O cotidiano do morro
Publicado em: 20 de novembro de 2019Aos 64 anos, Afonso Adriano Pimenta já fez de tudo um pouco: trabalhou como gari, pedreiro, metalúrgico, porteiro de boate e segurança de prostíbulo, entre outros ofícios. Desde o início da década de 1980, é fotógrafo e registra por encomenda festas e flagrantes do cotidiano. A maioria das cenas é protagonizada por moradores do Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do país, em Belo Horizonte. Formado da junção de várias vilas, o Aglomerado da Serra tem cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados e 50 mil moradores, segundo a prefeitura da cidade.
Afonso estima ter capturado essa história invisível em mais de 300 mil negativos, com registros que vão de aniversário infantil a baile de black music. Uma parte do material se perdeu com o tempo. Outra, por volta de 80 mil imagens, ficou guardada em seu arquivo doméstico até 2015, quando passou a integrar o projeto Retratistas do morro, do artista visual e pesquisador mineiro Guilherme Cunha. Graças ao projeto, a produção do fotógrafo começou a ser vista em exposições na capital mineira e no interior de São Paulo.
Primeiros contatos
Em 1963, Afonso trocou a diminuta São Pedro do Suaçuí, no interior mineiro, pela cidade grande. Os pais, agricultores, criavam, além dos 16 filhos biológicos, outras quatro crianças órfãs. “Como tinha muita gente em casa, minha mãe pediu para a minha madrinha, que morava no Aglomerado da Serra, ficar comigo.” Ao desembarcar sozinho na rodoviária de Belo Horizonte, aos nove anos de idade, ficou deslumbrado com as luzes e com o movimento.
Na casa da madrinha, porém, foi alojado no quartinho dos fundos e passou a fazer trabalhos mais pesados que na roça. Uma das tarefas era preparar esterco para vender nos bairros abonados da vizinhança. Na falta de água encanada, mazela enfrentada por boa parte dos moradores locais, ele rumava para um poço situado a três quilômetros da residência. De porte mirrado, o garoto não conseguia levar o latão cheio na cabeça e, por isso, tinha de fazer o trajeto várias vezes ao dia.
Afonso experimentou os primeiros contatos com o universo fotográfico na adolescência. Um dos colegas do curso noturno na escola pública que frequentava era dono de uma Kodak Instamatic 11. A câmera, modesta, despertava cobiça numa época em que a fotografia era artigo de luxo. “Quem tinha máquina era rei”, resume Afonso. “Um dia esse cara abriu a câmera, mostrou como o diafragma funcionava, e achei aquilo incrível.”
Afonso nunca conseguiu comprar a máquina do colega, como almejava. Naquele momento, sobrevivia com a venda de papelão para reciclagem. Um pouco mais tarde, em 1969, começaria a trabalhar como capinador de rua para a prefeitura. Fora retratado pela primeira vez aos 14 anos, quando preparava os documentos para concorrer ao emprego.
Em 1971, após ter sido promovido a gari, ficou amigo de dona Inês, uma vizinha no Aglomerado. “Ela foi minha segunda mãe: me dava carinho, comida e roupa lavada.” Preocupada com as más companhias que rondavam o rapaz, a matriarca tratou de indicá-lo para ser assistente do filho, o fotógrafo João Mendes, até hoje dono do estúdio Foto Mendes, situado no Serra, bairro de classe média que empresta o nome ao Aglomerado.
Idas e vindas
Os olhos de Afonso brilharam quando ouviu a palavra “fotógrafo”. Foi então que começou a revelar 3 × 4, especialidade do pequeno comércio fotográfico de João. O rapaz não tinha nenhuma experiência com fotografia − “só muita curiosidade” −, mas interessou-se rapidamente por câmeras e pelo processo químico da revelação: “Os traços iam surgindo aos poucos, o primeiro a despontar era o nariz”.
Quando o movimento da loja diminuía, Afonso, que se dividia entre o emprego de gari e o bico como aprendiz de fotografia, aproveitava para estudar as câmeras. De tanto investigá-las, acabou escalado pelo patrão para clicar sozinho um casamento nos arredores de Belo Horizonte. Com uma 35mm pendurada no pescoço, sentiu-se uma celebridade.
Afonso colaborava com João quando a inquietude e o desejo de melhorar de vida o levaram para a estrada, na companhia de um irmão. Em 1976, passou a trabalhar em obras Brasil afora – participou, entre outras, da construção das usinas de Itaipu, no Paraná, e de Angra 1, no litoral fluminense. Como funcionário temporário de grandes empreiteiras, fez escala internacional no Iraque, em Angola e no Quênia. Nas horas vagas, redigia cartas para os colegas analfabetos enviarem às famílias, clicava os operários com a própria máquina ou se oferecia para fazer fotos com a câmera alheia.
Outro motivo contribuía para as viagens frequentes. Praticante de artes marciais desde a adolescência, Afonso havia entrado no circuito de competições de caratê shotokan. Como lutador, visitou quase 20 países, entre eles Estados Unidos, México e Irlanda, onde chegou a morar por alguns meses. O porte atlético e o cabelo black power lhe renderam a alcunha de Leão.
Nos bailes da vida
Quando cansava da estrada, Afonso voltava para Belo Horizonte e reatava a parceria com João. Ao todo, ficaram juntos por mais de uma década, de 1971 a 1982. Além das fotos 3 × 4, João também fotografava os moradores do Aglomerado em formaturas, batizados e casamentos. As cenas externas eram um bálsamo para Afonso, que com o tempo passou a achar a rotina de estúdio burocrática.
No início dos anos 1980, João montou uma filial do Foto Mendes no Aglomerado da Serra e entregou o ponto ao assistente. Foi quando Misael Avelino dos Santos, um dos criadores da Rádio Favela − emissora comunitária conhecida como “A voz do morro”, devido ao trabalho em prol dos moradores −, passou pela loja em busca de alguém disposto a registrar o aniversário de um dos bailes black que ele promovia na cidade.
Afonso aceitou a encomenda sem saber que selava seu destino com a fotografia. Os bailes black, que haviam despontado na Belo Horizonte do início dos anos 1970, atraíam uma multidão de jovens provenientes da periferia da cidade. “Não havia muita coisa para a gente fazer, aqueles bailes eram a nossa diversão”, sintetiza o artista plástico e artesão Rení Cândido da Silva, de 52 anos, morador do Aglomerado.
No começo daquela década, Afonso passou a bater ponto nos bailes. Um deles acontecia na rua, na entrada do Aglomerado. Outro, fora do morro, no Diretório Central dos Estudantes da PUC de Minas Gerais, plantado entre Serra e Funcionários, bairros de classe média da zona sul. Os militantes do movimento estudantil da universidade abriam as portas do amplo salão para receber a freguesia, em geral pobre e negra. Afonso também frequentava o baile do Italiana, na região central da cidade. Muitos casais se formavam na hora do rosto colado, já no final da noite. “De alguns, fotografei até o casamento”, conta.
Apesar do sucesso, havia uma acirrada repressão policial a essas festas, celebradas ao som de ícones das pistas, como James Brown e KC & The Sunshine Band. O Brasil vivia sob o jugo da ditadura militar, e a reunião de muita gente era vista pelo regime como problema. “Havia também o racismo, que até hoje associa o negro à vagabundagem”, acrescenta Misael. Como acontecia em outras cidades do país, não raro a polícia invadia os salões de baile e prendia os fre- quentadores. Para Misael, a truculência foi responsável pelo esvaziamento das festas, que passaram a minguar no final dos anos 1980.
Entre 1984 e 1989, Afonso cumpria uma rotina: fotografava o movimento dos bailes, que costumavam ocorrer aos sábados e domingos, revelava os filmes e, no fim de semana seguinte, oferecia os retratos 9 × 12 cm aos frequentadores. Em pouco tempo, agregou outros bailes ao currículo. Em cinco anos, estima ter feito mais de 100 mil imagens, ainda que muitas tenham se perdido. Foi assim que passou a viver de fotografia e a documentar uma história: “A nossa, a do favelado. E com muita dignidade”, elogia Misael.
História, aliás, pouco documentada, e não apenas pela fotografia, como lembra o cineasta e pesquisador mineiro Joel Zito Araújo: “Ainda hoje, essa gente fotografada por Afonso não faz parte do país ideal almejado por parte da nossa elite. Ao contrário, simboliza o zé-povinho, que deveria desaparecer do mapa”.
Radicado no Rio de Janeiro, Joel Zito passou o início da vida adulta em Belo Horizonte, entre 1975 e 1984. “O que percebo nas imagens é o orgulho negro de um segmento de baixa renda que teve consciência da própria negritude por meio da cultura de massa, como é o caso da música de Michael Jackson ou dos filmes e séries de tv inspirados pelo blaxploitation [movimento cinematográfico surgido nos Estados Unidos na década de 1970, com diretores e atores negros].”
Enquadramento perfeito
Os bailes black serviram de abre-alas para que Afonso começasse a fotografar momentos domésticos e familiares dos frequentadores. Animado com a repercussão das fotos, partiu para o corpo a corpo: “É quando você vai ao cliente, não espera que ele venha até você”. Nas décadas de 1980 e 1990, costumava desfilar pelo Aglomerado da Serra em dias de semana e também aos sábados na companhia da máquina de 35mm. “Era um acontecimento”, lembra a cuidadora de idosos Marcilene da Conceição Dionísio do Amaral, de 55 anos. “Todo mundo ficava arrumado em casa, esperando ele passar.”
Tudo servia de pretexto para convocar o fotógrafo: a compra de uma roupa, o nascimento de um filho, o desejo de mostrar aos parentes como andava a vida na cidade grande. Com a perspicácia de um morador local, Afonso fazia o enquadramento perfeito. Não raro os retratados dividiam a cena com bens de consumo, como televisão, aparelho de som ou até ventilador. “Todo mundo queria mostrar as conquistas materiais. Eram um troféu.”
Com uma média de 30 atendimentos diários, Afonso não se dobrava diante de obstáculos. Quando a casa era pequena, fazia a foto no quintal ou na laje, de onde aproveitava a vista da cidade. Valiam ainda os becos, como o que usou no retrato da noiva, cuja aparição desperta a curiosidade da vizinhança. Ao saber da ausência de fotógrafo na cerimônia de casamento, Afonso insistiu para que ela entrasse novamente no vestido branco, a fim de registrá-la, mesmo com o atraso de dias.
Os botequins também emolduram algumas das cenas capturadas. “Às vezes eu estava passando na rua e alguém me chamava para fotografar uma partida de sinuca”, recorda. Nunca recusou trabalho, nem mesmo para o pessoal do “movimento” − como o tráfico de drogas é conhecido. “Fotografei de tudo, até defunto em velório, mas nunca quis fazer foto de mulher pelada.”
No início do corpo a corpo, Afonso concorria com cerca de 15 fotógrafos no Aglomerado, mas graças à criatividade conseguiu enfrentar os rivais. Na hora de registrar noivos, por exemplo, ocultava uma lâmpada no arranjo floral. Também usava filtros profissionais, como o cross screen, e outros que improvisava com tubos de pvc e vidro. Com essa parafernália, simulava efeitos de luz nas imagens.
Autodidata, Afonso cita como principal influência o amigo João Mendes, que lhe ensinou a técnica e lições de comportamento – uma delas é a de que fotógrafo nunca deve se misturar aos convidados de uma festa. Outra referência é Câncio de Oliveira, cujas cenas da Belo Horizonte da década de 1940 ilustraram uma série de cartões-postais, coqueluche em livrarias e papelarias da época.
Ausência de imagem
Ao olhar para o próprio passado, a comerciante Renata Gonçalves dos Santos constata que Afonso registrou boa parte de seus 35 anos de vida. Da primeira foto, quando tinha um ano, à formatura no Ensino Médio, passando por aniversários de infância, primeira eucaristia e crisma, está tudo sacramentado em álbuns. “Quando eu casar, quero o Afonso lá para fotografar a cerimônia.”
As imagens de Afonso também povoam a memória da manicure Daiane Cristina Oliveira, de 30 anos. Parte das raras fotos de infância que ela guarda levam a assinatura dele. “Minha mãe era faxineira e não tinha dinheiro para comprar uma câmera. Às vezes a gente não tinha dinheiro nem para comprar a foto do Afonso.” Até hoje ela se ressente de não ter imagens dos primeiros meses de vida.
Em “A imagem que falta”, a cineasta fluminense Yasmin Thayná escreve sobre a escassez de registros fotográficos da população negra no Brasil. Muitos de seus amigos, afrodescendentes como ela, não têm fotos de quando eram crianças. “Em geral, a primeira imagem deles é aquela feita para um documento, como a carteira de estudante ou de identidade”, observa. “É uma imagem oficial, não afetiva.” Para Thayná, a ausência de imagens escancara a oceânica desigualdade social. “Quem podia se registrar no passado, e estamos falando até a década de 1990, era gente com certo poder aquisitivo para comprar câmera e filme, além de bancar a revelação.”
Ainda na luta
Até hoje Afonso não descansa. Estima que o celular tenha abocanhado cerca de 30% da clientela, mas, ainda assim, todo sábado sai de casa, no bairro Céu Azul, na região da Pampulha. O destino é o Aglomerado da Serra, seu QG do outro lado da cidade, onde ainda fotografa festas de debutantes e casamentos. Quando a agenda aperta, costuma levar o filho Keny, de 25 anos, o único dos 14 rebentos, frutos de nove relacionamentos, que segue os passos do pai.
Mesmo aposentado, ainda precisa correr atrás de trabalho para ajudar Keny e a filha caçula, Kait, de 23 anos, que estão na faculdade. Para completar o orçamento, também se vira como professor de artes marciais e massagista, além de aceitar encomendas de retratos pintados. A exemplo de outros tantos brasileiros, continua a se desdobrar em vários ofícios. Mas tem na fotografia sua profissão de fé. ///
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Jorge Bodanzky entrevista o fotógrafo Afonso Pimenta
Retratistas do morro: preservação da memória visual do Aglomerado da Serra, coordenado por Guilherme Cunha, ver www.facebook.com/retratistasdomorro/.
Tags: Anos 80, Fotografia vernacular, Retratos