Verdadeiro ou falso
Publicado em: 22 de maio de 2017“Por esta razão nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar da verdade.” A resposta de Jesus Cristo a Pôncio Pilatos parece ter sido cunhada para os fotógrafos: pois cada imagem se apresenta como o registro de um fato real, e a fotografia é, à primeira vista, uma arte imune à falsidade. “A foto é literalmente uma emanação do referente”, escreveu o filósofo francês Roland Barthes em A câmara clara (1980). A imagem é uma expressão do ser, pois é impossível fotografar o que não existe: a fotografia comprovaria com exatidão a argumentação do filósofo pré-socrático Parmênides (c. 530-460 a.C.) sobre a impossibilidade de enunciar o não ser.
A veracidade das fotografias é um dogma de fé. Muitas pessoas acreditam que as imagens fotográficas não mentem porque são captadas por meio de instrumentos mecânicos e digitais, em vez de serem desenhadas, pintadas ou esculpidas. Embora sempre resultem de ações humanas, as fotografias são vistas como projeções fiéis e imparciais dos acontecimentos, tanto que são usadas como provas em processos judiciais. Assim como o fetichismo da mercadoria, descrito pelo filósofo alemão Karl Marx em O capital (1867), o fetichismo da fotografia também se origina do apagamento do papel do sujeito na produção do objeto. É como se as fotos brotassem do relacionamento entre duas coisas: a lente da câmera e a cena. Para o senso comum, boas máquinas produzem boas fotos, independentemente da intervenção do homem.
Essa confiança irrefletida na objetividade das fotos merece um exame mais atento. É realmente impossível produzir imagens falsas? A tese de Parmênides, por exemplo, enfrenta objeções desde a Antiguidade. O filósofo grego Platão (c. 427-c. 347 a.C.) demonstrou no diálogo Sofista que o discurso falso consiste em afirmar algo que não corresponde à realidade. Coube a Aristóteles (384-322 a.C.), aluno da Academia de Platão, formular, em sua Metafísica, uma definição mais precisa: dizer do que é, que é, e do que não é, que não é, é o verdadeiro; dizer do que não é, que é, e do que é, que não é, é o falso.
O problema consiste em saber se, assim como uma expressão verbal, uma imagem também é capaz de veicular o verdadeiro e o falso. Platão não tinha nenhuma dúvida a esse respeito, pois distinguia dois tipos de reprodução visual: as cópias e os simulacros. As primeiras eram réplicas dos objetos; as últimas falseavam os entes representados. A crítica de Platão, no entanto, mirava as artes plásticas, especialmente a pintura. Existiriam simulacros na fotografia?
Sim, as fotos também podem iludir: como são imagens das coisas, e não as próprias coisas, as diferenças entre os signos e seus objetos podem induzir os homens ao erro. Porém, a primeira forma de distorção, e talvez a mais conhecida de todas, não tem origem na representação em si mesma, e sim na moldura verbal que a cerca: “O significado de uma imagem varia consoante o que se vê imediatamente ao lado ou imediatamente a seguir”, diz o crítico inglês John Berger no livro Modos de ver (1972). A fotografia, amiúde, é utilizada para comprovar a veracidade da frase que a acompanha, mesmo que a cena tenha pouca ou nenhuma relação com aquilo que é dito. Em sua Pequena história da fotografia (1931), Walter Benjamin ressalta a importância crescente da legenda, “introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa”. E pergunta: “Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?”.
Essa questão é discutida pelo historiador da arte austríaco Ernst Gombrich em Arte e ilusão (1960). Segundo ele, “os termos ‘verdadeiro’ e ‘falso’ aplicam-se exclusivamente a declarações, proposições. E qualquer que seja a linguagem dos críticos, um quadro nunca é uma declaração nesse sentido do termo. Ele não pode ser verdadeiro ou falso, da mesma maneira que uma declaração não pode ser verde ou azul. Muita confusão tem sido causada em estética pelo menosprezo desse simples fato. A confusão é compreensível por- que na nossa cultura os quadros têm, habitualmente, rótulos ou títulos, e estes podem ser entendidos como declarações abreviadas. Quando alguém diz ‘a câmara não mente’, a confusão é manifesta. Em tempo de guerra, […] é a legenda que determina a verdade da pintura”.
Discrepância entre imagem e legenda
Um exemplo de como as legendas determinam a leitura das imagens pode ser encontrado em um episódio de 2016, quando a edição de 6 de abril da revista IstoÉ publicou uma foto da então presidente Dilma Rousseff com o título “As explosões nervosas da presidente”. O primeiro parágrafo da reportagem dizia: “Os últimos dias no Planalto têm sido marcados por momentos de extrema tensão e absoluta desordem com uma presidente da República dominada por sucessivas explosões nervosas, quando, além de destempero, exibe total desconexão com a realidade do País”. A foto escolhida para estampar a capa, contudo, não era recente, e muito menos evidência de “destempero”: foi tirada em 27 de fevereiro de 2013 por Gustavo Miranda, da Agência O Globo, enquanto Rousseff discursava na 40a reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social no Palácio do Planalto (um vídeo com a íntegra do discurso, publicado pelo Palácio do Planalto, está disponível no YouTube).
Nenhum dos grandes jornais relatou a ocorrência de uma “explosão nervosa” da presidente naquela solenidade. O Globo disse que Rousseff discursou “em tom firme”, enquanto O Estado de S. Paulo classificou o pronunciamento como “contundente”. A Folha de S.Paulo escreveu apenas que, em sua fala, Rousseff defendeu os princípios de sua política econômica e rebateu as críticas da oposição. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que mais tarde apoiaria o impeachment, destacou o fato de Dilma Rousseff ter sido elogiada no discurso e publicou uma foto da presidente sorrindo. A discrepância entre a imagem e o título da IstoÉ se torna ainda mais flagrante quando se consulta a reportagem que a revista IstoÉ Dinheiro, pertencente ao mesmo grupo editorial, publicou no dia do evento. Sob o título “Dilma desafia FHC e volta a trocar farpas com tucanos”, o texto afirmava que “Dilma acusou a oposição de provocar ‘instabilidade’ ao alardear a ameaça de racionamento de energia no país”, ameaça que não se concretizou, e “desafiou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao dizer que foi o governo do PT que criou o cadastro para as famílias receberem benefícios sociais”. Ainda de acordo com a IstoÉ Dinheiro, Rousseff recorreu aos números de sua administração para se contrapor às gestões do PSDB: “Quando no Brasil, no passado, a gente teria uma relação dívida-PIB de 35%? Quando?” Em nenhum momento a revista apontou indício de destempero ou de descontrole emocional.
Pseudorrealismo
Uma descrição incorreta da imagem é a técnica mais simples para desvirtuar o significado de uma foto, mas está longe de ser a única, como explica a crítica e curadora Hilary Roberts no ensaio Uma batalha de imagens: fato e ficção na Primeira Guerra Mundial, publicado em ZUM #7 (outubro de 2014). Ao contrário do que sustentava Gombrich, as próprias imagens podem ser enganosas, se tomarmos por base a definição aristotélica de que o falso provém da não correspondência entre o discurso e a realidade. E, como a fotografia geralmente pressupõe um objeto (a cena), um meio (a máquina) e um sujeito (o fotógrafo), o descompasso entre o signo e a sua referência pode ter origem em cada um desses três momentos.
O primeiro momento é o objeto. Nada assegura que a cena fotografada tenha realmente existido, pois há uma grande diferença entre um evento real e um evento ficcional. Unicórnios só existem no plano da imaginação. Apesar disso, todos já viram imagens de unicórnios. Os publicitários produzem, a cada dia, uma infinidade de anúncios com pessoas felizes por utilizar este ou aquele produto. É evidente que todas essas fotos são apenas peças ficcionais. Elas parecem ter sido extraídas da vida real, mas na verdade foram fabricadas artificialmente para persuadir os consumidores a adquirir determinada mercadoria. Os personagens dessas imagens são atores: eles foram maquiados, penteados e vestidos para desempenhar um papel. Tudo o que não se ajustava à qualidade que se queria atribuir ao produto foi eliminado da encenação. O filósofo alemão Wolfgang Haug, em Crítica da estética da mercadoria (1971), diz que a sociedade capitalista prioriza a aparência de um bem, e não a sua essência: o que apenas é, mas não parece ser, não é vendável. Só o que parece ser é vendável, porque os consumidores são atraídos pela embalagem. Por isso, exige-se da fotografia publicitária que registre a aparência das coisas, e não o que elas realmente são.
Seria ingênuo pensar que esse tipo de falsificação se restringe à propaganda nos meios de comunicação. Existem gêneros fotográficos – como os nus e as fotos de moda – nos quais a encenação é a própria essência do negócio. Mas seu alcance vai além: o fotojornalismo também é vulnerável a esse pseudorrealismo. Um exemplo é a imagem que mostra o “suicídio” de Vladimir Herzog, em 1975. Então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, Herzog foi convocado para prestar depoimento no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), principal órgão de repressão da ditadura militar, onde foi torturado até a morte. O Exército, contudo, divulgou a versão de que ele cometera suicídio.
A foto acima foi produzida em 25 de outubro de 1975 por Silvaldo Leung Vieira, que na época trabalhava para o Instituto de Criminalística de São Paulo. Em entrevista a Lucas Ferraz, da Folha de S.Paulo, Vieira disse: “Não me deixaram circular livremente pela sala, como todo fotógrafo faz quando vai documentar uma morte. Não tive liberdade. Fiz aquela foto praticamente da porta. Não fiquei com nada, câmera, negativo ou qualquer registro […]. Tudo foi manipulado, e infelizmente eu acabei fazendo parte dessa manipulação. Depois me dei conta de que havia me metido em uma roubada”. Em 1979, Silvaldo começou a recusar esses “encargos” e foi afastado. Deixou o país e se exilou nos Estados Unidos. Em 1978, a Justiça Federal responsabilizou a União pela morte de Herzog, obrigando o governo a indenizar a família, e em 2013 sua certidão de óbito passou a registrar que ele morrera em razão de “lesões e maus-tratos” sofridos nas dependências do 2o Exército.
A encenação fotográfica frequentemente passa despercebida porque é muito comum. Os profissionais muitas vezes pedem que os políticos repitam um aperto de mãos, sorriam, mudem de posição, desatem mais uma vez a faixa de inauguração de uma obra. Em todos esses casos, a imagem não capta um momento factual: a foto é falsa porque é uma cena de teatro, e não um decalque da vida cotidiana. Como diz o filósofo norte-americano John Searle em Expressão e significado (1979), os atores realizam atos reais, mas a cena inteira é um simulacro, mesmo que apresente coerência interna: seu significado é fingido.
Essas representações ficcionais não povoam apenas a internet, a televisão e os veículos impressos: elas impregnam a nossa existência diária. No capitalismo, as próprias pessoas se converteram em mercadoria e precisam vender a si mesmas no mercado. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), afirma que, após o surgimento da propriedade privada, “foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes”. Cada indivíduo é induzido a ostentar uma máscara que não corresponde ao seu ser. Quando uma máquina fotográfica registra essas fachadas pessoais postadas na internet, ela não capta o que existe, mas sim aquilo que os indivíduos procuram mostrar para vender sua força de trabalho. Todos precisam ajustar sua vida às imagens que desejam exibir: as fotos que tiram de si mesmos não retratam o que são.
As encenações, porém, não são as únicas responsáveis pelas distorções das imagens: o falso também pode ter origem nos próprios instrumentos de registro. Como assinala Hilary Roberts, as manipulações de fotos nos laboratórios já tinham se disseminado antes mesmo da Primeira Guerra Mundial: “As técnicas de pós-produção, realizadas no laboratório ou no estúdio, incluíam cortar radicalmente uma fotografia para alterar seu significado, pintá-la ou retocá-la, colorir ou sobrepor negativos, além da prática da fotomontagem”. Na era digital, a manipulação das imagens se tornou muito mais fácil: é possível acrescentar ou suprimir personagens ou objetos, alterar as cores ou a luminosidade das cenas, mudar a expressão facial ou os corpos das pessoas.
Subtração de elementos
Fotos podem ser falsificadas antes do disparo (por meio da encenação) e depois do disparo (por meio da edição). Mas vamos supor que a fotografia não sofra nenhuma manipulação, nem antes nem depois de ter sido tirada. Nesse caso ela será sempre verdadeira? Também não.
Olhe com atenção as fotos acima. Ela mostra Getúlio Vargas e Luís Carlos Prestes em um comício no vale do Anhangabaú, em São Paulo. Os dois apoiavam o mesmo candidato, Cirilo Júnior. No dia 5 de novembro de 1947, a foto foi publicada pela Folha da Manhã com um corte. A imagem sugere que Prestes segurava o microfone para Getúlio. A foto foi muito explorada pelos conservadores, pois dava a impressão de que o líder comunista estava bajulando o homem que entregara sua mulher, Olga Benário Prestes, ao regime nazista. Segundo a historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Luís Carlos Prestes, os dois estavam próximos no palanque, mas nem chegaram a se falar. Depois dessa imagem, Prestes passou muito tempo sem deixar que lhe tirassem um retrato: “Há dez anos não tiro nenhuma fotografia. Uma das últimas que tirei foi em 1947, exatamente aquela do comício do Anhangabaú ao lado de Getúlio Vargas, no palanque”. O corte foi feito pelo editor do jornal, mas poderia ter sido produzido pelo próprio fotógrafo.
Assim como as imagens podem ser desvirtuadas pela encenação e pela edição, elas também podem ser afetadas pela subtração de elementos essenciais à compreensão da cena. Mesmo uma foto sem qualquer vestígio de manipulação pode ter sido falseada pela decisão do fotógrafo de remover do quadro uma informação crucial. Nesse caso, a falsidade se origina no próprio olhar: as convicções e os preconceitos pessoais operam como filtros que suprimem o que não deve ser visto (a contrapartida dessa “subtração” efetuada pela percepção é a “adição” promovida pela memória, que muitas vezes cria lembranças falsas sobre fatos que nunca existiram). “Máquinas fotográficas são as armas mais poderosas do mundo. As pessoas acreditam nelas, mas as fotografias mentem, mesmo quando não são manipuladas. Elas são apenas meias-verdades”, disse o fotógrafo norte-americano Eddie Adams. Antes dele, o fotógrafo norte-americano Lewis Hine já tinha observado que “os mentirosos podem fotografar”. Ora, se as pessoas podem mentir com palavras, por que não poderiam mentir por meio de imagens?
Um recorte da realidade
Para entender melhor esse gênero de fotos, convém recorrer à distinção entre verdade e retidão traçada pelo filósofo cristão Santo Anselmo (c. 1033-1109). Segundo ele, a coerência interna e a correção gramatical de um enunciado verbal não asseguram que ele seja verdadeiro: uma proposição coerente e bem construída pode ser falsa. Ao aplicar essa distinção à fotografia, podemos diferenciar uma foto correta de uma foto verdadeira. Uma imagem é correta quando não foi manipulada nem encenada, porém isso não é garantia de que ela seja verdadeira.
De onde provém a falsidade? Ela se origina, a princípio, da diferença essencial entre um signo e seu objeto. Como explica o filósofo Santo Agostinho (354-430), toda imagem é algo distinto de sua referência: “Como ela poderia ser uma verdadeira pintura se não fosse um falso cavalo?”. Essa diferença ontológica entre a foto e o real é responsável pela “falsidade” primária dessas réplicas: mesmo que a réplica pudesse ser considerada uma emanação do objeto, ela representaria um fato que já deixou de existir. O que uma imagem mostra só aconteceu uma vez, e nunca mais se repetirá nas mesmas condições. O filósofo pré-socrático Heráclito (c. 540-c. 480 a.C.) demonstrou que ninguém entra duas vezes no mesmo rio: a máquina registra uma cena real, mas o signo resultante se distancia da realidade assim que ele é criado.
A fotografia capta o “aqui” e o “agora” e, por isso, está necessariamente atada ao passado. Imaginemos, por exemplo, uma foto enunciando que “agora é dia”. Diz o filósofo alemão G. W. Friedrich Hegel em sua Fenomenologia do espírito (1807): “Anotemos então essa verdade, pois uma verdade nada perde por ser anotada”. Ora, basta esperar algumas horas para verificar que a foto se tornou falsa, pois “agora é noite”. O mesmo acontece com o “aqui”: neste momento, “aqui é a minha casa”. Após certo tempo, o aqui se torna a rua, a escola, o escritório. Se as fotos só registram o aqui e o agora, elas estão condenadas a fixar um recorte espacial e temporal da realidade que, a rigor, não corresponde mais ao presente: “Quando a fotografia envelhece, deixa de ser possível a referência imediata ao original […]. A cada ano diminui o seu valor como signo”, observa o jornalista e escritor alemão Siegfried Kracauer, no ensaio “A fotografia” (1927).
Uma fotografia jamais é idêntica à realidade, mas isso não resolve a questão da diferença entre verdade e encenação. O mundo está em constante transformação, porém, esse destino não impede que as imagens registrem traços essenciais das pessoas e das coisas que existiram ou que ainda existem. O problema não consiste em determinar se o objeto fotografado permanece ou já desapareceu, mas em averiguar se a imagem conseguiu apreender o que ele realmente era ou se apenas captou um aspecto acidental ou secundário. Descobrir se uma foto registrou a essência do real exige, contudo, um esclarecimento conceitual: o que é a verdade?
“O verdadeiro é o todo”, ensina Hegel. A mesma posição é sustentada por Santo Agostinho: “Para julgar um edifício, não devemos nos limitar a considerar somente um ângulo. Nem para julgar a beleza de um homem, apenas a sua cabeleira. Ou a respeito de um bom orador, unicamente, o movimento de suas mãos. […] É preciso considerá-los na sua totalidade se quisermos julgá-los corretamente”. A dificuldade reside no fato de que o todo não se mostra diretamente: “As árvores não permitem ver o bosque, e graças a isto é que o bosque existe. A missão das árvores patentes é fazer latentes as demais, e só quando nos damos perfeita conta de que a paisagem visível está ocultando outras paisagens invisíveis é que nos sentimos dentro de um bosque […]. O bosque é o latente enquanto tal”, afirma o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, nas Meditações do Quixote (1914).
A cada momento, só temos acesso a um fragmento do real. Todo fotógrafo toma partido diante do mundo e encara a realidade de determinado ponto de vista: “Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente”, diz o teórico da literatura russo Mikhail Bakhtin em Estética da criação verbal (1979), “nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver”. Em relação ao outro, eu disponho sempre de um excedente e de uma carência perceptiva: vejo coisas que ele não vê, e vice-versa. Para saber o que o outro efetivamente vê, eu preciso me situar na posição que ele ocupa no mundo. Como escreve o filósofo florentino Nicolau Maquiavel em O príncipe (1532), “os que desenham os contornos dos países se colocam na planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar a das planícies ascendem aos montes.”
Concretamente, todos os homens sempre deparam com pedaços do real. Mas não veem esses fragmentos do mesmo modo: alguns indivíduos só percebem as partes, enquanto outros apreendem o todo que lhes dá sentido. Os primeiros se detêm na superfície das coisas, mas os últimos conseguem atravessar a casca sensível e captar a estrutura. No primeiro caso, temos uma visão analítica, focada nos detalhes; no segundo, a percepção é sintética, pois prioriza a totalidade. Essas perspectivas distintas abrem caminho para a produção de signos diferentes: quando se consegue apreender o todo, é possível encontrar uma parte capaz de expressá-lo no plano sensível.
De fato, as partes não se equivalem: algumas conseguem desvelar o todo, mas outras não são capazes. Por isso, uma fotografia é verdadeira na medida em que registre um momento essencial da realidade, e falsa na medida em que capte um detalhe que distorça e contradiga essa essência. Como todo ente possui história e fronteira, uma imagem verdadeira deve ser um recorte capaz de condensar o devir e o lugar desse ente no mundo. Nisso consiste o instante decisivo do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson. Se registrarmos uma ação por meio de um conjunto de imagens, a maioria delas provavelmente não conseguirá resumir a sequência temporal. Ao analisar as fotos produzidas pelo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), o psicólogo e teórico da arte alemão Rudolf Arnheim observa em Arte e percepção visual (1954) que, na série que mostra “um ferreiro em ação, o impacto total do golpe aparece apenas naquelas imagens em que o martelo é erguido ao máximo.”
Deslocamento temporal
Vimos anteriormente que é possível falsear uma imagem subtraindo da cena um personagem ou um elemento essencial à compreensão do evento, como aconteceu na edição da imagem do comício que reuniu Prestes e Vargas. Mas a subtração desse elemento também pode ocorrer no plano temporal. Veja a foto abaixo. Ela mostra o jogador Rivellino concedendo uma entrevista em 1972.
Como futebolista, Rivellino nunca atuou pelo Palmeiras. A foto foi feita após um jogo, quando os atletas trocam suas camisas com os adversários. Mas, para quem desconhece sua carreira, a imagem dá a impressão de que Rivellino jogava pelo Palmeiras, e não pelo Corinthians. E, à medida que o tempo passa, o número de pessoas que podem ser iludidas pela imagem tende a aumentar.
Exemplos semelhantes poderiam ser encontrados em outros esportes. Na luta entre os boxeadores norte-americanos Muhammad Ali e George Foreman em 1974, no Zaire (atual República Democrática do Congo), não é difícil encontrar imagens de Foreman socando o oponente. Mas foi Foreman quem perdeu o combate. As distorções também podem ser encontradas no jornalismo político. Imaginemos um protesto pacífico nas ruas de uma cidade. De repente, os policiais investem contra a multidão e começam a agredir os manifestantes. Um adolescente tenta se defender, e o fotógrafo de um grande jornal registra o momento preciso em que ele ergue o braço contra um policial. A imagem é publicada acompanhada da legenda: “Vândalo agride policial”.
Como deveríamos classificar essa foto? Não há dúvida de que o jovem levantou o braço contra seu agressor, mas a imagem captou apenas um recorte inessencial da sequência de acontecimentos: ela é uma parte que não revela o todo, mas distorce completamente o seu sentido. Retomando a distinção de Santo Anselmo, podemos afirmar que a foto é falsa, ainda que não tenha sido manipulada. E, inversamente, podemos observar que existem fotos encenadas e manipuladas que são também verdadeiras, porque a encenação e a manipulação também podem ser empregadas para revelar o todo. Como explica Arnheim, nós nos “perguntamos se a fotografia é característica daquilo que pretende mostrar. Uma fotografia pode ser autêntica, mas falsa; ou verdadeira, embora inautêntica”. Recordem-se as fotomontagens antinazistas do pintor alemão John Heartfield: a manipulação pode ser usada para ressaltar a verdade. É com base nisso que o escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) criticava os fotógrafos. Ele dizia que os homens fotografados ao caminhar sempre pareciam estar de pé, imóveis, apoiados numa perna ou pulando num pé só. Isso não ocorria nas pinturas: “É o artista quem diz a verdade e a fotografia que mente; pois, na realidade, o tempo não para”. Segundo Rodin, o pintor romântico francês Théodore Géricault (1791-1824) era criticado por ter pintado “cavalos galopando em alta velocidade com as patas traseiras e dianteiras simultaneamente levantadas. Dizem que a chapa fotográfica nunca mostra isso”. E acrescentava: “Creio que é Géricault quem tem razão, e não a fotografia, pois os cavalos pintados parecem correr”, enquanto os cavalos fotografados sempre parecem estar parados.
A essência da realidade
Uma evidência de que as montagens por vezes são mais verdadeiras do que as fotos “autênticas” pode ser encontrada no seguinte episódio. Em 14 de março de 1985, na véspera de sua posse como presidente da República, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base de Brasília com fortes dores abdominais e submetido a duas cirurgias. Em 25 de março, para atestar a boa recuperação do presidente, ele e a equipe médica que o atendia tiraram uma foto no hospital. Nela, Tancredo esboça um leve sorriso. O registro foi feito pelo fotógrafo oficial da presidência, Gervásio Baptista, e distribuído pela Empresa Brasileira de Notícias.
No mesmo dia em que a foto foi publicada nos jornais, seu estado de saúde se agravou. Os médicos constataram uma hemorragia no intestino e o transferiram às pressas para São Paulo, onde foi submetido a uma nova cirurgia no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas. No dia seguinte, Millôr Fernandes publicou no Jornal do Brasil uma montagem elaborada a partir da fotografia oficial. Todos os médicos estão de cinza, bastante sorridentes; só Tancredo, de negro, não sorri. O presidente morreu menos de um mês depois. A foto oficial, publicada no dia 26 de março, exalava um otimismo falso; a montagem construída a partir dessa imagem antecipou o desfecho do episódio.
Em resumo: uma foto é verdadeira se condensou um processo histórico, e falsa se fixou apenas uma parte inessencial que distorce o acontecimento. As fotos que omitem os traços essenciais da realidade podem ser classificadas como ideológicas. Segundo a filósofa Marilena Chaui, toda ideologia consiste em um discurso lacunar: “O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, como uma frase na qual houvesse lacunas. A coerência desse discurso (o fato de que se mantenha como uma lógica coerente e que exerça um poder sobre os sujeitos sociais e políticos) não é uma coerência nem um poder obtidos malgrado as lacunas, malgrado os espaços em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrário, é graças aos brancos, graças às lacunas entre suas partes, que esse discurso se apresenta como coerente”, diz, em Cultura e democracia (1981). Se essas lacunas fossem preenchidas, o discurso se autodestruiria: “O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende dizer.”
Uma imagem falsa nasce, portanto, da supressão de um traço essencial da realidade, seja em razão de um recorte espacial, seja de um recorte temporal. Mas nem sempre o engano pressupõe a eliminação completa da parte essencial: basta que a disposição dos elementos da foto produza a impressão de que o essencial é desimportante, e vice-versa. Por exemplo, o general Arthur da Costa e Silva posou para uma foto em frente ao Congresso Nacional após tomar posse como presidente da República em 1967. O único personagem com farda no primeiro plano está no canto esquerdo da imagem. Todos os demais parecem civis. Costa e Silva, contudo, só ascendeu ao poder porque, como ministro da Guerra, era o representante político do estamento militar. O traço essencial foi deslocado para a periferia da cena, e o elemento acidental ocupa o centro.
Tempo e verdade
O verdadeiro é o todo. Mas se o processo histórico que a foto registra ainda não terminou, é impossível definir com precisão se aquela imagem é verdadeira ou falsa. Existe uma imagem feita após a explosão da bomba atômica em Nagasaki que mostra uma jovem mulher sorrindo; ao fundo, vemos a cidade inteiramente devastada. É uma foto intrigante. É compreensível que alguém se alegre por ter sobrevivido a uma catástrofe, mas o mundo circundante não oferece nenhuma base objetiva para qualquer tipo de esperança. Como devemos avaliar essa foto? Existe um fundamento real para otimismo em relação ao destino do nosso mundo? Creio que nesse caso devemos recorrer à resposta que o político grego Sólon (c. 630-c. 560 a.C.) deu ao rei Creso, da Lídia. Segundo Heródoto, após exibir suas imensas riquezas ao legislador de Atenas, o monarca lhe perguntou qual seria “o homem mais feliz que viste até hoje”, na crença de que ele mesmo seria o indicado. Sólon, contudo, só citou indivíduos que tinham encerrado seus dias de forma gloriosa. Enfurecido, Creso o questionou: por acaso ele fazia pouco de sua felicidade? Sólon respondeu que era impossível avaliar alguém antes de sua morte: “Possuís certamente riquezas consideráveis e reinais sobre um grande povo, mas não posso responder à vossa pergunta sem saber se terminareis os vossos dias na abundância”. E concluiu: “Antes do fim, evitai julgar um homem”. O mesmo vale para as fotos. Em alguns casos, talvez seja preciso esperar séculos para saber se são verdadeiras ou falsas. ///
Mauricio Puls (1960), formado em ciências sociais pela USP, é autor dos livros O significado da pintura abstrata (1998) e Arquitetura e filosofia (2006). Colabora no jornal Folha de S. Paulo e na revista Pesquisa Fapesp.
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