunca mais esqueci: “Durante o apartheid, ser branco ou ser negro definia absolutamente tudo o tempo todo na África do Sul. Desde como você vai ao banheiro até como enterra seus parentes”. As fotografias de Goldblatt feitas em Soweto entre 1972 e 1973 revelam a exclusão social sob o apartheid: uma paisagem com muita profundidade de campo, em que o casario ordenado e disciplinador ao fundo, que mais parece feito de pequenos galpões, contrasta no primeiro plano com ruas sem calçada e cobertas de dejetos; e retratos feitos no interior de casas, com a luz entrando pela janela e desenhando sombras no rosto das pessoas de maneira a realçar as expressões delas, dividindo-as ao meio. As imagens quadradas da série Particularidades (1975) são uma manifestação livre do domínio de Goldblatt do retrato: fragmentos de corpos de pessoas comuns fotografadas em parques de Joanesburgo. Por meio da linguagem corporal, das roupas e dos adereços e objetos que portam, os modelos expressam desejos e valores — como o homem que dorme na grama com um casaco manchado nas costas, a mulher que fuma com as mãos cruzadas sobre as pernas cobertas por meias de náilon, a babá que veste um guarda-pó surrado justo demais no abdome ou a garota que segura um porta-moedas com as mãos sobre a calça jeans. O interesse de Goldblatt por esses códigos não era fortuito. Antes de se tornar fotógrafo, ele trabalhou na loja de roupa masculina de seu pai, onde dizia ter aprendido sobre proporção, gesto e postura. Há, de fato, uma analogia entre vestir e retratar.
É tentador afirmar que Goldblatt foi um traidor de sua classe e de sua raça, pois cruzou o limite que se esperava de um sul-africano branco de família abastada ao denunciar o regime repulsivo de seu país. Sua posição, no entanto, era igual à de muitos sul-africanos brancos de esquerda, que viram na emergência do apartheid o fracasso da possibilidade de construir um país para todos os sul-africanos. É inegável a importância de sua condição de judeu vítima de antissemitismo na formação de sua visão política e artística. Mas, no fundo, ele se sentia um sul-africano, e não um imigrante ou exilado.
A estatura moral de sua obra está justamente na arte de se indignar — e de usar a fotografia como estratégia paciente e eficaz para expressar essa indignação. Vistas em conjunto, suas séries e seus ensaios compõem um multifacetado painel analítico do apartheid, embora sejam profundamente antissensacionalistas. Mesmo quando fotografava os costumes tradicionalistas dos africâneres com quem havia crescido (Alguns africâneres fotografados, década de 1960) ou as condições degradantes dos trabalhadores dos territórios negros criados durante o apartheid, os chamados bantustões (Os trabalhadores itinerantes de KwaNdebele, década de 1980), Goldblatt evitava generalizações ou conclusões fáceis. Sabia que o racismo e a segregação estavam em todos os lugares, e que era essa a infâmia da ideologia do apartheid. Por isso, só se interessava por fotografar aquilo em que via beleza e lirismo, por mais duro que fosse.
Ele não fotografou fatos marcantes, como as greves de Durban, em 1973, ou o levante de Soweto, em 16 de junho de 1976. Tampouco permitiu que suas imagens fossem utilizadas por ativistas ou como propaganda partidária do Congresso Nacional Africano, o partido de Nelson Mandela. Embora compartilhasse das ideias do cna, achava que seu trabalho só faria sentido se visto por si mesmo.
Não posso dizer que sua morte tenha sido uma surpresa. Mas senti uma profunda frustração por não termos feito juntos aquilo que planejamos, além do sentimento pela perda do grande artista. Dias depois, uma amiga em comum me mandou o link para o documentário recentemente finalizado sobre ele (Goldblatt: um documentário, 2017). Na primeira cena do filme, o vemos às margens de uma estrada, carregando seu equipamento e se preparando para fazer a próxima foto. Tenho a impressão de que ele gostaria de ser lembrado dessa maneira. ///
David Goldblatt (1930-2018) nasceu na cidade de Randfontein, na África do Sul. Recebeu os prêmios Hasselblad (2006), Henri Cartier-Bresson (2009) e ICP Infinity (2013), entre outros.
Rodrigo Moura é curador-adjunto de arte brasileira do Museu de Arte de São Paulo.
Tags: Apartheid, fotografia africana, fotografia contemporânea, revista ZUM