Uma por todas: a sul-africana Zanele Muholi e seus retratos de mulheres negras lésbicas e transgêneros
Publicado em: 1 de junho de 2018Ao tratar da relação entre a imagem fotográfica e a política, o senso comum entende que a imagem não é a política, e que sua condição de objeto político é determinada por outros fatores – as formas de circulação; as redes em que a imagem transita; a coisa, a pessoa ou o evento documentado. Isso vale e ao mesmo tempo não vale para os retratos que Zanele Muholi faz de lésbicas – suas amigas, ela diz, quando trata do trabalho.
Vale na medida em que um retrato individual dessa série – isolado, descontextualizado – é apenas um retrato cujos elementos formais podem ser objeto de extensas elucubrações. Apesar da estética despojada, cada imagem carrega uma preparação elaborada. Muholi, que mora em Joanesburgo, percorre uma boa distância até a casa de cada pessoa, e lá, inevitavelmente, passa muito tempo conversando enquanto prepara a foto e escolhe o pano de fundo do retrato.
No entanto, várias circunstâncias depõem contra a leitura isolada das imagens. As fotos de Faces e fases, série que já ultrapassa 250 imagens, raramente são expostas como trabalhos individuais – exceto, claro, quando alguém compra uma das imagens e a pendura no espaço privado de casa. Isso sugere que cada imagem é indissociável da série completa, em andamento há pelo menos uma década. Muholi começou sua carreira na Market Photo Workshop, escola fundada em 1989 pelo fotógrafo David Goldblatt, e em 2009 concluiu o mestrado na Universidade Ryerson, em Toronto. Tendo fundado o Fórum para o Empoderamento das Mulheres, em 2002, e, quatro anos depois, o Inkanyiso, organização dedicada a promover e ensinar arte para homossexuais, ela sempre considerou seu trabalho fotográfico inseparável de seu ativismo.
A natureza seriada desse projeto é fundamental para entender o modus operandi de Muholi e os impulsos que sustentam sua arte. Esse aspecto do trabalho a põe ao lado de artistas como Taryn Simon, Walid Raad e Christian Boltanski, que tomam as coleções, arquivos e séries de fotos similares (pessoais ou alheios) como veículos para refletir sobre como as imagens funcionam sozinhas e coletivamente. Simon, Raad, Boltanski e Muholi dedicam-se não a trabalhos isolados, mas ao impacto cumulativo de um arquivo inteiro de trabalhos parecidos.
No caso de Muholi, o impacto que ela busca está a serviço do trabalho na comunidade lgbti (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais), que envolve várias formas de ativismo social além da fotografia. Um de seus objetivos é chamar a atenção para a distância entre os méritos da Constituição sul-africana, que reconhece o casamento homossexual, e a situação real em muitas comunidades nas quais os homossexuais, principalmente as lésbicas, são alvo de crimes de ódio. Muholi fotografou vários funerais de mulheres mortas em “estupros corretivos”, forma de violência contra lésbicas não rara na África do Sul.
Pode-se também comparar cautelosamente alguns aspectos de seu trabalho a memoriais contemporâneos, como a enorme mostra de fotos de cambojanos executados pelo Khmer Vermelho entre 1975 e 1979, apresentada no Museu do Genocídio Tuol Sleng, em Phnom Penh, ou os retratos que Augustus F. Sherman fez de imigrantes retidos para investigações especiais em Ellis Island, na baía de Nova York entre 1904 e 1920. O impacto estético, moral e emocional desses memoriais se baseia na reunião de imagens, nomes ou objetos num mesmo memento mori de caráter monumental. O projeto de Muholi funciona como um memorial na medida em que cada pessoa fotografada representa aquelas que foram estupradas, assassinadas ou submetidas a outras formas de homofobia. No entanto, seu projeto se diferencia dos outros num aspecto importante: o trabalho de Muholi não se fundamenta na vitimização. Ao contrário, ao concordar em fazer parte, as pessoas fotografadas homenageiam e relembram amigas, irmãs e amantes perdidas, mas não ocupam o quadro da foto na posição de vítima.
A fotografia na África do Sul, por sua relação íntima com a história colonial e do apartheid, é eivada de questões sobre a vitimização, a autonomia e a identidade. A produção de retratos, em particular, está profundamente entrelaçada com o racismo colonial. No trabalho de Muholi, porém, tem-se a clara percepção de que as fotografadas olham de volta, e de que a relação de poder entre fotógrafa e fotografada se dá em pé de igualdade.
A serialidade e a repetição constituem a corajosa resposta da fotógrafa à natureza serial dos crimes contra as pessoas LGBTI. Ela reúne um verdadeiro exército de recusantes, pessoas que, uma após a outra, põem-se frontalmente diante da câmera e devolvem o olhar a quem pretenda lhes negar espaço no mundo, a quem não consiga olhar para elas. Cada retrato vertical em preto e branco contribui para a incansável campanha de recrutamento de Muholi. Cada pessoa fotografada por ela assina embaixo, assume seu lugar ao lado de todos os outros que já se inscreveram num protesto coletivo. A estética geral da série – o que é preciso encarar, enfrentar – é a austeridade: as imagens em conjunto são enxutas, despojadas, disciplinadas.
Parte da força desse projeto decorre do volume de imagens e da cronologia incessante. Muholi tem como objetivo criar uma história que, de outra maneira, não chegaria a existir, mas deseja também criar um testemunho e um memorial. Seu arquivo de rostos é incompleto – sempre há mais pessoas, mais rostos, mais histórias. Esse aspecto do trabalho gera uma espécie de mitologia da identidade queer, que pressiona incessantemente o mainstream para conseguir ingressar na cultura pública. Enquanto a comunidade LGBTI permanecer marginal, fora da sociedade aceita, Muholi continuará a fotografar. Mas, numa espécie de manobra contraintuitiva, ela também quer tornar seus assuntos comuns, retirando-lhes o exotismo. Uma maneira de fazer isso é usar a repetição intransigente e a força dos números.
No entanto, há a singularidade de cada fotografia. É aqui que pretendo mostrar que a política também está na fotografia como um objeto isolado, como um momento capturado. Isso requer uma análise do que se entende por política e exige que o retrato seja resgatado da ideia de que seria remanescente de uma versão burguesa da identidade, como se estabeleceu no século 19. O mais interessante no trabalho de Muholi é questionar a ideia de identidade através do retrato.
O que importa aqui é a individualidade e o pertencimento. Este, por conveniência política e pelo sentimento de solidariedade contra algo; aquela, justamente porque cada pessoa, cada lésbica, apesar da aparência de um pertencimento reconfortante, de ter irmãs ao lado e atrás de si, percebe que, no final das contas, está sozinha. Muholi exige muito da retratada. Ela quer saber: cada uma, individualmente, por conta própria, dá conta?
A cada foto, põe-se em questão a austeridade da série como um todo, pois a pergunta é séria, seriíssima. Há muita coisa em jogo. E a política de cada fotografia está presente nesse gesto individual, nesse contrato particular, íntimo e arriscado que se estabelece entre a pessoa fotografada e a pessoa que a questiona, e que é também uma amiga. É um momento de “foda-se”. Foda-se por me pedir, fodam-se todos por olhar pra mim, foda-se caso pense que vou dar para trás.
Esse conjunto de reações está no centro da ideia de amizade em que se fundamenta o trabalho, com brincadeiras, provocações e uma intimidade irresistível. No momento em que se abre o obturador, a pessoa da foto olha diretamente para o olho da lente, que é o olho de Muholi – e depois o nosso olho –, e declara algo sobre si e sua relação com a fotógrafa. É um momento de tirar o fôlego se comparado ao que vem antes e ao que vem depois. Mas é também um momento comovente quase insuportável. Ele resgata algo da natureza coletiva das centenas de fotos da série, algo que é feito inteiramente para e sobre a pessoa que está sendo fotografada.
O fato de que cada retrato se insurge e não se deixa relegar a uma identidade de grupo não é apenas deliciosamente irônico – é também político. Cada fotografia contém o tempo de sua feitura. Apesar da informalidade estudada das mulheres fotografadas, são imagens lentas. Lentas no sentido de que a feitura provém das relações e, portanto, do tempo que demandam. Lentas também no sentido de que cada pessoa fotografada, embora orientada a olhar para a câmera de frente, sem sorrir, como todas as outras, tem tempo de se ajeitar, de criar uma identidade para o momento da foto (ainda que a duração e as flutuações dessa identidade não nos digam respeito). A pergunta implícita é: quem você será, nesse momento de nosso contrato fotográfico, que a tornará totalmente diferente das outras?
As fotos são lentas também no sentido formal. A linguagem é a de retrato de estúdio. Quem se senta para posar (expressão apenas metafórica, pois as pessoas retratadas por Muholi estão sempre de pé) precisa arrumar a roupa e a postura para seu público. Isso implica um elemento de teatralidade, até de fingimento, que contraria a austeridade do trabalho. A fotógrafa e sua cúmplice escolhem um pano de fundo, que ingressa codificado na mitologia do projeto em toda a sua (irresoluta) inteireza. Não são fundos acidentais. Sugerem um leque de decisões estéticas e políticas: uma cortina improvisada, uma janela, uma parede de tijolos ou de zinco, uma porta de garagem, um pano ou um cobertor. Eles se tornam o padrão e a textura do trabalho de Muholi. O estúdio, esse espaço burguês, é redefinido. A pessoa não entra no estúdio para ser fotografada, mas cria o estúdio a partir de seu próprio lugar, de sua própria sensibilidade. Os panos de fundo de Muholi recusam o estúdio de forma provocativa e reiteradamente brincalhona – cada um deles contém um segredo compartilhado entre fotógrafa e fotografada. Cada um deles é, ao mesmo tempo, um gesto profundamente pessoal e político.
Num curto documentário sobre o trabalho de Muholi produzido em 2013 pelo Human Rights Watch, uma das fotografadas comenta: “Foi divertido”. Enquanto ela fala, Muholi está em pé fazendo uma trança no cabelo dela. Em outra cena, Muholi assiste com enorme prazer a uma amiga que topa raspar o cabelo para refazer uma foto tirada muitos anos antes. “Olha como é linda essa pessoa”, diz a artista enquanto a observa. Infere-se daí e das fotos que o presente que Muholi dá a suas participantes (como as chama) é a própria beleza idiossincrática, elegante, singular delas. Sua contribuição extraordinária à luta contra a homofobia e à tradição do retrato, principalmente na versão sul-africana, é manter a campanha e a pessoa numa tensão delicada e produtiva, permitindo que as particularidades de cada um ultrapassem os termos até mesmo do vigoroso projeto de Muholi. ///
Zanele Muholi (1972) é fotógrafa e ativista visual sul-africana. É professora honorária da Universidade de Artes de Bremen, na Alemanha. Recebeu, entre outros prêmios, o ICP Infinity de documentário de fotojornalismo (2016) e foi finalista do prêmio de fotografia Deutsche Börse (2015). A série Faces e fases foi exibida na Documenta de Kassel 12; no pavilhão sul-africano da 55ª Bienal de Veneza; na 29ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo, entre outras mostras.
Bronwyn Law-Viljoen é professora adjunta e coordenadora do curso de escrita criativa na Universidade Wits, cofundadora e editora da Fourthwall Books e ex-editora da revista Art South Africa. Escreve sobre arte e fotografia sul-africana para diversas publicações e tem diversos contos publicados.
Tags: fotografia africana, LGBTI, Retratos